Capítulo 03

A segunda chegou arrastada e carregada de apreensão e incertezas. A venda da Parilla poderia mudar tudo. Estava me agarrando a ideia de que quem quer que fosse o comprador, seguiria com os negócios da empresa e não mudaria muito as coisas por aqui.

Tentando ser otimista, respirei fundo, segurando com força a bolsa em meu ombro quando Samuca me deixou na porta de entrada da Revista e eu me apressei em ultrapassá-la, espantando qualquer pensamento que pudesse me acovardar. Nada parecia estar fora do lugar, mas a apreensão era nítida no rosto de todos os funcionários.

No decorrer do dia, terminei o meu material e encaminhei-o para Verônica.

Lorena atravessou a porta da minha sala como um furação e soltou a revista do mês sobre minha mesa. Ergui o olhar devagar da mão dela para o rosto e encarei-a com estranheza, sem entender o motivo do alvoroço.

— Olha! — Apontou com a unha longa, recém-feita, do dedo indicador, sem ao menos esperar que perguntasse o que estava acontecendo.

Dei de ombros ainda sem entender, abaixando o olhar para onde ela estava apontando na revista aberta.

— Verônica é o cacete. O seu nome deveria estar aqui!

Suspirei no momento em que entendi o que estava acontecendo. Abaixei os óculos e arrastei a cadeira um pouco mais para trás.

— Mas Lor... — tentei dizer, porém ela me cortou antes mesmo do meu pronunciamento.

— “Mas Lor” — rebateu com impaciência, me imitando com uma careta e uma voz infantil — eu vi quando você escreveu esse artigo, até de madrugada. — ela fez questão de ressaltar — Por que você está deixando que ela leve todo mérito pelo seu trabalho?

Encolhi-me entre os ombros em resposta.

Não podia fazer nada além de observar e continuar o trabalho.

— Eu também não gosto da ideia, mas ela pode me demitir. — Ela arqueou a sobrancelha em resposta a minha justificativa, desprezando o meu argumento ao franzir o cenho e balançar a cabeça — Eu preciso do emprego, poxa! — Reforcei, deixando transparecer a minha frustração também. — Lembra o que aconteceu com a Najolin?

— A Najolin não se sujeitou a isso... — Lor pontuou, sentando-se na ponta da mesa.

— Por isso ela foi demitida. — Evidenciei.

— Você é uma boa funcionária, Nina. Trabalha demais, reclama de menos. É responsável, comprometida. Com certeza merece mais do que isso...

Lorena abaixou a guarda, esboçando piedade ao coçar o cabelo curto, com as pontas cacheadas, virando-se e ficando de costas para mim por alguns segundos.

— Você encontraria coisa melhor fora daqui. — Respondeu, virando-se outra vez para mim.

O salário que eles me pagam aqui é bem maior do que o que as outras me pagariam enquanto estagiária. Sem deixar de mencionar que eu não tenho como comprovar a minha experiência, ainda mais agora que outra pessoa estava assinando pelas minhas matérias. Eu não podia correr esse risco, precisava juntar dinheiro para pagar o financiamento estudantil e meus gastos mensais fixos.

— Eu não posso fazer isso agora. — disse, puxando a revista, olhando a matéria com admiração.

“Toda mulher é forte”, esse era o título.

— Ficou muito bom, não ficou? — Perguntei com nítido orgulho de cada palavra que havia escolhido.

— Você não tem jeito, Nina... — comentou num tom recriminativo ao balançar a cabeça — eu vou voltar pra minha mesa. — disse, abrindo a porta. — Se essa maluca voltar... — A voz dela foi abafada pela porta que se fechou atrás de si.

Lorena era a secretária da Verônica e tanto ela quanto eu sabíamos que a megera era bastante trapaceira, aproveitadora e muito vingativa. Sendo assim, eu não tinha a menor intenção de entrar na lista negra dela, já que ela, ainda por cima, era a minha chefe.

No final do expediente, arrumei a minha bolsa, seguindo para o elevador e encontrei Fernanda descendo para o térreo também.

— Disseram que vai ter um coquetel agora. — Fê comentou enquanto procurava o telefone dentro da bolsa. — Provavelmente para esclarecer toda essa a situação... — deduziu, franzindo os lábios, olhando para a tela do celular.

O tilintar do elevador soou e a porta metálica se abriu de frente para a recepção do prédio da Revista e um garçom passou por nós com uma bandeja servida de taças de espumante.

Champanhe. Olhei para Fê por um instante, esperando a reação dela e franzi o cenho em estranheza, mas capturei uma taça da bandeja, bebericando-a.

