Capítulo II - Continuação

Triunfante ele deixou seus dedos entrelaçarem aos de Naiara e passaram a caminhar pela orla, os pés sendo banhados pelas aguas mornas e a ponta de suas asas se arrastando na areia, deixando um rastro para trás. As horas passavam rápido demais, eles conversaram e riram e Naiara teve a certeza que há muito tempo ele não ria daquela forma, pois no começo sentiu Yekun tenso ao seu lado e aos poucos passou a ser tomado por uma sensação que parecia ser desconhecida para ele, felicidade. Sentimento que deixou Naiara realizada, de alguma forma vê-lo bem e feliz, a fazia feliz também.

— Agora pode me contar o que a perturba? – Quis saber ele enquanto a levava para a proteção da sombra de um grande coqueiro, sentando e puxando a menina com ele. Naiara acomodou-se ao seu lado, deixando a lateral de seu corpo apoiada ao dele.

— Acha mesmo que preciso dizer? Olhe ao meu redor. Tenho dezessete anos Yekun, descubro que sou filha de Lúcifer, minha santa e querida mãe que até pouco tempo estava dentro de uma igreja, se revela uma bruxa poderosa, meu namorado é um demônio e estou em uma ilha deserta abrindo meu coração para um anjo caído. É informação demais até mesmo para mim que sempre fui estranha.

As palavras saíram de uma só vez, despertando o riso baixo de Yekun.

— Do que está rindo?

— Desculpa, sei que não há motivos para rir. – Ele tentou segurar o riso, sem muito sucesso – Mas colocando dessa forma, realmente é loucura, mas uma loucura engraçada.

— Engraçada? Acho mesmo que o sol não lhe faz bem, vamos voltar, acho que você não pode ficar exposto a ele dessa forma. – Ela se levantava o puxando pela mão enquanto falava.

— Não... espera... calma... – Voltar não era o que ele queria, não naquele momento. Yekun puxou a menina para baixo fazendo com que perdesse o equilíbrio, caindo sentada em seu colo, despertando agora o riso alto dele – Fique aqui, não tenho problema algum com o sol.

— Tem certeza? – Naiara em momento algum tentou se afastar dos braços dele que a envolvia e ajeitou-se quase sem perceber em seu colo, como se aquela reação fosse o natural. Ela levou a mão a testa de Yekun, para sentir a temperatura – Acho que está com febre, em todas essas semanas nunca ouvi tanto seu riso e ainda mais sem motivo algum, nunca te vi assim.

— Novamente isso... – Ele ainda sorria – Assim como?

— Bem humorado e fácil de se conviver.

— Está me chamando de mal humorado e de difícil convivência?

— Sim, estou.

— Não acredito nisso, vivi por centenas de anos para ser ofendido por uma humana de dezessete anos.

Os dois riram da situação, o clima estava leve entre eles, falaram de coisas banais e passaram o resto da manhã sem citar o que havia ocorrido mais cedo. Já estava próximo a hora do almoço, quando a assunto foi findando e o silencio ganhando espaço entre eles.

— Está na hora de voltar e encarar minha família infernal, literalmente. – Ela tentou sorrir.

— Sim, todo o sonho acaba quando acordamos, acredito que nosso tempo sonhando acabou.

Naiara sentiu algo dentro dela se quebrando, mas não quis transformar o sentimento em palavras, somente levantou-se e tentou sorrir para ele, mas algo na forma como Yekun a olhou, dizia que ele sabia exatamente como ela sentia-se.

— Vamos? – Ele abriu suas asas e se aproximava para toma-la em seus braços, mas parou quando viu Naiara afastando-se.

— Acho melhor eu ir primeiro, consigo voltar para casa, não quero ter que explicar o porquê estava aqui com você, já vou enfrentar um interrogatório pelo sumiço. – Deu de ombros sem conseguir conter a frustração de ter que sair daquele lugar lindo sem ele.

Yekun não insistiu, aproximou-se e a envolveu em suas asas novamente, de uma forma doce e delicada ela sentiu as penas tocando em seu corpo como se acariciasse cada parte dela, ele levou as mãos ao rosto de Naiara, enquanto a menina fechava os olhos sentiu os lábios gelados tocando levemente sua testa.

— Queria tanto que somente o meu amor bastasse. – Disse ainda com os lábios tocando a pele da menina e em seguida uma rajada de vento desalinhou os seus cabelos, ela estava sozinha na ilha.

