Primeira Parte: Quatro

Encheu a vasilha de ração e fez um chiado com a boca, enquanto esfregava um dedo no outro, na tentativa de chamar o animal. A gata Bastet deixou sua caminha macia e se espreguiçou. Vince sorriu para ela.

— Como é preguiçosa, essa senhorita!

Quem visitava seu apartamento quase sempre perguntava por que ele dera um nome daqueles a uma gata. Gatas deveriam se chamar “Floquinho”, “Kitty”, “Lully”, dissera Sirena, até “Tapioca” soaria melhor que isso. Vince torcera o nariz para a amiga, não apenas por discordar, mas por ter dificuldade em conceber a ideia de que existiam nomes adequados para certos animais. Bastet era uma vira-latas preta e branca; havia sido adotada por Darles, mas Vince fora tão rápido em apelidá-la que o nome pegara.

Despiu-se do casaco e o jogou no sofá. A sala estava arrumada hoje, mas não permaneceria assim por muito tempo; conhecia a si próprio o bastante para saber disso.

As amplas e numerosas janelas lhe forneciam uma vista pouco notável. Seu apartamento com Darles não era dos mais caros, apesar de ficar localizado na Zona Alta — dali, podia-se ver um prédio abandonado, um beco e uma grande lata de lixo. Ao menos os móveis eram de qualidade: uma mesa para oito pessoas perto da cozinha americana e, no centro, um sofá em formato de meia lua.

Sentou-se, colocou o teclado do computador sobre o colo e o ligou. As imagens começaram a ser transmitidas pelo aparelho instalado no teto, de maneira que ícones e arquivos recebessem forma tridimensional no espaço vazio diante de Vince.

Assim que abriu o texto no qual vinha trabalhando com ainda mais afinco nas últimas semanas, percebeu o quanto estava cansado. O seminário que tivera que apresentar havia consumido suas energias. Desejou poder deixar suas tarefas de lado e se deitar um pouco, mas isso seria injusto até mesmo com Sirena, que ele dispensara a fim de voltar logo para casa e trabalhar.

Foi até a sessão mais recente de sua carta-proposta e releu o último parágrafo. Odiou cada palavra e apagou ao menos metade delas. Releu o subtítulo: “A importância da sobrevivência diferenciada de cada um dos organismos”. Péssimo! Não poderia passar ideia mais vaga. Tentou reescrever. “A importância do método de sobrevivência próprio de cada espécie”. Também não era bom, ele já usava o termo “método” no título da carta-proposta. Desistiu, deletou tudo e trocou o subtítulo por três pontos de interrogação. Pensaria nele depois.

Abriu os artigos científicos que, mais tarde, adicionaria à bibliografia e começou a reler trechos de cada um deles, em busca de inspiração. Vince sabia que nunca seria um acadêmico perfeito, por mais que amasse engenharia robótica. Era uma pessoa prática, do tipo que punha seus intentos em prática em vez de discursar sobre eles.

Pôs-se a escrever. A voz de Sirena voltou à sua mente, dizendo-lhe que ele nunca terminaria seu projeto e que uma outra pessoa acabaria tendo as mesmas ideias que ele. Essa possibilidade realmente o assustava, tanto quanto a ideia de ter sua carta recusada pela OneBionics.

Ele sabia que, se havia alguma empresa capaz de implementar sua ideia de utilizar o método darwiniano para criar biônicos autônomos e conscientes, não seria nenhuma outra senão essa. Ela havia sido responsável pelos principais progressos na área da robótica das últimas décadas; talvez, metade do conhecimento formal de Vince fosse proveniente de descobertas da OneBionics. Sabia que uma carta-proposta mediana e um estágio em qualquer outro lugar lhe renderiam bons frutos no futuro, mas não tão bons quanto os que ele almejava.

Após duas mil palavras, notou que estava tendo problemas com sintaxe. Seu raciocínio já não funcionava como deveria. Achou por bem parar um pouco e descansar.

