01 | Paz Perpétua |

Parte I - Segredos Revelados

"Nada há de oculto que não se torne manifesto, e nada em segredo que seja conhecido e venha a luz do dia.

Evangelho de Lucas 8,17

Adeus.

Indicação de despedida; sinal, palavra, gesto ou acontecimento que assinala a partida de alguém.

PALAVRA QUE POSSUI UM SIGNIFICADO TÃO PROFUNDO quanto o amor, a morte e o perdão. Existem situações em que temos que estar prontos para a partida iminente de alguém, mas e quando somos pegos de surpresa? Quando a morte surge sem aviso prévio e nos obriga a aceitá-la, arrancando de nós aqueles que, por meros mortais que sejam, deveriam ser eternos? Como descobrir quando estamos finalmente prontos para dizê-lo e retirar a atadura que cobre a ferida de nossos corações? O tempo não cura, apenas ameniza a dor das lembranças que agora vem acompanhada por uma tristeza que comprimi nosso coração ao ponto de nos sufocar enquanto lágrimas se derramam e a dor se torna aparente. 

Se passaram sete anos desde que passei a conviver com essa profunda dor e odiar a minha data de aniversário. Sete anos em que minha vida deu um giro de trezentos e sessenta graus e ganhou uma nova realidade onde a saudade e o luto estão sempre presentes. O sorriso por trás da tristeza tornou-se habitual e agora o mais próximo que consigo estar perto dos meus pais é diante de seus túmulos.

Meu olhar passeou pelas gravuras das duas lápides. Ler os nomes de Anthony e Lillian Collins em cada uma delas era uma realidade difícil de aceitar todas ás vezes que precisava estar aqui na data de suas mortes três dias antes do meu aniversário. As lágrimas estavam engasgadas em minha garganta, ainda não ousava derramá-las. Queria ser forte, permanecer forte como a Karyn era.

Ao menos demonstrava ser...

Por minha causa...

Ela sempre sofreu em silêncio.

Na primeira semana após o sepultamento minha irmã passou a agir como se a tragédia que havia entrado por nossa porta tivesse sido enterrada junto com nossos pais. Eu me perguntava por que ela não estava mais triste? Por que não chorava mais pela morte deles? Será que não sentia a dor que eu estava sentindo? Não os amava o suficiente para continuar enlutada?

Essa indiferença me incomodou a tal ponto de certa noite decidi confrontar sua aparente insensibilidade e alegar com toda a autoridade, que eu achava que possuía, que ela não tinha o direito varrer o luto para debaixo do tapete e prosseguir como se nada tivesse acontecido. E foi através da porta entreaberta de seu quarto que minha coragem afundou dentro do peito ao vê-la chorar copiosamente no profundo silêncio da madrugada. Sozinha na penumbra, com o rosto escondido por seus longos cabelos e o corpo deitado em posição fetal na cama, Karyn chorava na solidão tecida entre as quatro paredes que a escondia do mundo e de mim.

Ela se isolava todas as noites para lamentar a nossa perda e assim cuidar de mim. Eu jamais contei sobre aquela noite e de todas as outras em que a via chorar, nunca tive coragem de contar a verdade quando ela tentava se mostrar inabalável. Uma parte de mim sempre esperou pelo tempo em que ela estivesse pronta para desabafar. Mas os anos se passaram e com o nosso inevitável afastamento, ela ergueu uma fortaleza em volta de si, reprimindo todos os tipos de sentimentos que a deixam vulnerável. E eu sei que essa fortaleza precisava ruir e expor o luto guardado por tantos anos. Eu não era mais a criança que precisava ser poupada e agora estava pronta para retribuir o amparo.

Olhei com cuidado, ela encarava o espaço vazio entre as lápides, o semblante sério, como de alguém que travava uma batalha interior em busca de respostas que jamais teria.  Não havia qualquer expressão em seu rosto, suas mãos fechadas em punho sequer relaxam. Suor escorria de sua testa onde alguns fios estavam grudados. Fazia um bom tempo que estávamos ali em um silêncio desolador enquanto as lembranças permeavam nossas mentes. 

