MEU OUTRO MUNDO
MEU OUTRO MUNDO
Por: Renata Ávila
SONHOS

Antônia acordou assustada, era a terceira vez naquela semana que tinha o mesmo sonho com aquela criatura assustadora. Estranhamente, não sentia vontade de acordar no meio do sonho, parecendo sempre precisar, mesmo aterrorizada, chegar ao final daquela história. Sim, era isso o que parecia, uma história de terror de filme B. Quase um filme trash não fosse a sensação intensa de que aquilo era verdade, ao menos naquele mundo no qual mergulhava quando dormia.

Levantou da cama e foi ao banheiro, tropeçando nas roupas espalhadas pelo chão do quarto e quase caindo sobre a caneca de café da noite anterior, que pairava, contrariando a gravidade, em uma pilha de papéis sobre a escrivaninha. Tinha que arrumar aquela bagunça, estudar para as provas finais e terminar a pesquisa para seu trabalho de conclusão do curso de jornalismo. Ainda precisava de um emprego que pagasse mais do que o essencial para não morrer de fome, onde, de preferência, sua única função não fosse escrever e-mails para o chefe. Parou em frente ao espelho do banheiro escovando os dentes e por um momento se viu no mundo de seu sonho.

Uma luz azulada iluminava um quarto grande e bem decorado, vestia uma calça de montaria e uma camisa branca muito larga, sentiu as botas até os joelhos e se virou para a cama grande com dossel, um homem assustadoramente lindo, deitado sem camisa e coberto até a cintura a olhava com um sorriso franco, os dentes grandes e brancos cintilando na luz difusa, notou a proeminência dos caninos e os olhos amarelados e brilhantes, mas não pareceu surpresa. Ele sentou na cama e arrumou os longos cabelos negros atirando-os para trás com um movimento delicado. Parecia um animal selvagem, mas ela não sentiu medo.

-Antônia, venha logo para cama meu amor. Amanhã os derrotaremos. – estendeu a mão para ela e alargou o sorriso, apesar das características bizarras, era muito bonito.

Ela olhou para suas mãos e viu uma espada longa reluzente, sentiu o metal do cabo e o peso do objeto comprido e mortal. Arregalou os olhos e atirou a espada no chão produzindo um barulho alto e irritante.

Ouviu o celular tocando e correu para atender, ainda um pouco tonta sem entender onde estava. Precisava urgentemente comer alguma coisa, deveria ter sido falta de açúcar ou pressão baixa, pois sentia um formigamento estranho no corpo.

-Garota vai demorar muito pra chegar? Eu não tenho mais desculpas pra dar pro chefe e ele já perguntou por você duas vezes!

-Merda! Eu chego aí em quinze minutos Dani, segura só mais um pouco por favor! – Desligou o telefone e saiu correndo pelas escadas, antes pegou uma blusa e uma calça, calçou os sapatos e foi trocando a roupa pelos corredores, enfiando o pijama na bolsa ao mesmo tempo em que procurava uma escova de cabelos. Só então olhou no relógio do celular. Eram 10 horas da manhã! Mas não podia ser, lembrava de ter acordado às 07 em ponto e ir ao banheiro escovar os dentes. Não poderia ter dormido por três horas em pé em frente à pia.

Chegou tentando parecer invisível, sentou em sua mesa e recebeu a mensagem de Dani.

“Ele está atrás de você, se cuida.”

“Eu sei, vou ficar invisível, sou boa nisso. rsrsrs”

“Acho que não amiga… Atrás de você.”

-Antônia, por favor venha até minha sala.

Levantou desanimada, mas não surpresa, Dani a avisou, sua mesa ficava de costas para a sala do chefe, para onde caminhou lentamente, como quem vai para um exame de sangue, entrou e ficou parada com a caneta e o bloquinho prontos para anotar tudo, ficava próxima a porta para evitar que o chefe chegasse muito perto, era famoso pelas investidas nas funcionárias e Antônia, apesar de ficar muito brava com o comportamento dele, não poderia perder aquele emprego.

Ele sorriu e a olhou dos pés à cabeça, como sempre fazia aliás, mordeu os lábios, não levantando seu olhar além do pescoço dela, ficando entre os peitos e o quadril, sem tentar disfarçar. Era um homem bonito até, 40 anos, malhava regularmente e todas as semanas fazia tratamentos faciais anti rugas. Poderia conquistar uma mulher por seus atributos ao invés de ficar aterrorizando as funcionárias do jornal de seu pai.

