9 - Mikael

Mikael passou apressadamente pela entrada do hospital carregando seu pai nos braços. A mancha crescente e úmida na faixa improvisada mostrava que a hemorragia aumentava e ele precisava urgente de auxílio médico.

A recepção e os corredores estavam vazios. Cadeiras, vasos de planta e papéis revirados e espalhados por todos os lados, davam a impressão de que um furacão ou algo parecido tinha passado por ali.

— Alguém me ajude! — o jovem gritou desesperado, e desesperou-se ainda mais por receber em retorno apenas o eco de sua voz pelos corredores desertos.

Colocando o pastor cuidadosamente no chão, ele retirou sua jaqueta suja de sangue e improvisou uma almofada, onde pousou a cabeça do enfermo. Andando nervosamente pela sala e revirando armários e gavetas, ele procurou sem sucesso algo para limpar a ferida ou pelo menos refazer a faixa que já estava ensopada de sangue.

— Tente usar isto! — disse uma voz masculina, e virando se para um dos corredores viu um jovem, vestido com roupas brancas rasgadas e manchadas de sangue. Em suas mãos, o jovem tinha uma maleta grande, com o símbolo de primeiros socorros.

Apesar do olhar caridoso do jovem que aparentemente oferecia ajuda, Mikael havia passado por muitas coisas esta manhã que o faziam duvidar de tudo e de todos.

— Para trás! — ele disse em tom ameaçador, escondendo uma das mãos nas costas, como se quisesse fingir que estava armado para intimidar o desconhecido. — Eu não quero te ferir, mas preciso da maleta, então a deixe no chão e vá embora.

— Primeiramente eu sei que não está armado — respondeu o desconhecido, dando um passo cuidadoso em direção ao senhor deitado no chão —, além do mais, acho que não pode ajudar ele sozinho.

— Mesmo sem arma — Mikael respondeu revelando a mão que estava oculta, e cerrando os punhos em posição de luta —, eu sou mais forte que você, e vou passar por cima de qualquer um que tentar ferir meu pai.

— Eu não sei pelo que vocês passaram e eu mesmo passei por muita coisa hoje, como pode ver — disse o outro jovem, abaixando-se lentamente junto ao pastor e abrindo a maleta —, mas eu sou enfermeiro desse hospital e o meu dever é com os enfermos, então vamos cuidar de seu pai e depois vocês podem fazer o que quiserem.

— Me desculpe por isso — disse Mikael desarmando sua postura— hoje está sendo um dia muito louco, e está difícil confiar nas pessoas.

— Tudo bem — disse o jovem enfermeiro —, meu nome é Raphael. Ajude-me a tirar essa faixa suja.

— Eu sou Mikael e meu pai é o Pastor Benedict Higgins — ele disse, erguendo cuidadosamente o tronco do pai, enquanto Raphael retirava as ataduras.

— Precisamos remover o projétil urgente! — disse o enfermeiro, vendo que o ferimento do Pastor sangrava bastante e o perímetro em volta dele parecia bem inflamado — Venha, vamos levá-lo para o centro cirúrgico!

Sem pensar duas vezes, Mikael pegou o pai nos braços, enquanto Raphael se apressava em trazer uma maca onde colocaram o pastor. Com perícia o enfermeiro fechou provisoriamente o ferimento com um curativo simples, e injetou um sedativo e analgésico no pastor.

Seguiram com urgência até o centro cirúrgico do primeiro andar e no caminho Mikael observou atônito o hospital abandonado e suas salas reviradas.

Colocando o pai na mesa de operação, ele se afastou e observou Raphael trabalhar rapidamente, pegando os itens que precisaria para o procedimento.

— O que aconteceu aqui?— perguntou Mikael quebrando o silêncio, ao ver um jaleco próximo à mesa de operação, junto a um estetoscópio.

— É uma longa história !— respondeu Raphael, enquanto colocava o avental e a luva — Depois que cuidar de seu pai, nós teremos muito tempo para conversar. Enquanto isso, você pode pedir ao Deus de seu pai para guiar minhas mãos, acho que vou precisar.