Buscou um pacote de biscoito salgado no armário da cozinha, colocou um filme para passar e se deitou no sofá. Bastet pulou em sua barriga e fez ninho. Trinta minutos talvez fossem suficientes para que Vince regenerasse estamina. Distraído com as imagens diante de si, levava à boca um punhado de biscoitos com uma mão, e com a outra acariciava Bastet.

Acordou assustado quando a gata pulou para o chão. Um outro filme estava passando, para que ninguém assistisse. Vince havia adormecido em meio às almofadas. Parou o filme e verificou as horas. Já era uma da manhã! Havia dormido por três horas.

Colocou-se sentado e esquadrinhou a sala.

— Darles? — chamou. Ninguém respondeu. Darles ainda não havia voltado do trabalho. Isso era incomum.

Notou as notificações recebidas na tela holográfica diante de si. Duas ligações perdidas e uma mensagem do namorado de duas horas atrás: vou sair com os colegas da firma; não fique preocupado, volto antes das sete.

Isso o acalmou um pouco. Darles, assim como Vince, não era muito de sair de casa, mas ao menos uma vez ao mês se reunia com os colegas do trabalho e passava a noite bebendo num bar perto de casa.

O cérebro sonolento de Vince não sabia no que se focar. Deveria voltar a trabalhar na carta-proposta, mas estava exausto demais para isso. Talvez fosse melhor tomar um banho e pular na cama. Porém, pensando bem… fazia semanas que ele não passava um tempo com o namorado, e recentemente temia, quem sabe, acabar esquecendo como era o rosto dele. Pensou em lhe telefonar e pedir para se juntar a ele; nunca foi muito fã de bares e dos amigos de Darles, mas ao menos demonstraria interesse pela companhia dele, o que talvez atenuasse os ânimos entre os dois.

Foi o que fez. Usou o teclado para discar. A objetiva de Darles tocou umas dez vezes antes de parar. Vince tentou outra vez. Mesma resposta.

Estranhou. Darles costumava viver com a objetiva no rosto.

Sem querer, Vince começou a criar teorias. Nunca foi o típico namorado ciumento, tampouco tinha motivo para ser. Durante os três primeiros anos, sustentara um relacionamento aberto que dera muito certo; nenhum dos dois perguntava, e nenhum dos dois respondia. Nos últimos dois anos, entretanto, depois que resolveram se mudar para aquele apartamento alugado e dividir as contas, haviam decidido investir numa relação monogâmica. Sempre haviam sido honestos um com o outro; Vince não conseguia se lembrar de nenhuma vez que havia mentido para Darles, ou que o tivesse pegado numa mentira.

Tinham planos para o futuro. Cuidavam de uma família de suculentas sob as janelas, pretendiam adotar mais um animal, estudavam viajar nas férias e, principalmente, poupavam economias para o futuro; sonhavam em, quem sabe dali a alguns anos, mudarem-se para a Europa juntos. Acima de tudo, eles formavam uma equipe.

Nos últimos meses, todavia, algumas ideias desagradáveis vinham sondando furtivamente a cabeça de Vince. Sua relação com Darles não vinha sendo a ideal. Num primeiro momento, ambos acreditaram se tratar de um transtorno temporário após a morte da avó de Vince, internada durante muitos meses. Contudo ele não conseguia deixar de imaginar se havia algo mais. Geralmente, sentia-se culpado por isso, por colocar sob uma lente de aumento, fria e inquisitiva, um relacionamento que sempre havia sido saudável. Eles se amavam, afinal de contas, e isso era incontestável.

Vince tomou uma decisão e agiu rápido. Colocou o casaco outra vez e, mesmo sem mochila, saiu de casa. Andou poucas quadras até o bar onde Darles costumava se reunir com os amigos do trabalho. As ruas não estavam tão movimentadas quanto ele gostaria, apesar de ser noite de sexta-feira. Não esperou até que a faixa de pedestres feita de lâmpadas de LED se iluminasse em vermelho no chão para atravessar, pois não havia trânsito. Ao entrar no bar, viu muitas mesas cercadas de grupos grandes. Procurou o rosto do companheiro em cada uma das pessoas, mas não o achou nem numa segunda inspeção. Isso não fazia sentido. Não havia muitos lugares naquela área da Zona Alta que Darles poderia ter ido visitar com os amigos. A menos que…?

