Capítulo 3

CENTO E POUCOS ANOS ATRÁS

        O final do século XIX envolvia o país em problemas semelhantes e equidistantes ao longo das suas fronteiras. Tanto o Norte, quanto o Sul da nação viviam em lutas pelas terras dominadas pelos latifundiários e em busca da tão sonhada reforma agrária, fato que se alastraria pelo longo dos anos. Diferenciava-se do resto do mundo que passava por transformações políticas, religiosas e industriais em seus continentes evoluídos; pelos problemas de racismo e segregação nestes e também na maioria dos menos evoluídos; pelas revoluções culturais e científicas que começavam a expandir-se pelo planeta, sendo que deste ele também participava e de forma reconhecida, principalmente na Europa, através dos seus intelectuais, artistas e cientistas. Todavia, no seu bojo, limitava-se aos assuntos da terra e do que delas pudessem tirar.

        Na região Norte e principalmente na Nordeste formava-se enormes latifúndios à custa das armas e de jagunços a mando e a soldo dos senhores latifundiários. O governo também lhes colaborava e instituíam os volantes, conhecidas do povo como macaco. Eram grupos de policiais militares fortemente armados que tentavam garantir a lei e a ordem no Nordeste, mais precisamente na região do alto São Francisco, conhecida como terra de ninguém.

        Na contra ação, reuniam-se bandos de pessoas que se consideravam injustiçadas pelo governo e pelos latifundiários. Armados iguais aos volantes, vivendo à margem da sociedade, foram denominados de cangaceiros e na sua filosofia, lutavam em busca de justiça.

        Tal justiça, porém, não poupava sequer aos inocentes que por lá viviam. Muitas foram as mortes bárbaras e banais cometidas por cangaceiros e volantes. Entretanto, muitos deles acabariam por se tornarem famosos e sua ideologia passaria em futuro próximo a ser tema de debates e ideias. Entre estes, Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, chamado de o Rei do Cangaço, um sertanejo simples que testemunhou logo na sua juventude as desavenças e assassinatos que envolviam os problemas das terras, tendo sua própria família dizimada por ela. Como saída e pelos pensamentos de vingança alinhou-se ao cangaço seguindo a outros cangaceiros e, com o estes, também teve muitos seguidores.

        As caatingas do sertão nordestino eram apinhadas de gente atirando por todos os lados. O solo seco e árido castigava o simples sertanejo não envolvido nos volantes ou no cangaço. Parecia mesmo que o Todo Poderoso Senhor do Universo nunca tinha voltado seus olhos para lá. Mas o bravo sertanejo não deixava de apoiar-se na fé. No seu casebre, em que tudo faltava, jamais deixou de se fazer presente a Imagem de Cristo, do Padim Ciço e da Virgem Maria. Ao sair ou ao retornar para o lar, ele sempre se colocava em frente às gravuras ou estátua de barro que representavam sua fé tirava o chapéu de couro e fazia o sinal da cruz, pedindo proteção e chuva para a pastagem, a roça, o gado, a pequena agricultura de sobrevivência e para o alívio da sua sede.

        Volantes e cangaceiros armavam e promoviam verdadeiros palcos de guerra, sem regras e sangrentos. O povo vivia no cerne do fogo cruzado entre eles, sem defesa, com a vida valendo menos que uma bala de fuzil. As mortes eram bárbaras, cruéis, muitas na ponta da faca do cangaceiro ou do volante. O cortejo fúnebre dos que tombavam era feito em vala comum de tão grande que se fazia o número de assassinatos, mas todos, sem exceção, contavam com as preces dos sertanejos. Até mesmo os integrantes do cangaço ou da volante. Inclusive estes, ao se defrontarem com cortejos, romarias e rezas tiravam o chapéu de couro e se ajoelhavam em sinal de respeito e de temor a Deus.

        Em busca de cada vez mais terras e enriquecimento, os latifundiários, geralmente políticos, militares e estrangeiros ricos sediados no Sul, alimentavam e armavam os seus volantes defensores. Sofisticado arsenal bélico, importado ou contrabandeado, era usado, não só contra os cangaceiros igualmente armados, mas contra aquele povo humilde, cuja única arma era a fé e a devoção àqueles que lhes tratavam da alma. Alma sedenta de água e apavorada de terror.

        Na caça aos cangaceiros, as volantes invadiam vilas e vilarejos, saqueavam, ateavam fogo e matavam simples suspeitos de colaborarem com os bandos arruaceiros, ignorando leis e direitos. A própria vida não dotava valor nenhum e morrer prematuramente fazia parte dos pensamentos e do medo do povo. Havia genocídios, infanticídios, latrocínios e toda sorte de matança que se podia imaginar. Matava-se até pelo simples prazer de matar. O escolhido, geralmente para servir de exemplo aos demais, era pendurado de cabeça para baixo e aos poucos iam lhe tirando o couro.