-Por favor feche a porta e sente-se, - aguardou ela sentar na cadeira de frente para sua mesa e levantou, sentando ao lado dela, muito perto. – você parece cansada, eu notei que chegou atrasada hoje, novamente. – ela ia falar mas ele a silenciou com um gesto da mão, que em seguida pousou naturalmente na perna que Antônia não conseguiu puxar a tempo, e correu do joelho até o meio da coxa. – Você precisa focar no que é realmente importante em sua vida, eu não me importo com o horário em que você chega. Me importo com o que está acontecendo com você, saiba que eu estarei sempre aqui para o que você precisar. Eu sei que você ainda é jovem, tem um futuro promissor. Mas talvez você precise de alguém que cuide de você, alguém que valorize seus atributos. – Sem que ela percebesse, a mão inconveniente saiu de sua perna e segurou seu rosto, ela tentou se esquivar mas já era tarde, a língua de seu chefe se precipitava em sua boca e só o que ela pensava era em arrancar a cabeça dele.

O empurrou com tanta força que ele caiu da cadeira, ela levantou e ia sair da sala, parecia precisar correr dali, subitamente parou e caminhou até ele. Seus olhos castanhos estavam brilhantes e ferozes. 

-Escuta aqui seu playboyzinho de merda! Você não teria capacidade de cuidar de mim nem que fosse três vezes mais competente do que é agora, você é um machista de pinto pequeno que precisa encurralar suas funcionárias que, como precisam do trabalho, não vão poder reclamar, para poder arrumar uma transa. – abaixou perto dele e puxou sua gravata até quase o sufocar – Nunca mais encoste em mim ou em qualquer outra mulher, ou eu juro que vou arrancar sua cabeça!

Andava rápido, se sentindo poderosa, era como se tivesse vingado todas as mulheres assediadas por aquele cretino. Percebeu os olhares admirados das colegas, pegou a bolsa e foi até o elevador, não reparou no dono do jornal e pai de seu agora ex-chefe parado ao lado do escritório do filho. Quando Antônia chegou na portaria toda a glória já havia lhe abandonado, pensava nas contas para pagar e na besteira que fizera. De súbito, parou na calçada e se recompôs, a culpa não fora dela, apenas reagiu como deveria, talvez com pouco menos de violência teria sido melhor..., não! Ele fora violento, atacou ela sem um pingo de respeito. Claro, não precisava ameaçar arrancar a cabeça dele, mas queria enfatizar sua raiva, pensou ser a melhor frase para o momento.

Levantou a cabeça e viu, do outro lado da rua, o homem de seu sonho sentado em um banco de uma parada de ônibus, arregalou os olhos e encarou o estranho. Ele a olhava fixamente, então sorriu e mostrou seus caninos grandes e brancos. Um caminhão parou no meio da rua e quando arrancou ele já não estava mais lá.

Foi para seu apartamento, como se fugisse, de seu chefe, dos pesadelos. Entrou em casa junto do desespero pela perda do emprego, sentou no chão e chorou, além das contas a vencer, e da possibilidade de nunca mais conseguir trabalho em nenhum jornal da cidade, e talvez do país, ainda havia a agressão que sofrera, é certo que todas as mulheres já passaram por isso. E também é certo que essa não foi a primeira vez em que fora assediada. Mas não era o tipo de coisa fácil de se acostumar, uma agressão era sempre uma agressão, e jamais esqueceria nenhuma delas. Resolveu fazer algo produtivo, sentou na escrivaninha e escreveu sobre o que lhe ocorrera naquele dia, mas em formato de conto, isso ajudava a aliviar a repulsa e medo, e ainda treinava sua escrita. 

Terminou de escrever e revisou em seguida, abriu outra guia para procurar emprego, e novamente estava no mundo de luz azulada de seus sonhos, o homem bonito e sombrio estava parado atrás dela, em frente a um espelho grande com bordas douradas, dessa vez ela usava uma camisola branca fina e transparente, longa até os tornozelos, o homem estava ainda nu da cintura para cima, e com uma calça antiquada, como a de um pirata, preta e justa nas canelas. Ele passou uma mão em sua cintura enquanto a outra segurava seu cabelo para o lado, beijava seu pescoço e sussurrava alguma coisa ininteligível com uma voz abafada e rouca. A mão dele subiu para seu seio e ela sentiu o mamilo endurecer, sua pele se arrepiava e teve a certeza de que não era uma alucinação, as sensações físicas eram reais, a excitação era real. O homem passou as unhas longas em seu pescoço, deixando três marcas abertas por onde escorreram fios de sangue. 

Acordou com as batidas na porta, tinha apenas uma certeza, precisava procurar um médico e pedir uma tomografia com muita urgência. Dani estava parado na porta batendo e chamando seu nome. Ela abriu e ele irrompeu como um furacão, batia palmas e gritava palavras de ordem dando pulinhos e fazendo uma espécie de dança da vitória.

-Lacradora! Matadora! Incendiária!

-É! E desempregada! Ferrada! Sem grana!

-Ah, o que é isso? Você talvez nem seja demitida, o chefão estava lá e todos ouviram os gritos dele com o filho. Depois ele entrou na própria sala e saiu com esse envelope me pedindo pra te entregar. – estendeu um envelope com o timbre do jornal, e seu nome escrito a caneta.

-Eu devo ir lá hoje ainda? Ou m****r a resposta por você?