Uma após a outra.

Como de costume, levamos um buquê de gardênias para nossa mãe, suas flores favoritas. Também levamos uma garrafa de uísque para nosso pai e brindamos na única ocasião em que ela me deixava beber depois que completei dezesseis anos. O belo líquido âmbar de Old Parr foi derramado sobre o túmulo, era o uísque preferido dele e se eu fechasse os olhos agora, poderia vê-lo sentado em sua poltrona reclinável com as pernas esticadas sobre a mesinha de centro em uma postura relaxada enquanto saboreava o drink antes do jantar.

A lembrança me arrancou um sorriso.

— Vamos embora. — Karyn disse com a voz rouca pelo desuso, seus olhos permanecem nas lápides. — Ainda tenho que deixar você no colégio.

— Ou podemos voltar pra casa. — sugeri de uma forma descontraída. — Não vou me importar de passar o restante do dia comendo pipoca e assistindo filmes. — Prossegui tentando manter o tom ensaiado longe da minha voz.

É claro que não estava pensando nisso...

Karyn colocou as mãos na cintura e ponderou sobre minhas palavras, seus ombros estão curvados para frente, o rosto desalento e as pálpebras um pouco baixas.

Estava mais cansada do que tentava aparentar.

— Não seria uma má idéia se eu não tivesse que trabalhar hoje.

—  Sou capaz de esperar você chegar.

As sobrancelhas de Karyn se juntaram.

— Só vou voltar amanhã de manhã. — ela suspirou. —  Estou cobrindo os turnos da Anna até o filho receber alta do hospital.

— Ele ainda está internado?

Karyn afirmou com a cabeça.

— Pelo o que disseram, o Chistopher vai ficar em observação até um novo resultado do exame da cabeça ficar pronto. — ela explicou com calma. — O bom é que entra dinheiro extra e com isso consigo quitar a dívida do carro e de sobra comprar um presente decente pra você.

— Isso é o que menos me importa. — lhe concedi um sorriso. — Não sou mais criança e entendo perfeitamente da nossa condição financeira.

Os lábios de Karyn se elevaram momentaneamente.

— Você está bem crescidinha mesmo. — ela juntou nossos ombros e comparou nosso tamanho. — Já está quase da minha altura. Mas, isso não significa que você tenha que ficar sozinha a noite inteira por minha causa. — ela sentenciou de forma sutil, procurando qualquer outro lugar para olhar.  — Pelo menos no colégio você tem a companhia da Evelyn e dos seus amigos.

Havia um tom de preocupação nas palavras que ela tentou esconder. Suspirei conformada, entendendo  perfeitamente que mais uma vez, minha irmã evitava qualquer possibilidade de me deixar sozinha. Sei que ela não daria margem para uma nova discussão, principalmente por causa de hoje. De outro triste capítulo da partida dos nossos pais.

Não é como se eu tivesse escolha, afinal.

— Como você quiser... — foi tudo o que eu acabei dizendo. 

Karyn respirou fundo, aliviada e limpou o suor da testa. O silêncio desconfortante pairou no ar como uma nuvem negra sobre nossas cabeças. E eu não queria que brigássemos e muito menos tornar a situação mais desconfortante, então, como sempre, cedi a vontade dela que mais parecia um decreto exercido sobre mim. A atenção de Karyn desviou-se para o gramado em volta dos túmulos. O abandono ao nosso redor a cada ano se tornava mais aparente.

— Preciso procurar o coveiro desse lugar! Não posso permitir todo esse descaso. — ela reclamou, olhando feio em nossa volta. — Chega a ser uma falta de respeito com eles. Você pode esperar no carro se quiser, não vou demorar. — Karyn me entregou a chave do carro antes de seguir com passos impacientes pelo caminho pavimentado. Sem dizer nada, esperei que ela se afastasse, virando na pequena curva e desaparecesse entre os arbustos.

Suspirei sentindo um peso afundar meu peito e meu olhar triste recaiu para as lápides. Ajoelhei com cuidado diante delas, sentindo pequenas pedrinhas pressionarem meus joelhos.