        Mas não era fácil para os volantes localizarem os cangaceiros e muito menos prendê-los. O governo federal insistia em se conseguir prisioneiros na tentativa de se saber dos seus esconderijos, contingente, das armas que possuíam e das ações prévias dos bandidos. Entretanto, eles não se deixavam caçar e se eventualmente isso viesse a acontecer, punham fim à própria vida ou tombavam na tocaia dos companheiros. Era indigno ao cangaceiro morrer nas mãos ou pelas balas dos volantes. Mais ainda, pelas mãos ou balas dos jagunços.

        “Cabra macho morre de velho ou se deita como mulher”. Essa máxima levava o cangaceiro a temer pela captura e a rezar pela boa pontaria do companheiro da tocaia. Morrer por um ideal que muitos sequer sabiam existir, mas morrer dignamente, como um verdadeiro cabra macho era tudo o que queriam. Pediam a Deus que assim fosse.

        Volantes e mais volantes, armas e mais armas, ordens e mais ordens vinham a toda hora do governo na tentativa de se por um cerco total aos cangaceiros, encurralando-os de vez. Mas estes também eram tantos e espelhados por áreas tão vastas que anulavam os planos militares. Por serem todos nativos das matas e das caatingas, a conheciam como a palma da mão e não raro, liquidavam dezenas de volantes em tocaias e armadilhas, deixando os corpos dos soldados mutilados pendurados ao longo das estradas, servindo de pasto aos urubus.

        As forças de defesa e ataque próprias dos latifundiários, os jagunços, muitas vezes se somavam aos volantes e tornava-se difícil ao povo saber quem era um e quem era o outro. Esta confusão aumentava-lhes a insegurança e a lei do silêncio passava a ser a única por ali cumprida e respeitada. Sem forças para lutar, aceitavam a sorte que Deus lhes impunha, cujas lágrimas e dores se faziam como única manifestação possível.

        Não eram muito diferentes os atos e ações dos cangaceiros. Adotando uma filosofia tipo “Robin Wood”, tirando dos ricos e distribuindo aos pobres, tentavam se fazer passar por seus protetores. Na verdade, tal proteção nunca existiu, pois eles jamais se encontravam nos mesmos lugares que as volantes, exceto quando em confronto e geralmente nas caatingas, distantes das vilas e dos povoados. O cangaço não se fazia presente durante as mortandades, saques e queimas das vilas e vilarejos, mas logo após o ato para lá se dirigia com algum tipo de ração alimentícia e muita promessa de justiça e retaliação. Mas nas entrelinhas podia-se ver que apenas procuravam por algum volante ferido, escondido pelo povo em qualquer dos casebres. Quando o localizavam cometiam toda sorte de atrocidades, no volante e no seu protetor.

        Ao povo, cabia somente acatar as promessas, ora dos cangaceiros, ora dos jagunços, ora das volantes, a lhes prometer melhoria de vida e futura paz. Paz que nem de longe poderiam imaginar. Paz tão seca quanto o solo que estavam, tão difícil quanto a água vinda dos céus.

        O povo sabia que os cangaceiros praticavam os mesmos atos dos volantes, ora em busca de algum delator, ora para não deixar rescaldos aos soldados que vinham em seu rastro. As cenas sempre se repetiam. Infanticídio, genocídio, saque e fogo. Muitos dos lugares a sofriam por duas vezes quase que simultâneas. Uma pelo volante e outra pelo cangaço e sempre pelos mesmos motivos. Aos homens de bem continuava a restar a fé em Deus, em muitos já totalmente abaladas e ao escudo protetor do Padre Cícero, o sempre e eterno Padim Ciço, que nunca se cansava de alimentar uma tênue chama de vida para com ela equilibrar e manter a esperança daquela gente. Eram inúmeras as procissões de fé que faziam, também respeitadas por jagunços, cangaceiros e volantes. Nelas não aconteciam tocaias, massacres e mortes. Qualquer deles, ao deparar-se com um desses eventos, se descobria e orava com a cabeça baixa e olhos para o chão, em profundo respeito pelas leis divinas. A temeridade que sertanejos, jagunços e cangaceiros nutriam por Deus era tanta, que difícil se fazia imaginar o sangue frio que tinham ao praticar seus atos de selvageria.

        A região Sul passava' por problemas semelhantes. Apesar de já ser considerada como mais evoluída, tal e qual a do Nordeste, tinha na terra e nos latifúndios a meta visada por todos. Poder-se-ia dizer ser a terra um problema crônico do país, fosse ela produtiva ou improdutiva, fértil ou estéril. Se produtiva, os ricos fazendeiros as queriam, se improdutiva, tornava-se alvo da especulação imobiliária.