-Olha meu bem, hoje a única coisa que você vai fazer é ler isso, amanhã decide o que faz. – ela fez uma cara de surpresa e ele franziu a testa – Garota! São nove horas da noite, o chefão não vai querer falar com você agora.

-O que? Não, não pode ser, eu cheguei do jornal, escrevi um texto e não fiz mais nada!

-Então foi um texto gigante. Você parece cansada, tá tudo bem com você? Vem aqui senta, eu vou pegar uma água. – ele foi até a cozinha e voltou com um copo cheio de água – bebe tudo, você parece desidratada. Eu posso imaginar o que você está sentindo, mas confie, amiga, que hoje você foi uma heroína naquela redação. O que é isso no seu pescoço? Você tem um gato?

-O que? Não, eu não tenho um gato, - levantou e se olhou no espelho do quarto, três marcas de arranhões no pescoço e filetes de sangue, assim como no seu sonho. – mas que... Dani, eu acho que estou enlouquecendo!

-Calma aí garota! Você deve ter se arranhado enquanto dormia, ou então... será que foi o chefe quem fez isso? 

-Não, ele me beijou e passou a mão na minha perna. Mas não me machucou. Dani, eu não sei como contar, mas eu sonhei que alguém fez isso em mim, e provavelmente foi eu mesma enquanto dormia, tenho tido sonhos estranhos ultimamente, eu estou acordada e de repente viajo pra um mundo diferente, e tem esse cara que chama meu nome, e que eu sei que é perigoso... Mas ele é lindo e gostoso e fala comigo numa voz sussurrada que me deixa toda arrepiada... E daí eu vi ele hoje quando saía do jornal, na parada do ônibus, ele me encarou e sorriu mostrando aqueles dentes perfeitamente brancos e assustadores...

Dani ficou parado encarando ela, sempre fora estranha essa sua amiga, mas dessa vez parecia descontrolada, e aqueles ferimentos, não pareciam ter sido feitos por acidente enquanto dormia. Resolveu ligar para o namorado Felipe, que era psicólogo recém formado, e pedir que recebesse Antônia para uma conversa. Combinou para o dia seguinte pela manhã e disse que viria buscá-la para irem juntos ao consultório. Limpou os ferimentos dela, fazendo um curativo, pediu comida e se despediu, tinha que terminar uma matéria para o dia seguinte.

Antônia foi tomar um banho enquanto a comida não chegava, não parecia ter dormido a tarde inteira, pois sentia um cansaço como se tivesse corrido uma maratona. Sentiu o corpo arrepiar ao lembrar do que acontecera em seu “sonho”, não era certo mas algo a fazia querer voltar ao sonho e terminar o que havia começado com o lindo e assustador homem de cabelos compridos e olhos de gato.

Saiu do banho e ouviu o interfone, Dani pediu comida chinesa porque ao menos, segundo ele, ela comeria alguns legumes. Ela não gostava muito, preferia uma pizza ou um lanche, mas aceitou a sugestão do amigo, não lembrava de ter comido naquele dia. Pegou a comida com voracidade, sentou em frente à televisão assistindo ao jornal da noite, a corrupção e o desemprego tomavam conta dos noticiários, evidente que o país estava em crise. A crise era confortável para uma parte da elite. Ajudava o povo a baixar a cabeça e trabalhar sem reclamar. Pensou no seu emprego perdido e suspirou, faria parte da imensa massa de desempregados, em números recordes de seu país. 

Então abriu a carta do chefão, leu e soltou uma gargalhada. Enfiou a mão no envelope e tirou o cheque polpudo que compraria seu silêncio. A carta era breve e cheia de mensagens ocultas.

“Cara Antônia, não tenho palavras para descrever a vergonha que sinto, meu filho é mimado e pode ser bastante desprovido de inteligência às vezes, mas está doente. Será afastado de meus negócios e irá para uma clínica tratar esse vício. Saiba que você terá seu emprego se quiser, mas imagino o quanto deve ser difícil retornar após o que aconteceu. Por isso estou enviando este cheque à você. Por favor não pense que é suborno, entenderei se não aceitar e quiser fazer uma denuncia contra meu filho, é seu direito e ele merece. Mas como você está se formando, acredito que o dinheiro poderá ser muito bem gasto em uma pós graduação ou outro curso, você é estudiosa e competente, e posso indicá-la para algum outro jornal ou rede de televisão em qualquer lugar, até mesmo fora do país. 

Espero que esteja bem, 

Atenciosamente.

Chefão.”

Ele era esperto, não chegaria onde chegou se não fosse afinal. Usou palavras gentis e não fez ameaças, mas deixou claro que a melhor saída para ela seria aceitar o dinheiro, talvez a indicação de um novo emprego, e esquecer o que aconteceu.

Ouviu a campainha e foi até a porta, pelo olho mágico, via o estranho de seu sonho, parado tranquilamente, sorrindo simpático atrás da porta. Se afastou devagar, caminhando de costas, tentando não fazer barulho. 

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo