Capítulo III

      A "recepção" deixou a bruxa "sensibilizada"! Assim que atravessou os imensos portões, o povo fugiu, descaradamente, escondendo os rostos para não a olhar. Atitudes que só serviram para que ela se sentisse mais poderosa e dominante naquele lugar. No quarto em frente à cama da menina, a bruxa, com uma agilidade e habilidade assustadora, passou a fazer seus trabalhos.

    Daquele saco enorme, tirava poções, chás, ervas, e enquanto medicava a criança, ela falava baixinho, como se fizesse algum tipo de prece, deixando a empregada Gertrudes ainda mais assustada. Principalmente, quando ela pediu para acender muitas velas ao redor da cama, colocando pedras em volta do corpinho dela e por cima, em alguns pontos como o coração e o estômago. A bruxa já sabia qual doença acometera a criança, e sabia também, que seria um tratamento longo e extenuante.

      Gertrudes queria fugir do contato com aquela "coisa", as ordens, porém, era permanecer no quarto e atender a todo e qualquer pedido daquele ser horripilante.

                                  ♥≈♥♥≈♥

      Dias a fio, no quarto da menina, a bruxa passava ao lado de Olívia que chegara e a ajudava, incansavelmente, preocupada com as noites sem dormir e a sua inquietação. Olívia cuidava das duas, com um olhar mais atento para bruxa, que não podia ficar sem seus remédios, que a mantinham em pé, e viva. Com sua teimosa e seu altruísmo, seria bem capaz de passar por cima de si mesma para salvar aquela menina.

      Já Mateus, não dormia, não se alimentava direito, não saía da torre de Menagem (É a estrutura central definida como o principal ponto de poder e último reduto de defesa do castelo, podendo em alguns casos servir de recinto habitacional. Esta torre é mais alta do que as demais, permitindo uma visão ampla dos arredores e do perímetro da muralha, e tinha poucas aberturas para impedir que os projéteis dos inimigos alcançassem os defensores. Desta forma os defensores do castelo podiam utilizar o coroamento de ameias no topo da torre de Menagem como base de tiro direto com alcance em todo o perímetro do castelo, no caso de um ataque.). Ali era o seu lugar favorito. Ali ele vivera os melhores e agora os piores dias de sua vida.

      Por sua vez, Eisla vivia em seu mundinho à parte. Amava os cavalos, espadas, e às vezes sentia um desejo insano de ter nascido homem e ter a liberdade de fazer tudo o que desejava. Embora a pouca idade, já sabia reconhecer dentro de si a necessidade e o gosto pela aventura. Seu dia era uma incógnita. Sumia por horas e ninguém se dava ao trabalho de investigar o que ela fazia. Ninguém se importava com ela. Ela não se importava com ninguém. Seu único propósito, era de um dia mostrar ao pai o seu verdadeiro valor e quem ela era.

                                   ♥≈♥♥≈♥

      No quarto de Ester, a bruxa andava de um lado a outro, dando suas poções, exercendo sua magia, na maioria das vezes sussurrando, outras dando ordens a Olívia e a Gertrudes que não se atrevia a olhá-la. Porém, depois de vários dias confinada com elas, passou a respeitar aquele ser negro e flutuante.

      –Vamos Ester, reaja! – ela ordenava.

      –Acho que chegamos tarde. – disse Olívia desanimada.

      –Não! Ela vai resistir! Ela vai voltar! Não vou desistir e muito menos ela.

      –Você também precisa descansar. Está prestes a ter um colapso, está a dias sem dormir, comer direito.

      –Eu suporto.

      Olívia balançou a cabeça desanimada e disse:

      –Senhor Mateus também não come e não dorme há muito tempo.

      A bruxa ficou pensativa, saiu do quarto e foi até a cozinha, um sacrifício e tanto para quem estava esgotada, caminhar por aquele imenso castelo construído com esmero e talento. Um dia quem sabe ela teria tempo de apreciar melhor aquele lugar magnífico. No momento não tinha condições para mais nada a não ser o objetivo de trazer a menina Ester ao mundo dos vivos.

      Ao entrar na imensa cozinha, reparou na correria das empregadas tentando fugir dela. Sorriu cinicamente.

      –Preparem um prato bem servido para o senhor de vocês. Agora!

      Uma das criadas, a mais jovem, obedeceu-a e de cabeça baixa largou o prato em cima da mesa.

      –Não, quero o prato aqui, na minha mão. Ou você ficará sem as suas com a minha praga!