— A única ajuda que ele precisa agora é da sua, cara — Mikael disse, enquanto saía da sala — Vou deixar você trabalhar, preciso comer alguma coisa senão você vai ter que cuidar de mim também.

Seguindo em direção à recepção, onde havia visto máquinas automáticas de refrigerante e snacks, ele pegou uma cadeira, a arremessou contra o vidro de uma delas, retirou algumas barras de cereais e começou a comer.

Estava intrigado com a situação do hospital, mas o que mais chamou a sua atenção foram os jalecos, uniformes e instrumentos que os médicos geralmente carregavam consigo durante o expediente, largados no chão em pilhas, como se quem os usava tivesse evaporado. Lembrou-se do artigo que lera essa manhã, no tablet de seu pai, sobre os desaparecimentos e a lista de nomes precedidos de títulos acadêmicos. Haviam vários doutores naquela lista. Será que Raphael sabia algo sobre o que estava acontecendo?

De volta para ao bloco cirúrgico, Mikael viu que seu pai já se encontrava entubado e que o jovem já trabalhava no ferimento com agilidade e mãos hábeis de um profissional. Era realmente muita sorte ter encontrado ele ali, já que, como não havia nenhum médico, mesmo com todo equipamento disponível, seria impossível para ele remover a bala e salvar seu pai.

Enquanto Raphael trabalhava, Mikael o observava com olhar curioso. O enfermeiro não aparentava ter mais que vinte anos, e mesmo assim mostrava um conhecimento médico impressionante. Por si só, um enfermeiro que opera uma pessoa com tanta firmeza e autoridade já seria de se estranhar, sendo tão jovem então, causava espanto.

Estranhou também ao perceber que uma admiração estranha por aquele jovem crescia dentro dele. Ele havia aparecido num momento de desespero trazendo alívio, mas o sentimento que brotava em Mikael era mais que gratidão. Se Raphael fosse uma mulher, poderia até pensar que estava atraído sexualmente, mas ele não era então preferiu afastar isso de sua cabeça e oferecer-lhe ajuda.

Aproximando-se, viu que a bala já havia sido extraída, e o enfermeiro realizava a sutura do corte. Havia trabalhado realmente rápido, sendo que até médicos experientes demoravam horas e horas para um procedimento daqueles e Raphael concluiu com menos de uma hora.

Mais de perto Mikael pôde olhar bem para o outro jovem. Era mais ou menos da sua altura, porém menos musculoso. Seus cabelos negros e lisos com corte moderno estavam tingidos com luzes feitas em tinta branca, criando um efeito de contraste e seu rosto com fortes traços orientais conferiam a ele uma beleza exótica, complementada por profundos e brilhantes olhos negros levemente puxados.

— E então, cara — disse Raphael após terminar o curativo —, quem atiraria em um pastor?

— E quem garante que ele é realmente pastor? — rebateu Mikael, se perguntando se o outro havia percebido que ele o olhava — E se eu estiver mentindo pra você e formos na verdade bandidos em fuga?

— Você não é bandido Mick — respondeu Raphael sorrindo em tom divertido — você é um jovem bom e correto. Um típico filho de pastor!

— Você não pode ter certeza disso! — disse Mikael, ofendido pela certeza do outro.

— Ah não? — respondeu Raphael, olhando Mikael nos olhos — Você com esses músculos e aquela jaqueta, foi com certeza o astro de futebol do colégio e um cara popular, mas não possui nenhuma tatuagem visível nem orelha furada e ainda tem esse corte de cabelo comportado. Resumindo, eu tenho certeza que você é o filho comportado de um pastor.

— E quanto a você? Como um enfermeiro de vinte anos tem toda essa convicção de operar alguém? — Mikael perguntou ironicamente, visivelmente irritado por ser tão óbvio de se analisar — Isso sim é estranho!

— Hahaha. Eu tenho dezoito anos, cara — o enfermeiro respondeu sem ligar para a provocação e baixando os olhos para o homem na mesa de cirurgia continuou: —, quanto a essa habilidade com medicina, eu não sei como faço. Apenas aparecem as informações em minha mente, e simplesmente faço o que tenho que fazer. Tem muito tempo que isso acontece.