        Suas cidades principais mostravam algum desenvolvimento industrial e nos seus estados mais ricos moravam intelectuais, artistas e abastados, na grande maioria estrangeiros e alguns até oriundos dos estados nordestinos, Eram pessoas que tiveram a sorte de por lá enriquecer emigravam para o Sul a fim de se livrarem das volantes e do cangaço.

        Era também para os estados do Sul que se dirigia a maior parte dos imigrantes. O clima mais ameno que o do Norte e do Nordeste era preferido por alemães, holandeses, ingleses, japoneses, italianos, portugueses, espanhóis e muitos outros, começando uma mistura étnica que se estenderia pelos longos dos anos, formando e moldando o exótico perfil de uma raça diferente, uma mistura genética que no futuro agradaria a todos.

No Sul não havia seca, volantes e cangaceiros, mas em comum, tinham os jagunços, latifundiários e povo sofrido. Não havia também guerras entre bandos, nem assassinatos desenfreados, mas não escapavam de uma morte lenta e desumana que a esse povo era destinada pelo confisco ilegal das suas terras e a ausência de um meio de sobrevivência, sem nenhuma proteção governamental imposto pelos latifundiários. Simples camponeses, imigrantes, que em seus países de origem já não possuíam quase mais nada, aventuravam-se pelos sete mares e aqui aportavam.

Trazendo no rosto o cansaço e no coração a esperança de vida digna, se juntavam aos migrantes de outros estados e formavam suas glebas. Sabiam que com a sua mão-de-obra e os conhecimentos trazidos dos seus países de origem ali também poderiam produzir. Unidos, construíam pequenas, mas prósperas lavouras, das quais faziam a sua fonte de sobrevivência. A experiência os aproximava de terras férteis e geralmente devolutas, sobre as quais começavam a desenvolver suas culturas.

Entretanto, o interesse latifundiário formado em torno dessas mesmas terras devolutas por grupos de pessoas semelhantes aos latifundiários nordestinos, fazia ver e sentir aos colonos a ameaça que as pequenas e até bem organizadas lavouras representavam. Astutos, ricos e bem equipados, tanto em armas como em máquinas, os latifundiários geralmente não demoravam a de tudo se apossar, expulsando os lavradores para cada vez mais longe.

Corno poder nas mãos, apoiados por partido políticos de peso que formavam na base dos governos, empurravam seus jagunços sobre os colonos que, desarmados e inseguros, recuavam. Perdiam suas terras e seu trabalho e com sorte não perdiam também a vida. Nada multo diferente do vivido nos estados do Nordeste.

Os mesmos saques, destruição e roubos na região 'nordestina, eram aqui praticados pelos jagunços sob o pretexto de desapropriação ou retomada de posse e as glebas conquistadas anexavam-se às dos senhores latifundiários, que nelas nada produziam, fazendo da especulação imobiliária o grande negócio de todos os tempos. Fortunas foram enviadas para a Europa pelos especuladores estrangeiros, tal e qual o ouro extraído dessas terras foram para a Inglaterra no tempo do Império.

        A estratégia de guerra, porém, era diferenciada.  Os colonos quando acuados pelos jagunços, tinham mesmo como único recurso se afastarem ainda mais. Sem possibilidades de retornarem para suas terras originais, buscava em lugares mais distantes a sagrada fonte de sobrevivência e nela começavam tudo de novo. Desmatavam, semeavam, irrigavam e erguiam suas novas casas, a espera da colheita que os alimentaria e também às suas famílias. No Nordeste, o sertanejo, fosse para onde fosse, somente encontrava terras áridas e lotadas de volantes e cangaceiros. De nada adiantava mudar-se, como faziam os lavradores do Sul. Estes, sem multa alternativa e precisando de recursos para aquilo que a vivência necessita, vendiam o excedente do seu trabalho aos mesmos latifundiários que lhes tomaram a terra anterior e que, sem dúvidas, ainda lhes tomariam também a futura.

Eram pacientes os senhores latifundiários donos da terra. Não molestavam os colonos na fase de implantação da nova gleba e até lhes ofereciam certa ajuda, na forma de sementes e ferramentas, posteriormente cobradas a preço de ouro. O colono quase nunca conseguia saldá-la acabando por perder a terra. E mesmo quando conseguia, ficava a mercê da melhor valorização imobiliária, quando então era simplesmente enxotado pelos exércitos de jagunços.