— Eu preciso que vocês me ajudem com a Karyn. — desabafei quase sem voz, despejando as palavras incômodas na garganta. — Não é como se ela estivesse sendo negligente ou fazendo coisas erradas. É que eu... — respirei fundo, segurando a vontade de chorar. — Só estou preocupada... O humor dela não tem sido dos melhores desde que vocês se foram e... — um soluço escapou e lágrimas subiram a superfície de meus olhos. — Acho que ela ainda não conseguiu seguir em frente. O que posso fazer? — perguntei, esforçando-me ao máximo para conter o choro. 

Eu sabia que mesmo que esperasse por mil anos jamais ouviria uma resposta.

Fechei os olhos e deixei as lágrimas descerem, precisava derramá-las para seguir em frente e não me importava em demonstrar através do choro o quanto aquela realidade ainda doía em mim. Fiquei ali no silêncio que já era tão presente em minha vida. Absorvendo cada partícula de dor e de paz que aquele momento proporcionava. A brisa suave do início de tarde soprou contra a temperatura quente do meu corpo, um ato reconfortante que amenizou o desconforto que eu sentia. De alguma forma eu me apeguei ao momento, como se o vento tênue e refrescante fosse uma resposta enviada por meus pais para que eu soubesse que não estava sozinha. Aquilo me fez sorrir.

Respirei fundo, passando os dedos pela grama pisoteada.

A deterioração em volta realmente deixava a desejar, embora as duas lápides de mármore cinzentas ainda se mantivessem em ótimo estado de conservação. Os minuciosos detalhes dos nomes entalhados na cor branca permaneciam tão impecáveis quanto o ramo de oliveira em alto relevo contornando logo abaixo das datas de falecimento. Encarei aqueles números, inconformada. Oito anos passaram tão depressa que naquele instante era como se eu estivesse ali pela primeira vez, aceitando a nova realidade que a vida impôs a mim.

— Logo vou completar dezessete anos. — disse sem nenhuma empolgação. — Se alguém pudesse me oferecer um desejo, não hesitaria em pedir para voltar àquela noite e mudar o passado.

Meus olhos sustentam mais lágrimas enquanto meu coração batia dolorosamente e o choro bloqueava outra vez a minha garganta. Lidar com o luto era diferente de ter que encará-lo, de parar para refletir e imaginar como seriam nossas vidas se a morte não tivesse batido em nossa porta de maneira tão precoce. Minha vida seria diferente e Karyn sorriria mais. Não haveria esse peso enorme que carregamos em nossos ombros, dia após dia.

O vento soprou meus cabelos soltos para frente do meu rosto e agitou as folhas das árvores frondosas que circulavam o cemitério. Fechei meus olhos, aproveitando o frescor repentino, o farfalhar das folhas causavam um som agradável aos ouvidos.

— Não se pode alterar o passado. — uma voz ligeiramente doce me pegou de surpresa.

Meu coração deu um leve sobressalto e eu levantei assustada.

Bem ao meu lado direito, uma bela menina observava os túmulos dos meus pais. O cenho duramente franzido nos traços delicados de seu rosto branco feito porcelana me fazia sugerir que ela não tinha mais do que oito ou nove anos de idade. Um vestido branco godê com uma fita vermelha em volta da cintura combinava com as sapatilhas também vermelhas e com as meias brancas até os tornozelos. Os cabelos lisos e pretos escorriam pelas costas e uma franja cobria sua testa.

— Desculpa o que você disse? — perguntei de forma delicada.

— O que está feito, está feito. — seus olhos lentamente vão até mim, eram pequenos e impassíveis como dois diamantes negros. Um calafrio percorreu minha espinha. — Os males estão chegando e você esteve dormindo por todo este tempo Angeline. — sua voz apesar de infantil continha uma certeza férrea como se realmente soubesse do que estava falando.

Por um instante a confusão instalou-se em minha mente. 

Como ela sabia o meu nome?

— Chegou à hora de despertar.