Aquele mesmo tipo de pensamento voltou, a ideia de que Darles pudesse de fato estar escondendo alguma coisa. Se fosse o caso, o que Vince poderia fazer? Esperar em casa até o namorado chegar, confrontá-lo e torcer para que ele tivesse uma explicação razoável.

Mas teve uma outra ideia. Voltou para casa correndo.

Alguns meses atrás, Vince havia desconfiado de que o sujeito que eles pagavam para limpar o apartamento vinha mexendo no computador. No fim das contas, acabara descobrindo que não era nada daquilo, que se tratava de programas maliciosos que Darles havia instalado sem querer. Mesmo assim, na época, Vince infectara o próprio computador com um spyware, só para ter certeza. Depois que o mal-entendido havia sido resolvido, ele não fizera questão de limpar o sistema operacional.

Sabia que mais tarde acabaria se sentindo arrependido por desconfiar de Darles daquela maneira. O que está acontecendo comigo?, perguntou-se. Não reconhecia aquela versão paranoica de si. Talvez fosse o estresse na faculdade, as expectativas que só aumentavam ou o luto que ainda não havia deixado de atormentá-lo.

Deixou a porta da sala aberta ao entrar. Sentou-se ao computador. Digitou o código para revelar a lista de dados registrados pelo software espião e começou a ler. Seu coração batia forte. Ele não queria descobrir nada, mas também não suportava o mistério.

Viu a captura de tela referente a três horas de filme; em seguida, cada uma das palavras que ele havia apagado, digitado e apagado de novo; e então, cada programa acessado nas últimas vinte e quatro horas; os artigos científicos, as páginas de notícia que Darles visitara mais cedo antes de sair de casa. Nada.

Apoiou as costas no sofá. Sentia-se ridículo. Antes tivesse continuado dormindo! Ou, quem sabe, tivesse acreditado em Darles. Agora precisaria guardar segredo sobre o que acabara de fazer, e isso o consumiria por dentro, uma vez que não conseguia esconder nada dele.

Apenas para ter certeza, e aproveitando que já se martirizava como um infrator da pior estirpe, foi até a área de busca e digitou “sexta-feira”. Sua intuição o levava na direção certa, e ele se deu conta disso quando encontrou tais palavras digitadas e apagadas: onze da noite, sexta-feira, na casa do Marque.

Vince sentiu o estômago se embrulhar e, por um instante, teve a sensação de que vomitaria. Por mais que viesse lidando com dúvidas, no fundo esperava que fossem infundadas. Alguém havia escrito aquilo três dias atrás — na manhã seguinte à noite em que Darles sequer lhe dera boa-noite após chegar do trabalho — e apagado um minuto depois. Uma mensagem de texto, pensou Vince, uma mensagem que não fui eu que mandei.

Ele leu, releu. Daí, passou para as outras conversas, mais informações sobre o que estava sendo planejado para aquela madrugada. Não conseguiu identificar com quem Darles havia conversado, mas, a essa altura, isso pouco importava.

Marque era um dos amigos mais desprezíveis de Darles, aquele que costumava levá-lo para orgias homéricas na época em que seu namoro era aberto. Talvez Vince estivesse partindo rápido demais a conclusões, mas agora já havia pintado todo um cenário dentro da cabeça.

Precisou de um minuto para pensar no que faria. Olhou as horas outra vez, calculando quanto tempo levaria para chegar à casa de Marque caso pegasse um carro particular nos próximos minutos.