— Vamos levar seu pai até um daqueles quartos ali atrás — Raphael disse após um breve silêncio, apontando para umas portas nos fundos da sala de cirurgia —, coloque-o na maca.

Colocando o Pastor na maca, eles o levaram e o colocaram em um leito. O enfermeiro ajeitou os equipamentos, os conectou ao enfermo e os ligou.

— Vou deixá-lo em coma induzido por enquanto, para acelerar sua recuperação — disse a Mikael, enquanto revisava os últimos detalhes —, mas ele está fora de perigo.

Mikael foi até uma sacada e curvou-se sobre o guarda-corpo. Agora que seu pai estava bem, se sentia mais aliviado. Porém, as pessoas que o queriam morto, ainda estavam por aí e, se foram até a igreja e viram os corpos de Jim e Scott, possivelmente estavam à sua procura com ainda mais ódio.

— O líder de jovens da igreja dele — disse ao ver que Raphael se aproximava e se curvava sobre a proteção ao seu lado — Quando o sol não apareceu e a notícia de pessoas desaparecendo no mundo todo se espalhou, os fiéis enlouqueceram. Acreditam terem sido deixados para trás por Deus, e culpam meu pai por não guiá-los corretamente.

— E o que você acredita? — perguntou-lhe Raphael, apontando para o céu negro. — Digo, faltam dez minutos para o meio dia, e parece mais uma noite sem lua, além de muitas pessoas desaparecendo como se evaporassem. Será o arrebatamento mesmo?

— O que eu sei, cara — Mikael respondeu —, é que, se foi mesmo um arrebatamento, meu pai e todos que seguiam a bíblia, foram enganados. E que ele fez o que pode com as informações que tinha. Não é culpa dele e é injusto caçá-lo assim e crucificá-lo por isso.

— Pelo que sei Mick, — disse Raphael — A maioria das crucificações são injustas. É típico do ser humano querer apontar um cristo.

— Mas este não será meu pai! — disse Mikael, fechando os punhos com tanta força, que se tivesse unhas um pouco maiores, elas lhe entrariam na palma da mão — Não deixarei que ele seja julgado, sendo que ele se privou de muito para permanecer no caminho, só fez o que estava instruído pela bíblia a fazer, ensinou o que aprendeu lá e Deus mudou de idéia e resolveu levar os ateus.

— Nisso tenho que concordar — disse Raphael —, eu conhecia bem todos esses médicos que desapareceram aqui, e eram todos ateus.

— O que aconteceu de verdade aqui Raphael? — Mikael perguntou, olhando para o jovem e suas roupas rasgadas e manchadas de sangue. — Você presenciou algum desaparecimento?

— Eu... — Raphael começou a responder, mas algo o fez se calar. Uma luz tímida começou a brotar no céu. Lentamente a densa escuridão foi se dissipando e em alguns segundos, o sol brilhava imponente no céu sem nuvens.

Por um instante ficaram em silêncio, sem entender nada, apenas olhando para o céu. Era como o final de um filme de terror, quando a noite acaba e os sobreviventes podem comemorar por estarem vivos. Mas o sol não trazia tanto alívio assim, ainda tinha o fato de as pessoas terem sumido misteriosamente.

— Eu tenho que te mostrar uma coisa! — continuou Raphael — Vem comigo!

Mikael o seguiu tentando acompanhar seus passos apressados. Saíram do leito onde o Pastor repousava trancando a porta atrás de si. Passaram pelo corredor do centro de tratamento intensivo, e mesmo vendo os corpos nos leitos, ele ignorou, já que Raphael também o fez.

Chegaram a uma sala cheia de monitores e na porta ele pode ler que se tratava da sala de monitoramento. O enfermeiro sentou-se de frente para um dos computadores, digitou alguma coisa e deu início a um vídeo.