Agares estava sentando no alto da torre, lugar onde ia com Naiara quando queriam fugir um pouco de todos, ela viu os longos cabelos loiros refletir a luz fraca que iluminava seu lar, o peso da culpa esmagou seu coração e por alguns segundos não conseguiu se mover, ficou parada no portão principal, olhando para ele. Como se Agares pudesse sentir a presença da namorada, seus olhos buscaram por ela e quando se encontraram o sorriso espalhou-se nos lábios dele e a sensação de alivio o tomou, ela sorriu sem jeito. Em um estalar de dedos Agares se materializou na frente dela e abruptamente a tomou em seus braços, apertando a menina com tanta força que a fez gemer de dor.

— Está me machucando Agares.

— Nai, por onde você andou? Não te sentia, eu tentei, tentei muito... mas... onde esteve? Porque Nai, porque não me deixou te sentir?

A sensação da traição a invadiu, não compreendia como pôde ter agido daquela forma com Agares, ele esteve ao lado dela em todos os momentos daquela vida louca, protegendo, cuidando, amando. Ele se abriu para ela, deixou cair todas as suas barreiras, não se escondeu mais atrás do jeito sarcástico, simplesmente se entregou ao amor que despertou no exato momento em que se encontraram naquela cozinha. Sentiu-se pequena e sufocada, envolveu o rapaz em seus braços e o apertou com toda a força que conseguiu, as palavras saindo de seus lábios com rapidez, se misturando as lágrimas que escapavam sem permissão de seus olhos.

— Me perdoe Agares, por favor, me perdoe... – Seus lábios percorriam a face do namorado, enquanto beijos carregados de arrependimento eram distribuídos – Prometo que não farei mais, prometo que nunca mais farei isso.

Agares conseguia sentir o peso daquela promessa e a verdade que vinha com ela, envolveu a namorada em seus braços o mais apertado que conseguia, deixando os corpos se moldarem, não conseguiu impedir o sorriso que quase machucava sua face de tão expandido.

— Tudo bem Nai... tudo bem... você está bem, está aqui, voltou para mim.

Em meio ao momento, enquanto os dois se derretiam em juras de amor e pedidos de desculpas em uma busca desesperada por algo que não sabiam, não notaram a aproximação de Heylel e Amarantha, assustando-se quando o barulho de garganta arranhada ecoou entre eles.

— Pai! – Naiara afastou-se levemente de Agares, mas ele manteve o braço ao redor de sua cintura, não querendo separar-se dela nunca mais.

Apesar da presença do pai naquela cena ter surpreendido Naiara, foi Amarantha que falou, com a voz doce e baixa, que fazia Naiara lembrar-se da doce Anna de... não muito tempo atrás.

— Agares você pode por gentileza nos emprestar a nossa filha? Acredito que temos que conversar e ficarei grata se essa conversa for um momento nosso.

Como recusar um pedido dela?

Não havia como.

Agares mesmo contrariado aproximou-se de Naiara e com cuidado e rapidez selou os lábios da namorada e desapareceu diante de seus olhos, deixando para trás uma Naiara bicuda e contrariada.

— Filha... – Amarantha aproximou-se pegando as mãos da menina e segurando entre as suas – Não posso imaginar o quanto tudo isso é uma loucura descabível para você, mas essa é a nossa vida agora e precisa se acostumar a ela Naiara... – O nome nos lábios da mãe parecia estranho, não combinava com a lembrança que ela tinha, seus pensamentos voaram longe, se perdeu em manhãs ensolaradas na cozinha, tigelas de cereal e o aroma maravilhoso de biscoito, Anna sorrindo radiante pela cozinha, enquanto ela e Gabriel conversavam sentados, apoiados na grande bancada. Como pôde perder tudo isso, ela não entendia em que exato momento deixou de ser uma adolescente normal, passando a ser uma criatura cercada de demônios. Ela suspirou alto olhando para a mãe que continuava a falar parada a sua frente, mas que Naiara já não notava mais – Você entende?

— O que? – A menina disse confusa, olhando do pai para a mãe tentando se desculpar com o olhar – Desculpa mãe... eu... sim... eu sei mãe... eu sei... é só que é... tão frustrante tudo isso... tão estranho e louco... Muita informação para digerir, olhe ao nosso redor, veja onde estamos, até ontem você era minha mãe e fazia o melhor pudim do mundo...