      A mulher deu um grito de horror e tratou de alcançar o prato na mão da bruxa numa tremedeira de dar dó.

      A bruxa saiu da cozinha, não sem antes dar uma gargalhada sinistra que ecoou por todos os cantos. Era muito divertido ver todo aquele medo que ela causava. Na torre, ela encontrou um homem que havia se tornado um farrapo humano. A força, a aura poderosa, dera lugar ao sofrimento, o abatimento. Estava muito mais magro, olheiras profundas e seus olhos avermelhados tinham perdido o brilho. Quando ele a viu, se levantou da poltrona furioso.

      –O que quer aqui? Volte para o quarto de Ester e faça a sua magia negra!

      –O senhor precisa se alimentar! Olhe o estado em que se encontra! Como vai ser quando ela voltar? O senhor adoecerá?

      –Cale essa boca imunda e suma daqui! – jogou a taça de vinho contra a parede. –Falta muito pouco para eu acabar com você, desgraçada! – e foi se aproximando dela como um animal tomado pela fúria.

      –Tente se fortalecer, pelo bem de sua filha!

      –Para o inferno você! Quando ela irá acordar e sorrir para mim? Quando ouvirei a voz dela? – ele a encurralou contra a parede e o seu corpo de tamanho avantajado. Mateus, descontrolado, a agarrou pelos braços e passou a sacudi-la. Por várias vezes a bruxa bateu com a nuca contra a parede, e sentiu a roupa umedecer.

      –Solte-me!

      –Eu vou acabar com você agora, maldita! Eu vou mandá-la para o inferno que é o seu lugar!

      –Ela está respirando! Ela ainda está viva! Solte-me ou eu a mato num estalar de dedos! – rugiu.

      Mateus, ofegante, a soltou bruscamente, seus olhos dilataram e seus lábios tremiam. Num gesto de cólera, e sem saber como ela ainda segurava aquele prato, a bruxa o jogou contra o chão fazendo a maior lambança nos pés de ambos.

      –Nunca mais se atreva a tocar em mim ou o senhor não estará vivo para ver o sorriso de sua Ester de novo, entendeu?

      Mateus riu ironicamente.

      –Você não me mete medo! Eu quero a minha filha de volta! – gritou.

      –E terá! Dê-me mais cinco dias. – ela virou-se para sair, antes, porém, voltou-se. –Nunca mais ouse colocar suas mãos em mim! Não me subestime, senhor!

      –Isso não acontecerá de novo. Tenho nojo de você!

      Viu-a sair da sala com a cabeça erguida, mas por baixo do véu as lágrimas rolavam como uma tempestade sem precedente. Dentro da torre uma lufada de vento o envolveu por inteiro, levantando seus cabelos. Mateus fitou as mãos e numa delas havia sangue. Sangue da bruxa.

                                 ♥≈♥♥≈♥

      No último dia do prazo dado por ela, envolvido em seu sofrimento, Mateus adentrou o quarto da filha pela primeira vez depois da chegada dela ao castelo. Procurou a bruxa que estava encostada a murada do lado de fora que circulava a porta grande, apreciando a linda vista panorâmica entre planícies e o extenso rio a distância. Ela parecia fazer alguma prece, difícil saber com aquele véu cobrindo seu rosto. Ele nem reparou que a cor voltara às faces de Ester, que ela havia engordado um pouco. Cego em sua dor não percebera que a filha dormia um sono tranquilo e apaziguador. Carregava na mão um pequeno punhal. Encarou a bruxa que se voltou para ele ao sentir que não estava só.

      –Seu prazo acaba aqui! Vou acabar com você, bruxa maldita! Não adianta fugir. – disse ele, ao vê-la tentar se afastar. --Vai ser numa fogueira, ou quem sabe faço picadinho de você! – e exibiu o punhal brilhante.

      A bruxa ficou prensada entre a murada da sacada e ele a dois passos dela.

      –Quero ver seus olhos pedindo clemência pela dor que eu vou lhe causar. Quero vê-la sangrar como um porco!

      –Não se atreva! – ela rosnou numa ordem seca, mas não pôde esconder o tom aflito.

      –Você vai pagar caro por me fazer de idiota com sua magia negra de mentira! – e num gesto brusco, arrancou o véu da cabeça dela.

      Os olhos do homem se arregalaram. Estarrecido, Mateus não acreditava no que estava vendo. Seu coração disparou dentro do peito. Sua respiração faltou e ele sentiu-se apunhalado por uma faca invisível bem em cima do coração.