[…]

Ouviu música assim que o carro entrou na rua de mansões. Saltando para a calçada, teve que olhar para o alto a fim de ver o casarão. Uma enorme escadaria de mármore subia a colina por entre as árvores, num caminho serpenteado, rumo à construção de três andares no topo. Pôde ver que algumas luzes estavam apagadas, mas não a maioria delas. A música vinha lá de cima, assim como suspeitara. A ala principal da casa tinha extremidades arredondas, como uma bandeja, e as demais se conectavam a ela feito as torres de um castelo.

O enjoo de Vince não ficava nada melhor; pelo contrário, apenas se intensificara nos últimos vinte minutos; piorava exponencialmente a cada degrau desbravado. Quando alcançou metade da escadaria, finalmente pôde ouvir vozes; distantes, em contraste com o cantar dos insetos noturnos, mas distinguíveis. Isso o fez caminhar mais depressa.

Assim que pisou na varanda, percebeu como o ar do interior da casa era quente, escapava pela porta principal entreaberta. Apoiando-se na balaustrada, conseguiu espiar por através de uma janela. A cortina quase tapava toda a vista, mas era possível ver a silhueta de três pessoas; num primeiro momento, pareceu-lhe que estavam disputando algo, dada a posição singular em que se encontravam, mas Vince não demorou a compreender. Era uma festa a qual ele naturalmente nunca seria convidado. A ideia de que Darles podia estar ali o enfureceu. O embrulho do estômago foi substituído por uma cólera cega.

Arrastou a porta para o lado sem pensar duas vezes e tapou o nariz ao ser acometido pelo odor de muitos corpos nus. A primeira coisa que viu ao entrar foi o biônico que recepcionava os convidados, mas o ignorou imediatamente, direcionando sua atenção ao restante do que havia na sala.

O cômodo era tão grande que seu apartamento inteiro caberia três vezes ali. Ocupava todo o primeiro andar. As paredes eram de linóleo claro, o chão era revestido de um material brilhoso e escorregadio. A única divisória se localizava no centro, extensa o bastante para secionar dois lances de escadas para o segundo andar. Um enorme lustre de cristais pendia do teto. Os abajures de haste comprida haviam sido dispostos de um modo muito específico, criando pontos de luz e de escuro, às vezes projetando alguma cor no ambiente. A música estava absurdamente alta. O resto da sala era toda mobiliada com sofás gigantescos, poltronas, muitos tipos de pufes — marroquinos, quadrados, no estilo baú —, ao menos duas mesas de jantar grandes o suficiente para servir doze pessoas, além de metros de tapete de pelo. Os detalhes passaram despercebidos por Vince, como adornos de ouropel, cristaleiras e pinturas a óleo. Seus olhos se focaram nas pessoas que ocupavam cada um daqueles assentos: havia roupas espalhadas por toda parte, mas nenhuma cobria os festejadores.

Cada corpo despido formava sombras nas paredes e no chão. Colocavam-se uns sobre os outros — uma amálgama de braços e pernas. Movimentos obscenos e repetitivos. Gemidos altos, palavrões, berros por cima da música.

Uma mulher de seios pesados rebolava com ferocidade sobre um homem num pufe em formato de pera, enquanto se banqueteava do outro sujeito em pé diante dela. Havia ao menos cinco jovens perto de uma das escadas, um atrás do outro, como numa fila indiana, e todos tinha o rosto modificado por um prazer vertiginoso. Nos sofás, eles se amontoavam. Alguns observavam de longe, tocando-se. Outros, usavam objetos fálicos em si mesmos ou em outras pessoas.

O biônico recepcionista — o único vestido — se aproximou de Vince, pedindo seu nome para que pudesse avisar ao dono da casa que mais um convidado havia chegado. O rapaz empurrou a máquina pelo peito e adentrou ainda mais o casarão.

O cheiro ficava cada vez mais nauseabundo. De suor, de fluidos corporais muito específicos, de borracha e de lubrificante; havia também um tom adocicado que Vince não conseguia reconhecer.