Disse quase em um sussurro se rendendo ao cansaço emocional. Realmente era tudo demais e os pais sabiam disso, entendiam o peso que a filha carregava, mas não havia o que ser feito, não poderiam desfazer o passado ou poderiam?

Heylel aproximou-se da filha e com incerteza em seus movimentos, levou os braços ao redor dela, com cuidado, como se a filha fosse se desfazer ao seu toque, a envolveu enquanto ela apoiava a cabeça em seu peito. Amarantha não conseguiu se conter diante da cena a sua frente, lagrimas escorriam sobre sua face, aproximou-se e envolveu os dois em seus braços, tendo naquele círculo, toda a sua vida. Naiara queria entender, queria realmente voltar a ser a pessoa que chegou naquele lugar, que não temeu invadir o território de uma outra criatura e conseguiu lidar com uma magia desconhecida, ela queria voltar a ser a herdeira do Sheol, mas naquele exato momento, só conseguia ser uma menina confusa entre dois amores, com problemas familiares e um ciúmes doentio de sua mãe.

— Minha menina, te ver em paz é o desejo mais ardente do meu coração. Tudo vai se resolver, acredite em mim, vejo o quão louco isso tudo parece e entendo sua frustração, mas jamais esqueça, que você é tudo o que temos e precisamos para continuarmos existindo.

A insegurança e confusão cederam, dando lugar para outros sentimentos que a preenchia, não importava mais o que era a sua família ou onde ela estava, muito menos se as pessoas ao redor dela se diferenciava de tudo o que ela conhecia. Via as intenções e as preocupações de cada um deles, foi mais amada e querida ali entre demônios do que entre humanos em toda a sua vida. Diferente, estranha, sobrenatural, mas era a sua família e isso bastava para Naiara. A menina afastou-se um pouco dos pais, o suficiente para enxugar o rosto da mãe que ainda estava molhado pelas lagrimas.

— Vocês são os melhores pais de todo mundo, desse e do outro – riu em meio a frase – não trocaria minha bruxa e meu diabo por ninguém.

Os três se abraçaram rindo das palavras usadas para descrever a pequena família e foi Naiara que trouxe o assunto pendente de volta.

— Então, como faremos com a minha não tia e os preparativos para o tão esperado aniversário?!? – Não queria mais ver a mãe chorar e talvez uma festa de aniversário e a aceitação de mais um membro a família fosse tudo o que precisavam para mudar o foco dos acontecimentos. Como sempre fazia, ela abriu mão de seus conflitos em favor do bem estar daqueles que lhe eram queridos.

— Bem, temos que sentar e conversar sobre o que você quer, sobre quem convidar, temos tantas coisas para resolver minha filha.

— Mãe, não quero jogar agua fria em seu entusiasmo, mas, ainda que estivéssemos lá em cima, não teria quem convidar, imagine aqui. – Deu de ombros constatando a verdade.

— Eu sei minha filha, mas seu pai... bem... é seu pai e ele tem um reino sob seu domínio, então acredito que teremos sim, alguns convidados.

As duas olharam para Heylel esperando dele um norte para aquela conversa, mas ele estava olhando para um rapaz triste, sentado no chão, com as costas apoiada na parede, os longos cabelos loiros, cobriam o lado direito de sua face e a tristeza estava irradiando de todo o seu corpo.

— Podemos deixar isso para mais tarde meu amor – Começou a dizer entrelaçando os dedos aos de Amarantha e a puxando devagar – Agora nossa menina tem que cuidar do estrago que ela deixou para trás, ainda não sei para quem ela puxou esse temperamento...

A última frase se perdeu no vento, pois seus pais já estavam se afastando e ela já andava em direção de Agares. A culpa era como um peso sobre seu peito a esmagando de uma forma devastadora, queria se desculpar, queria contar o que havia feito e com quem esteve, mas sabia que tudo aquilo só magoaria ele ainda mais, mas como bloquear a mente para Agares, como conseguir esconder algo dele, quando os dois estavam ligados de maneiras que ela mesma ainda não conseguia entender. Seu peito subia e descia se movimentando com a respiração forte dela, fez o melhor que poderia fazer, sentou-se ao lado dele e deixou toda a verdade transparecer, não teria um relacionamento baseado em mentiras, não queria para ela a vida que sua mãe sempre teve.

— Desculpa...- Disse baixinho olhando para os próprios pés.