— Você conseguiu descobrir alguma coisa? — Inquiri à Fê, deixando a ansiedade transbordar sobre as palavras.

Ela balançou a cabeça em resposta antes de se pronunciar.

— Ninguém está sabendo de nada. — Complementou.

Observei o salão encher, em silêncio, e quando o garçom passou outra vez, peguei mais uma taça de champanhe, devolvendo a que estava em minha mão à bandeja.

Definitivamente eu não sabia esperar.

A Mari e a Lorena se aproximaram da gente.

— Mais alguém à beira de ter um troço? —Mari perguntou de braços cruzados e angustiada.

Eram cinco e quarenta e todos os funcionários já estavam no salão. As pessoas conversavam entre si, provavelmente especulavam o que estava prestes a acontecer. A notícia se espalhou por toda a cidade e ficava difícil conter os pensamentos. Era uma revista internacional e a bomba tinha sido jogada na mídia, a angústia sobre o futuro pairava sobre a cabeça de todos.

— Espero que o novo dono seja bem melhor do que os antigos... — Lor comentou, por cima da taça de cristal.

— Eu não sei, não... — contra argumente, passando o cabelo para trás da orelha. — A Revista é uma herança da família dos Parilla e os filhos assumiriam a quarta geração. Se eu fosse a falecida, estaria me revirando no túmulo.

Ergui o meu olhar quando de repente um movimentar de pessoas e alguns seguranças chamaram a minha atenção ao avançarem pelo rool do prédio.

— Gente, olha.... —Fê indicou num sussurro agitado, cutucando o meu braço e apontando com o nariz para um homem de cabelos pretos bem cortados que começou a cumprimentar algumas pessoas de costas para a gente, e eu prendi o olhar descaradamente nele.

O advogado moreno que estava na televisão passou por entre as pessoas, acompanhando o homem que esbanjava comprimentos, a figura da Carolina se fez presente ao lado deles por todo o tempo. No entanto, no momento em que o homem de cabelos escuros recém-cortados e terno bem feito, até eu diria que sob medida se virou para cumprimentar, apertando a mão do grupo administrativo que estava no meio do rool, o meu coração parou, e eu quase tive um enfarto ao me deparar com os olhos azuis turquesa, que mais pareciam um céu limpo de manhã ensolarada das quis lutara por anos para esquecer.

Isso não podia, de forma alguma, estar acontecendo.

Só podia ser um pesadelo.

Pisquei algumas vezes seguidas, baixando o olhar para a taça de champanhe em minha mão e imaginei ter bebido demais, porque o chão começou a se tornar movediço sob os meus pés e precisei levar a mão ao peito, deixando escapar um resmungo arrastado de dor. Foi possível sentir o sangue do se esvair por completo do meu corpo e o coração parar de bater dentro do peito. Minhas pernas bambearam sobre os saltos e a única atitude enviada pelo cérebro para o corpo foi a de me esconder atrás das meninas antes que ele se deparasse comigo.

— O que diabos está acontecendo, Nina? — Fê perguntou num cochicho, assim que me viu escondida. — parecendo que viu um fantasma.

É...

É muito provável que tenha visto um fantasma.

Meu estômago se revirou ao constatar a realidade.

Um fantasma dos velhos tempos.

Tomei a taça de champanhe que estava na mão de Fê, bebendo-a em apenas um gole urgente, e me atrevi a dar mais uma olhadela por cima do ombro dela, temendo que o homem viesse até aqui para nos cumprimentar.

Eu só podia estar ficando maluca.

Certamente ele jamais se dignaria a me cumprimentar.

Talvez ele não me odiasse depois de tanto tempo. Dizem que ele cura tudo.

Pura balela! — Meu inconsciente berrou apavorado.

Céus! Eu o abandonei. É meio óbvio que ele me odeie até hoje, mas será que esse rancor resistiria a tantos anos?

O que eu deveria fazer?

Eu não tinha uma resposta plausível para isso, muito pelo contrário. O meu lado impulsivo e insensato começou a agir e conseguia pensar apenas, que em hipótese alguma, ele não poderia me ver aqui. Não poderia encarar esse homem depois de tantos anos. Não agora! A minha perna bambeou apenas por imaginar ficar cara a cara com ele.

— Preciso ir ao banheiro! — Notifiquei, apressando-me em fugir dali antes que Thomas se aproximasse da gente.

— Vou com você! — Fê prontificou-se em dizer.

Na minha fuga, tomei o corredor de paredes brancas, pouco iluminado agora, depois do expediente, seguindo-o a passos largos e apressados. O sapato colidindo e ecoando contra o chão junto aos de Fernanda que tentava me acompanhar.

— Nina... — Interpelou com nítida preocupação em seu tom de voz. — O que está acontecendo? — Fê insistiu em perguntar quando alcançamos o banheiro. — Você está bem?

Engoli a seco antes de me manifestar.

Como explicaria essa situação a ela?

Não parecia haver palavras. Eu não gostava de falar sobre isso, porque passei tanto tempo tentando ignorar o passado, ou pelo menos viver bem com ele, silenciando-o até que fosse esquecido. Precisava seguir em frente, continuar com a minha vida. Precisava arranjar um jeito de dar algum sentido ao meu futuro e isso só parecia ser possível me desapegando do passado.

— Fê... — balbuciei, suspirando e me escorando na pia do banheiro. — Por favor, tranca a porta. — Pedi, antes de começar a falar.

Assim ela o fez.

— Esse homem que entrou agora no salão... — comecei a dizer, mas parei por um instante, pensando o que realmente deveria falar para abreviar o assunto. — Você sabe que não tem tanto tempo assim que eu me mudei para o Rio de Janeiro, não sabe? — Indaguei, tentando contornar o assunto e ir não tão direto ao ponto.

Fê arqueou a sobrancelha em resposta e levou a mão à cintura.

— Sem rodeios, Nina. — Ela se aproximou, encurtando a distância. — Era para estarmos na reunião.

O meu estômago se revirou só de pensar em voltar para o salão.

— Eu não posso voltar para lá... — Decretei, apontando lá para fora. — Não dá para lidar com isso agora, porque o homem que entrou por último...

— O gato de olhos azuis? — Interrogou de cenhos franzidos.

Balancei a cabeça em concordando, encolhendo os ombros, cruzando-os e esfregando-os, intimidada com o que diria a seguir.

— O que tem ele? — Inqueriu quando o meu silêncio se tornou longo.

Engoli a seco prestes a revelar.

— Nós éramos namorados em Minas. — Cuspi logo de uma vez. — Eu o abandonei quando precisei me mudar para cá.

Uma lágrima escapuliu do meu rosto quando o meu cérebro me bombardeou com as memórias que trouxeram minha mãe e eu para o Rio. No entanto, não foi o que mais me doeu, porque meu coração se apertou ao me lembrar da forma como tudo acontecera.

— Certo. — Fê ponderou, respirando fundo e pensando mais racionalmente do que eu. — E você não esperava revê-lo. É isso? — Indagou complacentemente, passando o dedo pelo caminho trilhado pela lágrima, secando-a gentilmente.

Assenti que sim com a cabeça.

— Ele deve me odiar, Fernanda. — Declarei num choramingo o meu receio. — Eu não quero ter de lidar com isso.

Fernanda engoliu a seco e se apoiou ao mármore da pia também.

— Amiga, calma! — Instruiu, abraçando-me reconfortantemente. — Isso é passado. Nós somos funcionárias da revista e fomos convocadas para uma reunião em que, infelizmente, ele, por algum motivo, está. Você precisa ser madura o suficiente para lidar com isso. Não pode ficar aqui o resto da reunião. — Aconselhou, agitando-se e afastando-se da pia — sacode a poeira.

Realmente não dava para ficar escondida no banheiro enquanto a reunião da empresa em que trabalhava acontecia. Precisava ter uma postura adulta e firme para lidar com essa situação, mas quando cruzei a porta do banheiro, essa ideia me pareceu absurda demais e sentar no vaso e chorar as minhas dores parecia mil vezes melhor do que bater de frente com Thomaz a essa altura do campeonato.

— Ele deve ter raiva de mim... — Pensei em voz alta.

— Adulta, lembra? — A Fê fez questão de ressaltar quando travei na porta.

Certo. Precisava calçar os sapatos de adulta e me comportar como tal. Por isso, respirei fundo e encarei o corredor que nos levaria de volta para o salão. Nos aproximamos da Mari e Lor e ficamos em silêncio. Eu instintivamente tendendo a esconder atrás delas.

— O que está acontecendo? — Fê indagou a Mari num cochicho, inclinando-se.

A Mari levou a mão à testa como se não acreditasse no que iria dizer.

— Pelo que entendi, a Parilla foi vendida e ele é o novo dono...

A minha cabeça não conseguia focar no que estava sendo dito. A Carolina estava apresentando o novo dono, mas isso tudo me pareceu tão absurdo que não consegui digerir uma só palavra.

— O que? — Rebati imediatamente.

— É. — A Lor assentiu que sim com a cabeça. — Ven-di-da. — disse, pausadamente.

— Não! — Deixei escapar alto demais.

Essa não!

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