      Jamais vira uma cabeleira tão vasta e longa, ondulada e vermelha como o fogo. Eram como as chamas. Jamais vira olhos tão azuis como aqueles. Pedaços do céu em dia claro. Jamais vira lábios tão perfeitos, embora sem uma gota de sangue, tão carnudos como aqueles. A pele do rosto alva e sedosa em perfeita harmonia com o tom da lua cheia que, naquele momento, lhe brindava com os raios prateados dando maior contorno àquele ser, irreal, etéreo em frente aos seus olhos.

      –Quem é você? O... que é você? –ele murmurou se sentindo fraco e impotente.

      A bruxa cerrou os olhos sentindo o vento gelado na pele. Apertou tantos as mãos que os nós dos dedos, ficaram esbranquiçados. Não estava bem.

      Ele abriu a boca para dizer algo, mas se calou estático ao ouvir uma voz que ele tanto desejava.

      –Papai...

      O coração daquele pobre homem parou por um momento. Com os olhos marejados ele voltou para dentro do quarto.

      –Papai onde você está?

      –Meu Deus, Ester! – exclamou ele se sentando na beira da cama e apalpando a filha pensando estar sonhando. A pequena sorria lindamente. Só então ele reparou nos cabelos limpos e brilhantes, no rosto recuperado assim como ela por completo. No perfume bom das rosas, das ervas, dos incensos. – Minha filha, meu amor!

      –Papai!

      Ela o beijava no rosto sem parar como um presente por ele tê-la esperado tanto tempo.

      A bruxa parada a sacada via a cena em silêncio, agradecendo a Deusa Mãe, acariciando seu pequeno pentagrama no pescoço, segurando-se para não desfalecer.

      –Papai?! –Ester gritou, e Mateus se retesou no abraço que trocava com ela, achando que ela estava tendo outro mal súbito, mas assim que a largou seguiu o olhar aflito da menina e pulou da cama.

      A bruxa estava atirada no chão. Pegou-a nos braços, sentindo a leveza do corpo magro.

      –Ponha ela aqui, papai. – pediu Ester apontando sua cama. –Quem é ela? – perguntou meigamente passando a mãozinha delicada na face pálida daquela mulher.

      –Não sei, minha princesa... o que quer que ela seja, me trouxe você de volta.

      Ele foi até a porta e gritou por ajuda. Um sentimento novo o invadiu: culpa.

      –Ela é tão linda! – disse Ester encantada. – Ela cuidou de mim?

      –Sim, filha, por dias e noites a fio. – sabia o tamanho daquela afirmação e da dívida que tinha com aquela... Como chamá-la?

       –Então devo cuidar dela em sinal de agradecimento. – Ester deu o seu mais lindo sorriso.

      Mateus retribuiu feliz. Essa dívida com a Bruxa de Negro seria eterna.

      Remorso, culpa, aflição, o que mais ele ainda sentiria? Estacou rígido, quando a filha gritou ao passar a mão na roupa negra da mulher.

      –Sangue, papai! Ela está ferida!

      Mateus se ajoelhou na cama procurando nela algum machucado. Não podia tê-la ferido com o punhal. Graças a Deus não tivera tempo. Ou teria feito a pior coisa de sua vida. Estava arrasado. Olívia entrou no quarto e se pôs a chorar se ajoelhando aos pés da cama.

      –Teimosa... Oh, minha menina teimosa!

      A velha se levantou e correu até o saco, pegou uma poção e lambuzou os lábios dela. Pai e filha nem respiravam para não atrapalhar.

Depois de algum tempo, Olívia ordenou:

      –Leve-a para o meu quarto. Preciso desnudá-la e banhá-la.

      Ele obedeceu no mesmo instante, pegando-a no colo e levando-a para o quarto destinado. Colocou-a gentilmente na cama.

      – O que houve com ela? Eu a machuquei?

      –Não sei o que fez, mas nunca mais ouse tocar na minha menina com a intenção de machucá-la! Entendeu bem? Agora saía daqui! Preciso cuidar dela.

      Angustiado ele ajeitou os cabelos que caíam nos olhos e saiu do quarto se sentindo o pior homem da face da terra. Era um verme! Se ao menos pudesse imaginar que ela era tão... Tão...

Mas o que eu estou pensando? Com isso correu para o quarto da filha para recuperar o tempo perdido e evitar tantos pensamentos estranhos...

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