— Eu poderia ter ajudado Nai, poderia estar com você naquela praia, poderia ser eu a servir de apoio para seu ombro e ser meus dedos enxugando suas lagrimas. – Ele também não conseguia olhar para ela.

— Eu sei... errei de uma forma que não sei se serei capaz de me desculpar Agares, mas você conhece meu coração... as vezes acredito que o conhece melhor do que eu mesma...-riu, mas o riso não chegou aos olhos - ...me desculpe...

O silencio entre os dois ficou desconfortável, Agares imóvel como se fosse entalhado em pedra, Naiara mexia os pés formando desenhos sem sentido no chão, não queria sair de perto dele, não queria deixa-lo daquela forma, mas não sabia mais o que dizer, sua mente trabalhava acelerada, buscando frases de impacto, pedidos de desculpa, mas nada parecia ser bom o suficiente. Minutos depois, que mais pareceram horas, foi ele a quebrar o silencio constrangedor entre eles.

— Vou lá Nai, sua mãe quer minha ajuda para alguma coisa que não sei muito bem o que é, para a sua festa...- deu de ombros se levantando – O chefe mandou ficar à disposição dela.

— Agares, espere, vamos conversar, por favor!

— Não há muito o que ser dito Nai, vi o que aconteceu enquanto conversava com seus pais, sei onde e com quem estava, se naquele momento a minha presença para você não era o suficiente... então... – Não conseguiu terminar a frase, talvez não havia mesmo o que ser dito, o que se pode fazer quando não é a sua presença que a outra pessoa quer? Nada.

Os passos lentos mais decididos de Agares o levaram para longe dela, ver a imagem do namorado se distanciando daquela forma era triste demais, assim como ele, ela também conseguia não somente sentir, mas viver através dele a sua dor e naquele momento, ela só queria dar um chute em sua própria canela por deixar Agares daquele jeito.

— Como sou idiota!!!

A raiva de suas ações a invadiu, pela segunda vez naquele dia que mal havia começado, ela desejou desaparecer. Afundou a cabeça em seus joelhos, enquanto os abraçava junto ao peito, tentando sem muito sucesso controlar sua respiração. Não sabia como a cena iria parecer patética aos olhos de todas as criaturas que iam e viam ao seu redor, com certeza se aquela imagem chegasse a Belial, ele iria rir alto da grande e poderosa herdeira do Sheol. Sentiu-se diminuída.

— Ah não, não mesmo, você não, por favor, vai embora. – Pediu baixo sem muita convicção.

— Não entendo o porquê desse drama todo, adolescentes... – Yekun estalou a língua deixando claro seu descontentamento em relação a reação de Agares – Ele vai te colocar em um campo de força? Irá simplesmente lhe prender em uma masmorra e impedir que tenha contato com qualquer outra pessoa? É isso o que tem em mente sobre um relacionamento saudável Naiara?

Sua voz era acusatória, mas baixa, as perguntas entravam no ouvido da menina como espada afiada, ela jamais se imaginou vivendo em um relacionamento possesivo, não entendia como casais brigavam por ciúmes, tentando marcar o território, acreditou que seria livre para fazer suas próprias escolhas e ter o causador daquela situação entre Agares e ela, colocando em palavras tudo o que ela sempre rejeitou, foi demais para o seu frágil temperamento.

— Afaste-se de mim Yekun!!! Não devo a você satisfação de como eu quero ou como conduzirei meu namoro. Pare de falar como se me conhecesse, como se de alguma forma fosse algo meu, como se eu encontrasse toda minha paz em seus braços – Ela se levantou falando cada vez mais alto, sem conter as lagrimas que escapavam sem permissão de seus olhos – como se quando suas asas me envolve, todos os problemas ao meu redor simplesmente sumissem... Por favor Yekun... por favor! – Era um pedido angustiado, um apelo para que ele lhe explicasse o que estava acontecendo com ela e com seus sentimentos, mas ele não poderia ajudar, ninguém poderia.

Como criança sendo contrariada, ela levantou a mão e em um mover de seus dedos a fizeram desaparecer dali, deixando o anjo caído para trás, com suas grandes asas negras abertas, sentindo o vazio avassalador que a ausência do corpo da Naiara entre elas, lhe causava.

— Gostaria de ter chegado antes, que seus olhos fosse capturado pelos meus e seu coração encontrasse morada em mim... – As palavras foram pronunciadas ao vento, desejando que de alguma forma, alcançasse Naiara – Mas não consegui, não consegui...

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