Na tela, Mikael pôde ver Raphael entregando um livro a um paciente, e este escreveu algo e o devolveu. Em seguida o jovem, depois de ler o que estava escrito, pegou o aparelho de aferir a pressão, mas quando se aproximou e colocou o aparelho em volta do braço do paciente, a sala pareceu tremer, e ele foi arremessado contra a parede do outro lado da sala, enquanto o paciente foi envolvido por uma luz e desapareceu.

— Dá pra ver isso em câmera lenta? — perguntou Mikael, visivelmente incrédulo no que estava assistindo.

Voltando do ponto onde ele preparava o esfigmomanômetro, ele iniciou em câmera lenta, e puderam ver com clareza que a luz que envolveu e consumiu o paciente, tinha forma de asas. Mikael viu também o momento em que Raphael acertou a mesa e o osso de seu joelho se partiu, rasgando-lhe a pele e a calça, ao mesmo tempo em que sua cabeça também se partiu contra a parede.

— Você se machucou! — Mikael perguntou, procurando ferimentos no joelho exposto pelo buraco em sua calça e em sua nuca — Mas não tem sequer uma cicatriz.

— Pois é — disse o enfermeiro, enquanto digitava —, eu também me assustei, mas ficou mais estranho ainda! Olha isso!

Voltando a atenção para o monitor, Mikael viu Raphael no chão, desacordado, sob uma poça de seu próprio sangue. Em câmera lenta, assistiu admirado ao momento em que o osso do joelho do rapaz se reconstruiu, seguido de músculo, carne e pele, e em seguida seu crânio também se juntou.

— Você já viu algo assim tão incrível?— perguntou-lhe Rafael, virando-se na cadeira para olhar de frente para ele.

— Na verdade já! — Mikael disse, para surpresa do outro— Esse sangue em minha roupa não é meu e nem do meu pai.

— Eu não sei explicar o que aconteceu — continuou ele, forçando-se a lembrar de detalhes que preferia apagar da memória —, mas quando eu vi o diácono falando ao celular que iriam machucar meu pai, eu fiquei cego de ódio. Eu estava a três metros dele, mas de alguma forma eu me movi muito rápido e o atingi. Eu estava olhando pra ele, enquanto ele falava, e milésimos de segundo depois eu estava em pé ao lado de seu corpo inerte e ensanguentado.

— Com Scott foi ainda pior — continuou, depois de uma pausa, vendo que Raphael prestava-lhe total atenção —, ele apertou o gatilho com a arma apontada para o meu pai. De alguma forma, eu atravessei a distância que nos separava, o estraçalhei com as mãos nuas e o arremessei a uma distância de uns dez metros. Eu não me lembro do que aconteceu, só que o sangue dele estava em mim e por todo altar e seu corpo completamente dilacerado.

— Uau! — exclamou Raphael, — Será que somos alguma espécie de mutantes? Tipo os X-Men?

— Como consegue? — disse Mikael, saindo da tensão de relembrar as cenas, e narrá-las, e rindo do que o outro disse — Como se mantém calmo perante essa loucura?

— Ah meu amigo — disse ele sorrindo também —, quando se cresce em um orfanato e não é adotado, você se acostuma com decepções, e passa a confiar mais em si para tudo. Não é uma loucura qualquer que vai paralisar-me de medo.

— Eu imagino como deve ter sido difícil — disse Mikael, colocando a mão em seu ombro —, meus pais me adotaram quando eu tinha três anos de idade e todo esse tempo eu pensei em como seria, se não tivessem me escolhido.

— Então temos mais algo em comum— disse Raphael, puxando uma cadeira para que ele se sentasse também — Além de mutantes, somos órfãos.

Ambos riram agora mais descontraídos e permaneceram sentados, enquanto Raphael lhe mostrava os vídeos do desaparecimento dos demais médicos e dos momentos de caos e desespero dos funcionários que abandonaram o local. O mesmo padrão se seguiu: O tremor, a figura humanoide brilhante materializando-se e envolvendo os médicos com asas, e as roupas largadas em pilhas no chão.

Decidiram nomear aquelas figuras brilhantes, e passaram a chamá-las de ANJOS.

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