Ele sempre ouvira falar sobre as festas afrodisíacas que aquele tal Marque costumava dar para os amigos, mas o que ele via agora ficaria registrado na sua memória para sempre, e não de um jeito positivo.

Caminhou com cada vez mais urgência por entre os festejadores. Um de seus pés escorregou numa parte molhada do piso, e ele preferiu nem imaginar do que era composta aquela poça.

Quando já estava dando a volta no cômodo, tentando, sem muito sucesso, evitar qualquer contato com um daqueles indivíduos, um homem de peito peludo e semblante voluptuoso segurou seu braço. Vince deu um salto e se desvencilhou dele. O homem lhe lançou um olhar desorientado, como se lhe perguntasse o que estava fazendo vestido daquele jeito.

— Sabe onde está Darles? — investigou Vince, mas não ouviu sua própria voz. O homem deu de ombros e desistiu dele, rumando para o próximo grupo de pessoas onde ele poderia se enfiar.

Subiu as escadas para o segundo andar, segurando-se no corrimão para pegar impulso e pular para cima o mais rápido possível. Teve que desviar de uma mulher que descia. Obrigava-se a manter o olhar longe das partes púbicas de todo mundo.

Sua imaginação trabalhava como um motor. Darles nunca descrevera nada daquilo para ele — mesmo porque o acordo mútuo deles não contemplava descrições tão gráficas. Vince jamais imaginaria, de todo modo, que esse era o tipo de festa que o namorado costumava frequentar antigamente.

O corredor do segundo andar era amplo e também servia de ambiente para os farristas. Vince foi abrindo cada uma das portas e vasculhando o interior.

Aproximou-se de uma janela para o lado de fora e viu um grupo à piscina iluminada pelas luzes subaquáticas; o LED fazia a água ficar violeta. Reconheceu Marque lá fora, um homem corpulento e calvo, atracado com uma variedade de mulheres e homens; alguns parcialmente cobertos por roupas de banho. Poderia ir até lá e exigir que ele lhe contasse onde estava seu namorado, mas preferiu não arriscar — no estado em que estava, podia acabar comprando uma briga séria.

Continuou a explorar a casa. Algumas das portas já se encontravam abertas, e foi através de uma delas que viu alguém muito parecido com Darles deixar o banheiro da suíte. Parou de imediato, com a mão no batente, e voltou.

Reconheceu-o.

Filho da mãe!

Cabelos cor de ferrugem, sardas nas bochechas, nariz grande e um corpo vagamente atlético, apesar da gordura que lhe fazia parecer um filhote de urso. Durante aqueles cinco anos, Vince sempre lhe dissera o quanto o considerava o homem mais bonito do mundo. Hoje, conseguia apenas sentir nojo ao vê-lo ali, pelado, pronto para pular outra vez na cama em que outros dois sujeitos se divertiam.

Não precisou dizer nada e, francamente, duvidou até de que fosse capaz. Darles cruzou olhar com ele, e Vince pôde ver excitação resvalar para confusão, assombro e, então, medo.

— Puta que pariu! — gritou o ruivo, correndo para o canto da parede em que estavam suas roupas. Os homens na cama pararam seus movimentos eufóricos e estudaram Vince por um instante. Um discurso inflamado se formulava na sua cabeça, organizava-se de modo que sua garganta só precisava vocalizá-lo, porém, em vez disso, ele apenas apoiou as costas contra uma parede e observou calado enquanto Darles se vestia às pressas. Pensara que, quando finalmente o pegasse no flagra, socaria seu rosto, ou talvez viesse a ameaçá-lo; em vez disso, sentia uma curiosidade dolorida. Darles já havia posto a cueca e metade da calça quando gritou para os homens na cama: — Saiam, por favor! Saiam logo!

Eles se desgrudaram um do outro, saltaram para fora da cama e passaram por Vince, lançando-lhe um olhar de reprovação. Vince engoliu em seco e fechou os olhos por um instante, respirando fundo.

— Por que mentiu para mim? — Foi a primeira pergunta que fez.

