Capítulo II

Seus pés descalços estavam enterrados na areia quente o que de uma certa forma ajudava, mesmo que levemente, a relaxar seu corpo, os joelhos levados ao peito e a cabeça apoiada neles, de todas as formas Naiara queria somente esquecer de tudo o que havia vivido nos últimos meses e voltar a ser a menina com problemas de maquiagem e nada mais. Sabia que o surto na sala com as pessoas que amava era algo desnecessário, mas não estava conseguindo lidar mais com algumas coisas, não entendia como todos a olhavam, esperando que ela fosse somente a filha do anjo caído, esqueciam que afinal, em um passado não muito distante, ela era somente a filha problemática de um pastor e nada mais, agora além de tudo o que precisava digerir dentro de si, ainda havia Élida, irmã do tal coven de sua mãe. Quando os parentes iriam parar de chegar?

Uma sombra cobriu seu corpo e mesmo sem olhar, ela sabia quem estava parado atrás dela.

— Yekun, feche as asas ou saia daqui estou cansada de tanta escuridão.

— Sabe que seu querer é tudo o que me importa Naiara – Sentou-se ao lado dela, deixando assim grande parte de suas asas sobre a areia – O que aconteceu?

— Só estou... cansada...

A asa esquerda de Yekun se abriu, projetando-se sobre Naiara, a envolvendo devagar, como a mão boba de um namorado em uma sessão de cinema, muito lentamente tocou o corpo da menina e com delicadeza a puxou para mais perto, ela não relutou, não se afastou, deixou o corpo relaxar ao toque macio e uma sensação de tranquilidade a invadiu, ficando assim impossível conter o sorriso.

— Obrigada. – Disse baixo, voltando a apoiar a cabeça nos joelhos.

— Sabe, pode parecer estranho tudo isso para você e acredite, posso sentir a confusão em sua mente e coração, mas as pessoas que deixou naquela sala te amam de forma incondicional, até mesmo aquele seu namoradinho. – A acidez tingiu sua voz na última palavra.

— Defendendo Agares? A redenção deve mesmo existir...- Trocaram sorrisos.

Naquele momento, quando pela primeira vez ele conseguiu de sua amada um sorriso sincero, sem maldade e sem troca de farpas, ele entendeu Heylel, sentiu o calor do próprio sol o invadindo e derretendo o gelo de sua existência, ela era tudo o que ele precisava.

— Vem, quero lhe mostrar algo, quem sabe consegue esvaziar sua cabeça um pouco e acalmar seu coração ou vai acabar me enlouquecendo.

Não houve recusa, ela levantou-se aceitando a mão de Yekun que estava estendida em sua direção, seus olhos percorreram toda a extensão do corpo do anjo caído, ela sabia a quem seu coração pertencia, mas não conseguia negar a atração que Yekun exercia sobre ela e parado a sua frente, somente com uma calça larga sobre o corpo, tão escura quanto a cor das imensas asas que abria majestosamente, ficava ainda mais difícil. Com Agares o sentimento era intenso, devastador, como se cada terminação nervosa de seu corpo reagisse ao simples toque do namorado, a presença dele era tudo o que ela precisava para conseguir prosseguir, como se de alguma maneira sobrenatural, ele recarregasse a energia da menina e ela sentia que acontecia o mesmo com ele, a forma que conseguiam conversar sem nenhuma palavra ser dita, como eram simplesmente a continuação um do outro, em um círculo infinito de sentimentos e desejos, mas naquele momento não queria pensar em mais ninguém, além dela mesma, sentiu-se egoísta, mas sabia que precisava daquilo.  Quando os olhares enfim se encontraram, Naiara sentiu a face corar, o sorriso presunçoso nos lábios de Yekun, revelava que ele sabia o que estava passando-se no coração da menina e a batalha interna que enfrentava, mas sabia muito bem também para onde ela estava olhando.

— Se quer me levar para algum lugar, vamos logo antes que eu mude de ideia. – Disse tentando disfarçar o constrangimento.

O sorriso dele se ampliou e suas asas ganharam vida enquanto ele passava os braços ao redor de Naiara, puxando seu corpo para ele, seus pés não mais tocavam o chão. Ela levou os braços ao redor do pescoço de Yekun, prendendo-se a ele com toda a sua força, claro que ela conseguia se materializar de um lugar para outro, mas voar sobre o mar que estava a sua frente, era algo novo e assustador para ela.

— Não precisa ter medo, jamais deixarei que algo ruim lhe aconteça – As palavras foram sussurradas ao ouvido de Naiara, provocando uma sensação gostosa e inesperada na menina, sensação que foi rejeitada logo em seguida. – Pare com esse conflito interno Naiara, não vou agarrar você... Bem, não mais do que o necessário para que não caia...- A felicidade daquele momento estava evidente na voz de Yekun, ele estava mais leve e não havia mais sombra sobre os seus olhos. Ele pairava sobre o mar com Naiara em seus braços e o sorriso não deixou mais seus lábios.  – Apenas tente relaxar e não pensar em nada.

O voo foi tranquilo, um deslizar sobre as aguas, hora ou outra Yekun descia um pouco mais, deixando que os pés de Naiara tocassem o mar fazendo-a sorrir, o som daquele sorriso enchia- o de vida e como se pudesse beber do perfume de Naiara, ele aproximou-se ainda mais, seu nariz buscou o pescoço da menina entre os longos cabelos, inspirou profundamente, fazendo com que ela encolhesse o corpo, mas não de medo.

— Você fica melhor assim. – Disse baixinho.

— Assim como? – Quis saber ele.

— Leve. Sem aquela expressão zangada o tempo todo.

— Eu tenho a expressão zangada o tempo todo? – Ele sorrio ainda mais.