Aquelas palavras me perturbam como se aranhas subissem pelo meu corpo e uma sensação desagradável desceu com dificuldade em minha garganta quando engoli em seco. Eu não conseguia ler a expressão no rosto daquela criança como também não conseguia pronunciar nada em resposta. Ela encarava a confusão estampada em meu rosto sem esboçar nenhuma emoção que pudesse me fazer duvidar de suas estranhas palavras.

— Do que está falando? — forcei minha voz surgir das profundezas.

Em silêncio a garotinha estendeu a mão esquerda. Pude ver em seu antebraço, bem no pulso, um sinal de nascença esbranquiçado quase imperceptível sobre a pele branca, possuía o formato de um caminho que se interligavam de uma ponta a outra e que não tinha fim. Um formato familiar... Como... O símbolo do infinito.

Meus olhos arregalaram em espanto quando, ainda relutante, estendi o braço esquerdo e olhei para meu antebraço, mas precisamente para meu sinal de nascença que era idêntico ao dela. Meu coração martelou forte contra a parede do peito. Embora meu subconsciente alertasse em letras grandes e vermelhas para não fazer aquilo, eu simplesmente me vi pousando minha mão sobre a dela, que a agarrou com uma força surpreendente nos dedos magros.

— O que está você fazendo? — perguntei, tentando desvencilhar daquela força incomum para idade dela. — ME SOLTE! — disparei. Meu estado de pânico aumentando quando um frio repentino tomou conta do céu e consequentemente do meu corpo. Nuvens pesadas fizeram o céu escurecer de repente e trovões ribombaram pré anunciando a chegada de uma terrível tempestade. O vento tempestuoso trazia consigo milhares de vozes que ecoavam dentro da minha cabeça. Eram gritos estridentes, dolorosos e penetrantes, carregados de dor. Um pior do que outro como se o inferno tivesse se projeto bem no centro da minha mente e ao invés de ser quente como lavas borbulhantes, era de uma frieza inominável.

Como um lugar nunca tocado pela luz do sol. 

Encontre suas raízes Angeline Griever. — a criança pronunciou em um único e decidido tom. — Está na hora de você despertar. — repetiu com seus olhos firmes encarando-me sem vacilar.

Todo meu corpo ficou tenso como a corda de um arco.

Um forte calafrio subiu por minha espinha e eriçou os pelos de todo o meu corpo. Uma fisgada ardeu em meu antebraço, queimando por baixo da minha pele. O que estava acontecendo? Minha mente disparou a mil por hora assim como meu coração. Eu estava apavorada o suficiente para desejar perder a consciência e dar fim aquela insanidade. Puxei meu braço de volta contra a força daquele aperto firme e meus olhos abriram, ardendo contra a claridade do sol.

Instintivamente os fechei com um aperto para afastar o ardor. Tateei o solo, sentindo a grama pinicando minha pele. Eu me sentei de ímpeto, ainda assustada. Olhei ao meu redor para entender o que tinha acabado de acontecer.  Eu estava suando e... tremendo. O clima continuava insuportavelmente quente com o sol desaparecendo aos poucos no horizonte e o céu adotando uma cor alaranjada de fim de tarde, mesclando com o branco das nuvens. O calor ainda não havia dado uma trégua o que não era nenhuma surpresa se não fosse por aquele frio envolvendo meu corpo como uma mortalha. Soltei a respiração presa na garganta e olhei para minhas mãos úmidas e trêmulas.

Foi como despertar de um transe. 

 "Aquele frio e aquela garota... não poderia ter sido real." — sussurrei para mim mesma.

Eu me levantei, limpando os resíduos de sujeira do meu vestido. Minha cabeça martelava com pontadas bem no meio da testa. Parte de mim ainda esperava pela aparição daquela menina, como se ela pudesse saltar de um arbusto ou sair de trás de alguma lápide gritando "Buu" como uma piada sem graça para me assustar. Respirei fundo, frisando em minha mente os últimos e mais aterrorizantes segundos da minha vida causados por um... desmaio? Não sabia com clareza, exceto que no meu entendimento, desmaios não costumam causar alucinações tão intensas.