Darles se virou, ainda com a camisa na mão e um semblante desesperado no rosto.

— Vince, eu não…

— Por que mentiu para mim? — repetiu. Não sabia o que Darles pretendia responder, mas nada bom poderia começar com “eu não”.

Um minuto inteiro de silêncio adveio. Darles estava reticente. Será que já não praticara outras mentiras diante do espelho? Ou será que, abusando da confiança de Vince, nunca considerara que fosse precisar de mais algumas delas?

Alguém que passava pelo corredor pareceu pronto para entrar no quarto. Vince agiu rapidamente e fechou a porta, trancando-a por dentro. Depois, voltou a encarar Darles. O ruivo não conseguiu sustentar o olhar, escondeu o rosto numa mão e respirou pesadamente. Vince o conhecia o suficiente para saber que ele estava apavorado.

— Tudo bem, eu espero você inventar uma história de última hora.

— Eu… eu nunca havia feito isso antes — entabulou ele. A voz, trêmula. — Ao menos não desde que começamos a morar juntos.

Vince poderia até rir.

— E eu deveria acreditar nisso? Assim como deveria ter acreditado na mensagem que você me mandou, dizendo que tinha saído com seus amigos do trabalho?

— Como descobriu que eu estava aqui? — Franziu o cenho.

Vince levantou o indicador.

— Pergunta errada — rebateu. — A pergunta certa é: que tipo de imbecil você acha que sou?

Ele levantou as palmas no ar, defensivo. Começou a se aproximar.

— Vince, vamos conversar, está bem?

— Não chegue perto de mim. — Não gritou, não se afastou.

— Os últimos meses foram difíceis para nós dois… — continuou.

— Não chegue perto! — A ordem finalmente se tornou um urro.

Darles congelou onde estava. Sua pele se tornava cada vez mais vermelha.

Mais um minuto de doloroso silêncio.

— Tem razão. Não há o que eu possa dizer. Nada além de que sinto muito — redimiu-se finalmente. — Sinto muito. Desculpa. De verdade. Desculpa, está bem? Olha, juro que foi a primeira vez desde…

— Não me importa quantas vezes isso aconteceu, Darles!

Sacudiu a cabeça.

— Não sei o que eu estava pensando. Tentei me convencer a não vir. Eu realmente não ia vir.

— Foi por isso que deixou para mentir para mim nos quarenta e cinco do segundo tempo, imagino.

— Isso. Isso, menti. Admito. — Abaixou a cabeça. — Eu amo você. Mas, para ser sincero, de um tempo para cá, você tem estado estranho comigo…

— Perdi minha família recentemente.

— Pare de colocar a culpa na avó doente. Venho ouvindo isso há tempo demais. Nós dois sabemos que não é apenas isso — objurgou. Agora Vince assumia lugar de réu. — Tudo o que você pensa é no próximo seminário, em pesquisas, naquele seu projeto…

— É meu trabalho. Assim como você tem o seu.

— Eu sei, mas nunca afastei você por causa do meu trabalho.

— Eu também não afastei você!

— Claro que afastou! Ora é a família, ora é o trabalho. Você não pode negar, Vince, não somos mais os mesmos um com o outro há um bom tempo.

Vince suspirou. Parte dele tendia a concordar com a acusação. Talvez o luto e a carta-proposta fossem argumentos que ele vinha usando para não admitir que eles não estavam mais tão apaixonados, mas não deixaria que Darles o transformasse no vilão daquela história.

— E sua maneira de resolver o problema foi se enfurnar num lugar como este e transar com o máximo de caras que conseguisse?

— Eu errei. Errei mesmo. Não estou dizendo que não.

Vince riu com sarcasmo.

— Que bom que admite. Agora posso voltar para casa tranquilo… — Levou a mão à maçaneta.

