Capítulo 4 - Indícios de conspiração

Eillen

Nova Yorque - Mundo humano

Enquanto observava das sombras, ela não conseguia deixar de se lembrar daquela noite, quando era apenas uma criança inocente, alheia a toda essa disputa entre raças. Sua mãe havia acabado de lhe ajudar a lavar os cabelos negros e lisos, e os escovava enquanto cantava uma música, cuja melodia ecoava em sua mente. A letra falava sobre ser livre em campos floridos e sobre felicidade.

Ela se lembrava com riqueza de detalhes os gritos de agonia que ouviu, vindos de fora junto com um som metálico, que ela soube depois que eram de espadas se chocando.

Em nenhum momento a expressão de sua mãe não mudou, exceto quando aquela mulher apareceu através de uma fenda luminosa na parede. Linda, em sua armadura prata reluzente, e seus olhos azuis grandes e expressivos, transmitindo puro amor e compaixão.

Com lágrimas nos olhos, a sua mãe a entregou para a estranha sem brigar, e só então pôde entender que aquilo era uma separação. Antes que atravessassem aquele portal, em uma última olhada para sua mãe, ela a viu tirar a própria vida, cravando um punhal em seu estômago.

Uma movimentação a tirou de seus pensamentos e ela pôde ver quatro vampiros. Eles portavam armas que, de início, não pode identificar, mas pelo uniforme que usavam pode concluir que eram soldados e pareciam vigiar uma espécie de contêiner que apareceu de repente no centro do pátio, como se já estivesse ali, mas estivesse encoberto por alguma magia.

Com uma câmera fotográfica, ela tirou algumas fotos e aguardou, pois, precisava ter certeza do que havia no contêiner antes de agir. Algum tempo depois, um homem apareceu, e a julgar pela armadura que usava, com certeza se tratava de um caçador. Junto com ele, como uma espécie de escolta, outros quatro homens de armadura aguardavam a distância, enquanto ele se aproximava dos vampiros.

Da distância em que ela estava não podia ouvir o que diziam, e também não podia arriscar se aproximar ou ativar seus poderes, sabendo que os caçadores poderiam sentir sua presença e colocar sua missão em risco.

— Droga, isso complica tudo! — ela pensou, enquanto o vampiro que parecia ser o chefe apertava a mão do caçador e os outros vampiros abriam o contêiner, para de dentro dele saírem dez indivíduos que ela, com seus olhos treinados, identificou como sendo todos vampiros recém-transformados, todos com as mãos e pés presos por algemas e grilhões prateados.

— Por que diabos vampiros entregariam outros vampiros aos caçadores? — ela se perguntou enquanto tirava mais fotos — Eu preciso me aproximar mais, para ouvir o que dizem.

Ativando o mínimo de sua habilidade furtiva, ela atravessou as sombras, mesclando-se a ela como em simbiose, para em instantes estar a poucos metros de onde eles estavam, e ergueu sua cabeça para fora da escuridão a tempo de ver o líder dos caçadores fazendo um sinal para seus que companheiros entregassem aos vampiros uma mala prateada.

— Está tudo aí conforme o combinado — o Caçador disse ao vampiro que recebeu a mala —, se quiser pode conferir.

— Eu confio em você! — o Vampiro respondeu, mostrando por suas presas estarem ativas, que se mantinha em estado de alerta.

— Agora podem ir, o resto é conosco! — o caçador disse, e com um gesto de mão fez com que as algemas e grilhões se soltassem, deixando os vampiros prisioneiros livres. Enquanto os soldados vampiros se retiravam sem dar as costas.

Os prisioneiros pareciam não entender por que estavam ali e muito menos o que eram, e ela sabia que essa confusão era normal depois da transformação. O caçador fez um pequeno corte no próprio pulso, e ela sentiu o cheiro do sangue fresco, e imaginou que os prisioneiros também sentiram, já que expondo suas presas eles começaram a atacar, e eram massacrados um a um pelos caçadores.

A jovem olhava sem entender, enquanto os vampiros eram destruídos um a um sem misericórdia. Ela se perguntava por que eles foram entregues e instigados a atacar, somente para serem abatidos.

Tirando mais algumas fotos, decidiu se retirar antes que os caçadores percebessem sua presença, pois mesmo ela, com seus poderes e seu treinamento, não seria capaz de encarar tantos caçadores.