À margem, assistiam o loteamento e comercialização das suas terras, sem que nada se pudesse fazer. Tristes, se embrenhavam pelos sertões do Sul em busca de novas áreas, em busca de sobrevivência. Muitos dos imigrantes e também dos migrantes, tentavam voltar aos seus países ou estados de origem, mas a falta de recursos e moral desgastada os impedia e desanimava. Assim continuava a saga dos colonos e a sua incerta peregrinação pelos sertões, sem que pudessem vislumbrar o dia que tudo viesse a mudar.  

Mas não deixaria de existir, porém, os inconformados e alguns se rebelavam. Não aceitavam os constrangimentos e as roubalheiras que lhes impunham e assim partiam em busca de novos horizontes, novas formas de vida que pudessem considerar dignas e humanas. Procuravam por trabalhos diferenciados, que não atraísse a gana dos latifundiários e de que não se necessitasse de terras para prosperá-las e depois perdê-las.

Esses rebeldes eram pensadores e líderes natos. Na maioria letrada, montavam escolas precárias, mas eficientes em alfabetização e encaminhavam os grupos que se formavam em busca de conhecimentos, trabalho e riquezas incessantes e renováveis que a própria e bondosa mãe natureza lhes ofertava. Tornavam-se modernos alquimistas no trato das ervas, eficazes marceneiros, sapateiros, pedreiros e tantas outras coisas mais.

Sem multa esperança nos trabalhos originários da natureza como a agricultura, os mais jovens se dirigiam para as cidades recém formadas em busca de empregos. Geralmente os conseguiam junto aos próprios latifundiários. Forçosamente esqueciam que trabalhavam sobre as terras daqueles que deles a tiraram. Fingiam não ver o enriquecimento destes em detrimento daqueles que a perderam, daqueles que possibilitaram pelo suor dos seus rostos, todo esse mesmo enriquecimento.

Outros se valiam de dons, conhecimentos e habilidades naturais para fazer seus próprios negócios. Montavam, selarias, ferrarias, artesanatos e até homeopatias. As ervas medicinais eram muito procuradas, inclusive pelos ricos e os ex-colonos delas muito bem conheciam. Seus poderes para diversas curas de determinados males eram incontestáveis e este tipo de comércio progredia em ritmo bem acelerado. De certa forma era até engraçado ver o ex-colono, o ex-bóia fria, o ex-matuto cuidar dos males do senhor feudal, aquele mesmo que lhe havia tirado a terra. Mas aquela precária escola que o alfabetizou, também lhe ensinou a praticar o bem sem olhar a quem, trabalho que fazia com alegria e com perseverança.

A grande maioria, porém, gostava mesmo era da mata, do sertão, dos rios e de tudo que a natureza podia lhes oferecer. C0ntudo, sabiam que de nada lhes adiantaria a vida de colonos e se escondiam nas matas a procura da tão sonhada vida digna. Um desses grupos embrenhou-se pela região Oeste do estado sulino. Foram dias e dias de caminhada exaustiva, cansaço, fome, dores e doenças. Mas também foram dias de esperança e de garra transmitidas pelos líderes. Alguns ficaram pelo caminho, enquanto outros, tão desesperançados quanto os primeiros, acabavam por aceitar os argumentos dos líderes e, como por milagre, erguiam-se retomando a caminhada. Enfim encontraram um lugar que lhes fazia sentir ser o ideal. Relativamente longe da cidade mais próxima, desenvolvia-se num vale que parecia encantado. A morada de Deus, segundo as palavras e a profecia dos líderes.

Cercado por morros de onde se formava um véu de águas límpidas, rolando em cascata até o chão formando um rio cristalino que encharcava a terra das suas margens e transformava-se num afluente de outro que banhava o seu centro igualmente límpido e piscoso. Este por sua vez desaguava no mar aos pés da cidade bem distante, formando o vale encantado tão rico em beleza quanto em biodiversidade. Nas suas margens e avançando para o morro, um bosque florido e com centenas de plantas e flores diversas a colorir o lugar. Os colonos estavam extasiados e agradeciam a insistência se o apoio dado pelos líderes.

Contavam ainda com a boa topografia. Irregular e imprópria ao loteamento, dava segurança e bem estar a quem ali resolvesse morar. O solo rico em nutrientes naturais aceitava todo tipo de cultura, porém em pequena escala, dada sua posição entre montanhas. Era uma espécie de terra prometida, um lugar ideal para se viver com a humildade e a dignidade que aqueles seres possuíam e isso todos já sentiam.

O casal Silva, juntamente com os seus seguidores, resolveu ali fincar raízes. Ouvindo as orientações de Arnon, ergueram suas casas e fizeram da pesca seu meio de vida, atividade desenvolvida em lugar que confiavam jamais atrair os pensamentos e os constrangimentos impostos pelos senhores latifundiários.

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