Angeline Griver...

Estremeci. Este nem era o meu sobrenome e eu jamais tinha ouvido, sequer conhecia a origem e não havia qualquer semelhança com Collins ou com meus pais. Minha mãe adotou o sobrenome quando se casou com meu pai. Seu sobrenome Francis foi esquecido e enterrado assim como o seu passado complicado ao ser expulsa de casa por trocar o suposto noivo de infância pelo Papai. Karyn e eu nunca tivemos contato com nossos avôs maternos, não havia fotos ou qualquer objeto que poderia ser usado como desculpas para uma reaproximação. Não houve tentativa de contato de ambos os lados, os laços foram cortados para sempre em uma noite e desde então tem sido assim. Nossos avôs paternos morreram cedo, antes do meu nascimento e quando Karyn ainda era um bebê, o Collins é a única geração a ser levada em frente e que nos fazem pertencer verdadeiramente a um lugar.

Meus pensamentos evaporam ao som de passos vindos atrás de mim. Olhei para trás, assustada e Karyn aproximava-se prendendo os cabelos com uma carranca, vê-la causou em mim um alívio arrebatador.

 — Pensei que já estivesse esperando no carro. — sua voz irritadiça flutuou em minha mente ainda entorpecida. Bastaram alguns segundos de silêncio para ela encarar meu estado conturbado e enrugar a testa.

— O que foi Angeline? — indagou me olhando de forma estranha. — Aconteceu alguma coisa?

 Ainda nervosa, tentei controlar o medo que ainda estava presente em meu interior. Havia um zunido em meu ouvido que quase assimilei com a velocidade do sangue correndo em minhas veias.

 — Sim... eu... eu estou bem. — afirmei, sem ser capaz de confiar em mim mesmo para falar.

 Karyn ainda encarava-me, seus olhos examinando cada centímetro do meu rosto.

 — Tem certeza? — insistiu com a voz um pouco mais suave e maternal. — Você está pálida feito um boneco de neve.

 — Acho que a minha pressão baixou... só isso. — menti, na tentativa de fazê-la compreender que estava tudo bem. Minha irmã tinha uma habilidade incrível de examinar as pessoas e eu não queria deixá-la preocupada. — Ficamos um bom tempo nesse calor. Meu corpo não estava tão preparado como eu pensei. — tentei melhorar minha expressão rija com um sorriso discreto. 

 Após um momento avaliando meu estado, Karyn finalmente pareceu relaxar.

 — Por acaso está faltando nas aulas de educação física? — perguntou, abrindo um meio sorriso.

 — Você sabe que exercício físico nunca foi o nosso forte. — argumentei de modo afetado ela riu conforme o esperado.

— Fale por você irmãzinha. — Karyn provocou dando-me as costas ao mesmo tempo em que já retornava pelo caminho. — Vamos, vou te levar pra comer alguma coisa antes de seguir para o seu confinamento judicial.

Em minha volta não tinha nada que pudesse indicar que a presença daquela garotinha estivesse realmente ali e um novo tremor percorreu meu corpo. Sem nada a dizer, comecei acompanhar minha irmã com três passos em desvantagem e me obrigava a pensar em qualquer outra coisa.

Continuei caminhando logo atrás da Karyn, vê-la de costas me fazia pensar na sua rápida mudança. Da adolescente alta e esguia que declarava guerra com todos ao seu redor para uma adulta linda de traços marcantes. Ela arrancava os mais altos elogios dos homens e conseguia chamar atenção dos olhares por onde passava. Apesar de ter emagrecido um pouco ao longo dos anos, seu corpo como de um atleta ainda era impecável com os músculos bem distribuídos. A proeza de sempre combinar com qualquer tipo de roupa mantinha-se intacta. Uma simples regata cinza ressaltava as curvas da cintura e o quadril escondia-se por baixo de uma camisa xadrez vermelha amarrada pelas mangas em volta dele. A calça jeans skinny combinava com o coturno marrom desgastado que parecia ser o único par de sapatos que ela possuía. Os cabelos estavam amarrados num rabo de cavalo meio torno no alto da cabeça dando visibilidade para ver alguns fios grudados na nuca.