— Sim. Fica com uma ruga entre os olhos, bem aqui. – Ela afirmou, tocando levemente com os dedos o local. Yekun fechou os olhos deixando seu corpo absorver por completo aquele simples gesto, quando voltou a falar, sua voz não passava de uma leve brisa entre os dois.

— Até o momento, não havia em minha existência razão para serenidade ou paz.

— E agora há? – O som da sua voz se igualou a dele.

— Sim, sem dúvida alguma, agora há.

Nada mais foi dito, Naiara deitou a cabeça em seu peito e como criança, Yekun a acolheu em seus braços, seus corpos foram projetados para cima sem pressa, inclinando-se para a esquerda. Já vivenciavam aquele momento por um bom tempo quando Naiara sentiu que estavam parando, ela abriu os olhos e viu Yekun descer e seus pés tocarem a areia novamente, com cuidado ele colocou-a no chão, mas não permitiu perder o contato com ela, deixando seu braço direito envolvendo a sua cintura.

O lugar era lindo, areia tão clara e fina, que massageava os pés a cada passo, a agua cristalina que tocava a praia, deixava a paisagem encantadora, estavam cercados por grandes arvores e coqueiros, era um lugar paradisíaco.

— Uma ilha? É sério? – A incredulidade da vida que a cercava agora, estava latente em sua voz.

— Bem...- Começou ele a explicar de forma quase vergonhosa – não é fácil sair sem ser notado quando se tem asas saindo de suas costas. Aqui não há ninguém, então ninguém ira se aterrorizar quando ver a aberração. – Aquela revelação pegou Naiara despreparada e seu coração sentiu a dor dele.

— Yekun, você não é uma aberração... – A vontade de conforta-lo era tamanha que Naiara não se conteve e seus dedos percorreram as penas escuras como a noite, despertando completamente o corpo do anjo caído a sua frente – Eles somente não estão preparados para algo tão magnifico...

— Magnifico? – Falou tão baixo e admirado com a palavra que ela havia escolhido para descreve-lo que acreditou que não seria capaz de ser ouvido.

— Claro, não há outra palavra para descrever isso. – E seus dedos continuaram a percorrer o caminho, tocando com delicadeza cada pena que parecia viva sob seu toque. Ele permanecia de olhos fechados e sua face revelava os sentimentos que aquele momento despertava, carinho, amor, prazer. Ela estava perdida naquele encanto estranho, como se fosse natural, destinado, como se o seu lugar realmente fosse ali. Com um cuidado exagerado, ela deslizou agora a mão espalmada sobre a asa esquerda dele, que se mexia com o seu toque, abrindo-se e fechando delicadamente.

— Ah Naiara – A voz rouca de Yekun não quebrou a magia daquele momento -  ...queria tanto que isso bastasse.

Os dedos de Yekun pressionaram a cintura da menina a puxando de frente para ele, suas asas se fecharam em volta dela, a prendendo em uma gaiola negra, os braços dela envolveram o pescoço dele e deitou sua cabeça em seu peito nu. Yekun encostou o queixo no alto da cabeça de Naiara e eles poderiam passar o resto do dia daquela forma que ela não se cansaria, seus pensamentos estavam completamente voltados para os dois e nada mais parecia importar, sua respiração se igualou a dele e no mesmo ritmo sentia o peito subir e descer. Naquele momento, somente naquele momento, Naiara desejou morar para sempre ali, entre a escuridão de asas negras.  Imagens de uma noite não distante, passou a invadir a mente da menina, ela se viu na cabana, o riso de Agares ecoou em seus ouvidos, a maneira como ele a amou refletiu em seu corpo, fazendo com que de forma brusca ela se afastasse de Yekun e o encanto se quebrasse.

— Não entendo essa ligação entre vocês. – Começou a dizer ele, claramente contrariado – Você é minha. Não era para ele conseguir te sentir dessa forma, não entendo como ele consegue, como te encontrou, como restabeleceu a conexão que você mesma rompeu, não entendo.

Naiara ficou parada vendo e ouvindo o que ele dizia, odiava quando se referia a ela como propriedade, com aquele tom de posse, mas de alguma forma, a raiva que em outros momentos estaria norteando aquela situação, foi substituída por um sentimento que ela não conseguia definir, pois não entendia como tudo aquilo funcionava, jamais passou por sua cabeça que as pessoas estavam pré destinadas umas às outras, para ela sempre foi uma questão de escolha, de se encontrar em outro alguém e ali querer ficar. Sentiu-se mal, pois viu a desolação nos olhos de Yekun e entendeu que para ele não havia escolha, mesmo que quisesse se afastar, amar e se entregar a outro alguém, não conseguiria, estava ligado e aquela ligação era eterna.

— Não por favor, não faça isso. – Ele a olhou sério.

— Isso o que?

— Pena, não tenha pena de mim, esse sentimento não, por favor.

— Yekun...- Ela respirou fundo tentando absorver toda aquela situação e aproximou-se dele se esforçando muito para manter Agares longe de seus pensamentos, Yekun não era de todo mal e não merecia sentir-se daquela forma, não naquele momento – Não sinto pena de você, nem quando lhe dou uma surra e olha que acabo com você – Brincou ela, tentando amenizar a tensão, deu um passo para mais perto e sem pedir permissão entrelaçou seus dedos aos dele, ganhando um sorriso carinhoso. – Vamos, não vai me mostrar a sua ilha?

— Ele está te chamando, deve estar louco de preocupação, não vai atende-lo? – Havia tristeza em sua voz e medo de que aquele momento acabasse.

— Não, sei que nenhum deles morrera se passarem algumas horas se preocupando comigo. Agora vamos, você fala demais quando não está mal humorado.

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