Ela atravessou as sombras pela cidade e chegou em casa, ou ao lugar que chamava de casa nos últimos quinze anos, desde que os caçadores invadiram sua vila e dizimaram seu povo.

Era grata à caçadora que a salvou, e foi criada e treinada por ela para ser um soldado da resistência, assim ajudando outros seres das sombras a escapar da brutalidade da guerra entre raças, e a ter um lugar seguro para viver.

Ali, assim como ela, viviam seres de várias raças, algumas já dadas como extintas, mas graças à intervenção dos "Anjos da Resistência", como decidiram chamar o seu grupo, receberam a chance de recomeçar e reconstruir seu legado.

Era irônico chamar o grupo assim, já que ele era composto por criaturas sombrias. Ela mesma era um demônio, mas ali naquele local não havia distinção de raças, eram todos da mesma família enquanto buscassem viver em paz.

— Como foi a colheita, maninha? — Alguém gritou assim que ela entrou no ambiente iluminado tornando-se visível, e ela reconheceu a voz de Peter.

— Não houve colheita hoje, Pete  — ela disse, com um expressão desanimada —, mas tenho umas fotos que eu gostaria que você examinasse para mim, se não estiver ocupado, é claro!

— O quê eu não faço por você hein, Leen! — O apelido carinhoso a fez se lembrar do dia em que Pete chegou, e enquanto caminhavam para o laboratório dele, um flashback passou por sua mente.

Peter era apenas uma criança, enquanto ela já treinava para ser um Anjo, e de cara ela já o adotou como se fosse um irmão mais novo. Mas agora, quinze anos depois, ela que parecia ser a irmã mais nova, pelo tanto que ele cresceu.

A Mãe havia contado para ela que Pete era um Bargheist, e que sua aldeia fora totalmente destruída por demônios que queriam escravizá-los, sabendo de suas habilidades intelectuais.

Era triste imaginar que ele podia ser o último sobrevivente de sua raça, mas até que ele lidava bem com isso, talvez porque estava sempre estudando ou construindo algo. Sua inteligência era acima da média até para estratégias militares, e o único que conseguia encará-lo no xadrez era o mestre Kaghan, sendo que suas partidas às vezes duravam semanas ou nem terminavam.

— Deixe-me ver isso! — Pete disse, após transferir as imagens para a tela de um computador. Toda a tecnologia de que eles dispunham era criação do jovem Bargheist, com as peças que os anjos traziam das expedições — Eu só preciso ampliar isso aqui, e ...

— O que foi, Pete — Eileen perguntou, vendo que algo chamou atenção do amigo a ponto de paralizá-lo —, o que você viu?

— Essas armas nas mão dos vampiros... — ele começou a dizer, mas fez uma pausa como se tentasse acreditar no que dizia — são armas mágicas dos Magos, aliás, todo o aparato que eles estão usando é dos caçadores!

— Merda, eu imaginei isso! — ela disse se afastando e levando as mãos ao rosto como se estivesse pensando — Isso prova que o que a Aynne disse era verdade. E a Mãe não vai gostar de saber disso!

— Quer que eu convoque os Anjos para uma reunião? — Peter perguntou, enquanto ainda analisava as imagens.

— Faça isso — ela respondeu —, e prepare o material para mostrarmos a eles, eu preciso ver a Mãe!

Saindo do laboratório, Eillen seguiu para os jardins onde a Mãe ia para meditar. Ela não parava de pensar no que havia visto, se existiam magos fornecendo armas para vampiros, a Mãe tinha que revogar a punição que havia dado para Aynne após a última expedição dos anjos.

Aynne, uma das últimas Sìthiches que restaram após o grande golpe no mundo sombrio, havia quebrado a maior regra dos Anjos da Resistência, ao matar um caçador após um combate na última missão. Em sua defesa, ela disse que o caçador estaria agindo junto com os vampiros, em um ataque a um aldeia pacífica de lobisomens, e ao confrontar um mago sobre o portal que ela o viu abrir para os vampiros, eles a atacaram e ela teve que desferir o golpe que vitimou o mago. Mas para a mãe, até que se provasse a ligação do caçador com os vampiros, a fada deveria ficar afastada do grupo.