— Espere. Sente-se aqui. Vamos conversar — pediu. Vince literalmente temia se sentar em algum lugar e sair daquele quarto com uma doença venérea. Darles, ao perceber que o namorado não se aproximaria, começou a falar de onde estava: — Quando vim para cá, não pensei que machucaria você. Não porque acho que é um imbecil, nós dois sabemos que não é. Não pensei porque… no fundo não me importei com você. Eu estava com raiva e… triste, e magoado com você, por ter sido deixado em segundo plano. Mas agora que você está aqui, agora que vejo o que tenho a perder, percebo que o imbecil fui eu.

Vince assentiu.

— Tudo bem. Mesmo que eu aceite suas desculpas, você mesmo acabou de admitir que não funcionamos mais juntos… — Dizer isso em voz alta fez com que um soluço se formasse em sua garganta, e a última palavra saiu sufocada. — Caramba, depois de cinco anos. Cinco anos acreditando que isso não aconteceria conosco…

— Esses anos não precisam terminar. Nada precisa terminar — argumentou. — Olha, passamos três anos aceitando que cada um tivesse sua liberdade…

— Isto é diferente! — protestou. — Não estou irritado porque você foi para cama com outro, seu idiota. Estou irritado porque tínhamos um acordo! Quando nossa relação era aberta, nós dois sabíamos em que pé estávamos; era um trato que funcionava para os dois lados. Mas quando resolvemos nos comprometer, foi porque nenhum de nós se sentia à vontade se envolvendo com outras pessoas. Você quis isso tanto quanto eu. — Sentia o choro vindo. Droga! Odiava chorar fora de casa, especialmente quando sabia que suas lágrimas não serviriam para nada.

— Eu sei que quebrei sua confiança. Não vou ser escroto a ponto de pedir que você me perdoe agora. Só peço que não decida nada neste momento, de cabeça quente. Podemos tentar deixar isso para trás, conversar com mais calma depois e… olhe! — Desembolsou sua objetiva e a estendeu na direção de Vince. — Você pode programar um rastreador aqui, se quiser. Juro que nunca mais vou mentir para você. Vou reconquistar sua confiança.

Vince fez um gesto para que Darles guardasse aquilo.

— Tenho que confiar em você apenas porque confio, sem precisar rastrear cada um dos seus passos. Sabe disso.

Ele anuiu e guardou o objeto outra vez.

— Vamos chegar a isso. Da mesma forma que superamos tantos problemas até hoje, juntos. Só preciso que você me dê mais uma chance. — Havia sinceridade na maneira como ele dizia aquilo. Por um instante, Vince imaginou como seria maravilhoso poder olhar para ele com a mesma paixão imprudente de dois anos atrás, dando-lhe um voto de confiança e permitindo que o relacionamento voltasse a ser saudável como um dia havia sido. Mas, então, Darles completou: — Nós dois erramos de alguma maneira. Vamos tomar isso como um aprendizado e seguir em frente.

“Nós dois?”, teve vontade de contra-atacar. Como Darles tinha a ousadia de colocar aquela traição na mesma caixa do erro de Vince? Certo, ele admitia que nos últimos meses também havia sido responsável pelo afastamento emocional dos dois, mas uma coisa não se comparava à outra. Vince havia estado tão incomodado com a relação quanto Darles, mas jamais, em momento algum, pensara em quebrar o acordo que tinha com ele.

Teve um momento de epifania. Aquela discussão poderia durar para sempre, até que um deles não aguentasse mais e desse um basta definitivo. Quem seria estúpido o suficiente para acreditar que as coisas poderiam voltar a ser como antes? E, mesmo que pudessem, quanto tempo e energia Vince precisaria empregar a fim de finalmente perdoá-lo? Que garantia teria de que Darles não voltaria a mentir a respeito de outros assuntos — assuntos talvez até mais sérios?

Vince soltou a maçaneta e respirou fundo outra vez. Aproximou-se de Darles e lhe deu um abraço.

— Você tem razão. Vamos consertar isto.

Darles se surpreendeu, mas retribuiu o gesto.

— É sério? Você… você aceita continuar comigo? Aceita me dar mais uma chance?

Vince desfez o abraço e acariciou o rosto do namorado. O cheiro da casa estava impregnado em Darles. Nojento.

— Nossa história não pode acabar assim, num quarto como este. Vou voltar para casa. Amanhã podemos conversar melhor — estipulou. — Só peço que… me deixe ficar sozinho esta noite, por favor. Fique por aqui, ou encontre um quarto de hotel. Preciso pensar.

Ele franziu as sobrancelhas.

— Não quer que eu vá para casa com você?

— Só hoje. Por favor. Quero ficar sozinho — instou, mantendo a voz o mais branda possível. — Prometo que amanhã vou esperar você lá em casa. Aí resolveremos tudo. Está bem?

Darles não parecia confortável com a ideia, mas não estava em posição para negociar, portanto fez que sim.

Vince se afastou, destrancou a porta e saiu para o corredor. Passou pelas mesmas pessoas de antes, apenas em locais diferentes da casa. Desceu para o primeiro andar, atravessou a porta da frente e enfrentou a escadaria outra vez. Agora caminhava devagar, e permitia, finalmente, que o pranto assolasse seus olhos e bochechas.

Ele vinha se enganando, sabia disso. Seu relacionamento com Darles havia sido saudável um dia, mas não era mais.

Quando o carro particular chegou, Vince já secava as lágrimas; quando estacionou outra vez, diante do apartamento dele, pediu:

— Espere aqui, por favor.

Entrou no apartamento e observou cada objeto que havia nele. Era incrível como as coisas podiam mudar tão de repente, mesmo aquelas que pareciam irrevogáveis.

Pensou nas suculentas, das quais eles cuidavam juntos; no animal de estimação que gostariam de adotar; na viagem que fariam nas férias; pensou, principalmente, em todo o dinheiro que vinham juntando para, dali a alguns anos, poderem mudar de continente. Com isso em mente, sentou-se diante do computador, que havia deixado ligado, e acessou sua conta conjunta. Transferiu todo o dinheiro que pertencia aos dois para uma conta particular. Depois, desligou o computador, subiu numa cadeira e, com a ajuda de uma chave de fenda, desinstalou o projetor do teto.

Partiu para o quarto e abriu uma mala de viagem grande, a maior que encontrou, bem ao lado de um saco de lixo preto. Começou a jogar seus próprios pertences dentro da mala, e os de Darles, no saco de lixo. Fez isso com as roupas, os livros, os aparelhos eletrônicos; depois, rumou à sala e repetiu o processo, passando também pela cozinha.

Precisou de mais de uma viagem até o carro lá embaixo para levar as duas malas que encheu. Antes de deixar o apartamento pela última vez, viu Bastet, miando para ele. Tecnicamente, a gata pertencia a Darles, mas ele não merecia o amor nem de um animal.

Na rua, deixou a gata sobre as malas e arrastou os dois sacos de lixo até a lixeira do outro lado, aquela que era possível ver da janela do apartamento. Jogou os sacos lá dentro e puxou a lixeira para o beco. Sem pressa, entornou uma garrafa inteira de álcool etílico, junto com uma boa quantidade de combustível para motocicletas que eles guardavam desde a época em que Darles possuía uma. Riscou um palito de fósforo e esperou enquanto tudo queimava, apenas o suficiente para garantir que não sobraria nada.

Voltou para o carro e lançou um olhar de despedida para as janelas do apartamento que não pretendia visitar nunca mais. Ordenou que o motorista o levasse para o hotel mais longe dali.

Pensou outra vez que jamais havia mentido para Darles. A honestidade era a melhor política. De fato, ele nunca fora desonesto antes dessa noite. Não tinha mentido ao dizer que, quando Darles chegasse em casa pela manhã, tudo estaria resolvido entre os dois; essa parte era verdade. A mentira era que Vince estaria esperando por ele, pronto para acreditar em suas palavras de novo e recomeçar. Em vez disso, Darles encontraria um apartamento praticamente vazio. Nada que ele pudesse chamar de lar.

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