Seguimos pela trilha pavimentada ladeada por uma vasta distribuição de lápides, mais ao fundo próximo dos altos muros, mausoléus antigos destacavam-se entre as pequenas estátuas de gesso. Anjos e querubins enfeitavam o ambiente junto aos arbustos podados. Uma área limpa e reservada para quem tinha fundos financeiros para bancar. Eu me peguei pensando em quantos entes queridos estavam enterrados por tantos e tantos anos. A morte sempre foi natural aos seres vivos e um grande mistério para quem buscava compreender o que acontecia depois dela. O céu e o inferno, limbos e reencarnações ou simplesmente micro-organismos que retornavam para a terra. Havia uma infinidade de possibilidades teóricas incapazes de desvendar esse mistério em sua totalidade.  Eu preferia acreditar que meus pais estavam dormindo em paz por toda eternidade.

Chegou à hora de você despertar...

O sussurrar trazido pelo vento agitou outra vez o meu coração. Parada, eu me encolhi dentro de mim mesmo feito uma criança assustada, mas não ousei fechar os olhos e fiquei a espera de uma nova aparição. Meus nervos tremendo como se tivesse frio e o peito afundando a cada respiração.

 — Você quer ajuda para andar? — a voz de Karyn me desprendeu. Meus olhos focaram-se em sua imagem a uma curta distância, ela havia parado e encarava-me com cautela. — Por que se for desmaiar é melhor...

 — Eu estou bem, não se preocupe. — a interrompi e apressei os passos para alcançá-la, olhando ao meu redor para ter certeza que nada surgiria.

 Alguns pontinhos já brilhavam no céu vespertino. Os portões do cemitério tornavam-se cada vez maiores enquanto nos aproximávamos. Pela primeira vez, desde que as visitas se tornaram anuais neste lugar, me sentia aliviada por finalmente deixá-lo para trás. Embora o que tinha ocorrido comigo ainda fervilhava em minha mente, eu esperava esquecer como um sonho ruim.

 — Conseguiu falar com o coveiro? — perguntei para afugentar o pensamento.

 Karyn anuiu.

 — Fizemos um acordo e ele vai aparar a grama em volta dos túmulos o mais breve possível e plantar algumas mudas para que fique bem cuidado.

 — Algo me diz que ele não aceitou de bom grado. O que você fez? — perguntei com curiosidade. — Ameaçou enterrá-lo vivo?

— Não vou negar que essa idéia me passou pela cabeça. — ela respondeu com um sorriso sutil. Porém pude perceber uma linha de preocupação em sua testa antes de prosseguir. — Ele cobrou uma quantia mais alta do que imaginei. Mas vou dar um jeito.

 — Manter esse lugar não vai ser nada fácil. — falei devagar e em voz baixa, como se tivesse receio de ofendê-la. — Se tivéssemos dinheiro sobrando...

 — Eu vou conseguir. — Karyn declarou, decidida.

 Balancei a cabeça em silêncio sabendo que contrariá-la seria o mesmo que dar murro em ponta de faca. Karyn esforçava-se o máximo que conseguia para não deixar faltar nada para nós e se recusava a aceitar que eu trabalhasse para ajudar nas despesas com a desculpa de que atrapalharia meus estudos. Em suas palavras bem claras e decididas, no que depender dela, passar o dia atendendo pedidos estava fora de rota em meu futuro. 

 — Estou a tanto tempo trabalhando para o Morgan que estou pensando em pedir para tornar minhas horas extras um horário fixo. — as palavras fazem parar no meio do caminho. 

 Karyn interrompeu um passo e virou de repente, encarando minha seriedade com seus olhos cinzentos e brilhantes como o céu sobre nossas cabeças.