Após o golpe de domínio do mundo sombrio, as Sìthiches se exilaram no mundo humano, e buscaram viver em harmonia com os humanos ajudando-os com sua magia. Porém a incrível beleza das fadas obscuras atiçou a ganância e maldade humana, e fez com que homens invadissem a aldeia buscando raptá-las e vendê-las como escravas sexuais, forçando-as a se defender.

Porém a ação defensiva das Sìthiches chamou a atenção dos caçadores que, sem ao menos procurar a origem da retaliação, tomaram-na como uma ameaça, e em um ataque brutal quase exterminou todas elas. Em uma missão furtiva como as que os Anjos de resgate faziam, a Mãe conseguiu retirar da aldeia as fadas mais jovens e Aynne era uma delas.

Desde então, é notável o ódio dela pelos caçadores, o que tornou a sua ação na última missão ainda mais condenável.

— Eu vejo que algo a aflige, pequena — a voz calma e sábia do seu mestre a retirou dos pensamentos assim que ela entrou no jardim —, a Mãe está em meditação desde que você saiu em missão, mas talvez eu possa ajudá-la.

— Sensei Kaghan — ela se surpreendeu, mas ainda assim o recebeu com uma reverência de respeito ao mestre —, eu não o vi chegar.

— Se visse, eu não seria o sensei, não é mesmo? — ele respondeu, sorrindo simpaticamente — Sinto que há mais sombras em sua mente, do que em seu espírito demoníaco.

A capacidade de seu mestre de ler suas emoções sempre a assustou. Mestre Kaghan, era um samurai Muscaliet, e era responsável por treinar a todos que decidiam se juntar aos anjos da resistência. Como os demais Muscaliets, sua destreza e suas aptidões com artes marciais e armas, faziam dele um guerreiro quase imbatível.

Ele liderou pessoalmente a contra ofensiva dos Muscaliets contra a aliança entre vampiros e demônios, e graças á sua percepção apurada conseguiu antecipar a traição dos lobisomens, e organizou a retirada estratégica que garantiu a sobrevivência de sua raça.

Uma vez no mundo humano, Kaghan tentou uma trégua com os Magos, mas foi recusado pelo conselho de Élderes, e teve que viver como refugiado. Porém esse encontro com os caçadores não foi em vão, a Mãe, se apiedou de suas intenções e passou a ajudá-lo, sendo uma agente dupla infiltrada nos caçadores, até que algo a fez se tornar a guardiã dos refugiados definitivamente.

— O senhor me conhece como ninguém, mestre  — Eileen disse, meio desconcertada com o fato de ser tão previsível aos olhos sábios dele —, eu temo pelas criaturas sombrias, e pelos humanos também. Se o que Aynne disse é verdade, como parece que é, o caos se espalhará nesse mundo também, e nem a Mãe será capaz de nos ajudar.

— "Quando a escuridão se torna tão densa, a ponto de sufocar, qualquer fagulha de luz se torna um clarão" — o velho Muscaliet disse, em uma de suas citações de sabedoria.

— O senhor sabe que eu não entendo nada dessas suas parábolas, não sabe? — ela disse, meio emburrada.

— O que eu sei é que você nem tenta! — ele respondeu, bagunçando-lhe os cabelos carinhosamente, e ambos riram _ Eu disse que em momentos de grande desespero, uma pequena esperança já se torna uma grande vitória. Enquanto estivermos vivos, temos que permanecer de cabeças erguidas!

— Eu vou tentar, mestre! — ela disse, abraçando-o em seguida.

— Agora precisamos ir até a sala de reuniões — ele disse, após confortá-la com seu abraço paternal, mostrando para ela que sua pulseira, emitia um som de alarme —, Pete nos enviou um aviso, e teremos que começar sem a Mãe, já que ela ainda está recarregando.

Ela quase havia se esquecido de Pete e das fotos, o abraços de seu mestre a fazia se sentir segura e amada. Quando o conheceu, ela hesitou em levá-lo á sério como mestre. Para ela, Kaghan não passava de um coelho gigante que andava como humano e vestia roupas largas e estranhas, por baixo de sua armadura. Mas com o tempo percebeu o grande guerreiro que ele é, e a relação dos dois evoluiu para além de mestre e aluno, tornando-se quase pai e filha.

— Sim senhor! — ela respondeu, prontamente, fazendo uma reverência. E ambos deixaram o local rumo á sala de reuniões.

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