 — Você não deve estar falando sério. — respondi quase em tom de repreensão. — Você já parou para pensar que passa a maior parte da sua vida cuidando daquela cafeteria do que de você mesma? — cruzei os braços, a indignação me dominando. — Eu sei que temos muitas despesas, mas não vai adiantar nada todo o seu esforço se você morrer por excesso de trabalho.

 — Em primeiro lugar não exagere. — Karyn apenas riu. — E em segundo lugar, se eu morrer pelo menos você não vai precisar se preocupar com essa dívida.

 Quase senti a necessidade de rir na cara dela.

 Ela estava mesmo falando sério?

 — Em compensação vou herdar as dívidas do seu funeral. — retorqui, minhas palavras saíram mais duras do que eu pretendia. — Então não vejo tanta diferença.

 — Já pode me enterrar aqui se quiser. — Karyn revidou e arqueou uma de suas sobrancelhas bem feitas, desafiando-me a ceder a sua provocação.

 Mas suas palavras doeram em mim e me esforcei para não demonstrar.

 — Não teve a menor graça.

 — É claro que teve. — Karyn colocou as mãos na cintura. — Você que não soube interpretar a piada.

 — Dever ser porque esse seu lado piadista só aparece uma vez por ano.

 — Haha! Isso sim não teve graça nenhuma.

 Os seus olhos semicerram em mim e ficamos paradas olhando uma para a outra. Uma situação quase cômica diante de nossas posturas. Eu de braços cruzados e ela com as mãos na cintura, prontas para defender nossos argumentos em um duelo de troca de olhares. Karyn foi a primeira a cair em si e a ceder com um sorriso ameaçando sair dos seus lábios e consequentemente dos meus. O seu rosto sempre se iluminava quando sorria, mesmo com uma expressão cansada e grudenta como agora. Ela era uma cópia perfeita de nossa mãe em seu aspecto físico; os cabelos pretos e lisos da raiz até as pontas, nos incisivos olhos de ardósia e nos lábios cupidos, rosados pelo batom. Uma feição suave que lhe atribuía certa brandura e que era completamente diferente de sua personalidade taciturna e seu estilo rock star.

 Com a tensão desfeita nós voltamos a caminhar, os portões de ferro surgindo logo à frente. Karyn limpou o suor que escorreu de sua têmpora e respirou fundo com seu habitual mau humor enquanto parecia insultar o calor — já ameno naquela altura — com os piores xingamentos. Ri comigo mesmo e senti um formigamento em meu pulso, a epiderme em volta do meu sinal de nascença estava vermelha, destacando-se em volta da pele branca. Engoli em seco e fechei minha mão em punho. Desejando fazer o incômodo ardente desaparecer como em um passe de mágica.

 — Odeio o verão. — Karyn resmungou sem desconfiar de nada. — Não existe nada de proveitoso. Apenas insetos, gente fedendo a suor e crises de insolação.

 — Eu gosto. — eu disse para contrariá-la. — Praias, sorvetes e passeios ao ar livre.

 Karyn revirou os olhos e adiantou os passos ao avistar seu Chevy Cavalier antigo esperando do lado de fora. Logo tratei de igualar nossos passos e cruzei nossos braços para garantir que não ficaria mais sozinha. 

 — O que foi? Tem medo esbarrar com algum fantasma por aqui? — ela me olhou com a testa franzindo.

 — Você acredita em fantasmas? — disparei automaticamente, ignorando a pergunta.

 — É claro que não. — Karyn afirmou e me lançou um olhar intrigado. — E você? Acredita nessas coisas?

 Inevitavelmente, senti um calafrio e o afastei para longe.

 — Eu não sei... acho que não. — falei, tentando tirar da minha mente os últimos minutos antes dela reaparecer. — Mas acreditando ou não, não significa que não existem.

 — Pode até ser... — ela considerou. — Mas acredito que acontecem muitas coisas ruins no mundo e que assustam as pessoas. Não precisamos de fantasmas para piorar as coisas. 

 — Você não acha que foi um pouco reflexiva? — olhei para Karyn, que naquela altura, confidenciava uma expressão de alguém cuja mente tivesse ido parar a bilhões de anos-luz daqui.

 — É... talvez... 

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