Capítulo II - Ho Fennther ujd Ho Shokenn (A Guitarra e a Espada)  

Nasci em Laguna Argenta. Um pequeno vilarejo de pescadores nas cercanias de Sellenia, ao extremo oeste do imenso território de Diaphanes, a terra das inesgotáveis minas do precioso uldhamus. Por origem, sou um luxx feer. Nosso povo, em sua maioria, vive entre o grande Oceano Feérico e a região dos grandes lagos do oeste, que são atravessados pelo Rio Hambiz. Graças à deusa Gehtarah, sempre fomos um povo abençoado pelas águas que nos provém com tudo de que precisamos. Nossas terras são férteis e nossa agricultura é rica. Além disso, como eu já citei anteriormente, especialmente em meu vilarejo nós sempre fomos e ainda somos muito voltados para a pesca e atividades marítimas.

Como estamos separados de Balthus Zeminn (uma das principais cidades satélites de Sellenia) por mais de duzentos potheoth (quilômetros), e nossos recursos sempre foram extremamente fartos (o que possibilitava jornadas de trabalho curtas para nossos habitantes), muitos em nosso povo acabavam desenvolvendo bem cedo as aptidões para as artes em geral.

Desde o precoce dia em que pronunciei minhas primeiras palavras, meus pais instantaneamente perceberam que tinham posto no mundo um falador, um prodígio com as palavras, um contador de histórias. Por isso, não tardou que meu vazer usasse de todos os meios, que estivessem ao seu dispor, para que eu pudesse ser educado nas letras e na música dentro da corte de Sellenia. Embora não fosse diretamente um nobre, ele era um grande pescador e um excelente comerciante em crescente prosperidade, o que lhe trazia alguns privilégios e muitos contatos.

Nesta época, Sellenia era a grande capital de Diaphanes, o reino dos luxx feer, minha raça. Uma gigantesca, brilhante e portentosa cidade, reconstruída a quarenta e três potheoth (quilômetros) e meio das ruínas de sua primeira fundação. A cidade original, que fora devastada durante a Segunda Grande Guerra Sekhairianna, ainda era mantida como um tributo aos sacrifícios da honra. Ainda possuía muito de sua majestade e imponência em suas ruínas abarrotadas por feiras e congregações religiosas, embora a nova Sellenia fosse uma cidade ainda mais ostentosa, repleta de templos longitudinais que arranhavam os céus, fartos e ricos centros comerciais, assim como detentora de gigantescas e numerosas academias nas quais eram moldados os soldados mais imponentes e disciplinados de nosso mundo.

Aliás, essa era a maior diferença entre Sellenia e Hemporia, a capital do reino dos hem feer. Os luxx feer de Sellenia eram treinados desde a infância para se tornarem soldados poderosos e mecanicamente. Os hem feer de Hemporia já nasciam prontos para serem guerreiros selvagens e irascíveis, não soldados. Ainda que muito de ambas as tradições tenham se misturado e a impetuosidade hemporiana infectasse Sellenia, da mesma forma que o perfeccionismo selleniano tenha se infiltrado entre o militarismo em Hemporia.

Ambas as espécies pertencem ao mesmo ramo, ao mesmo gênero enquanto são subespécies de uma mesma espécie, mas estas são as palavras de eruditos, como meu antigo e saudoso amigo Annzschor. Para simplificar, as espécies são “primas”! Entretanto, àquela época havia uma grande diferença cultural – além das características genéticas peculiares, é claro – entre estas subespécies, tanto quanto entre todas as demais subespécies dos feer.

Nossa família, hereditariamente falando, é uma das espécies que possui mais ramos em nosso mundo. Assim como, também, é a espécie que possui maior poder e influência política e cultural.

Nosso idioma, o feerit, acabou se tornando a língua oficial de toda Sekhairiann, assim como a nossa compreensão sobre as deidades e cultura religiosa, que, de mesmo modo, acabaram sendo assimiladas por todas as outras culturas. Não obstante o domínio dos feer sempre foi nitidamente pacífico, contrariando as pregações caluniosas e distorcidas realizadas pelos nossos maiores inimigos. Já que, não era nem nunca foi um domínio imposto, mas sim um tipo de liderança em relação aos grandes problemas que viessem a afligir as outras raças e povos. Uma liderança intelectual, comercial e cultural que florescia autônoma e legítima. Além de Sellenia ter sido a primeira a erguer seu punho contra o grande mal que ameaçava nosso mundo àquela época. Não é a toa que se deu o nome de “Aliança Selleniana” justamente à organização cujo pacto refletia a óbvia liderança já expressa pelo nome do mesmo.

Por que tantas raças de feer em Sekhairiann, alguns perguntam? Por que Emann moldou tantas diferentes ordens, famílias, gêneros, espécies e subespécies também de outros swannimane (viventes racionais)?

Os sábios estudiosos da história de nosso mundo dizem que, no início dos tempos, Emann, nosso deus supremo que julga a todos os swannimane e até mesmo aos outros deuses, criara apenas uma espécie de seres para povoar Sekhairiann. Era uma espécie indubitavelmente perfeita. Uma espécie que possuía todas as habilidades que, hoje em dia, estão distribuídas por inúmeras outras famílias, gêneros e espécies. Eram fortes como os bahurs, os booghor, os hem feer ou os durahk. Eram rápidos e resistentes como os psam feer, jec’hodiss ou os klenlite. Ágeis como os dahr feer ou os hachinomori, inteligentes e sábios como os luxx feer, os thau feer e os lendários eien’ni. Ainda mais astutos, inclusive, que os danados fen gris. Além de inúmeras outras virtudes comparáveis às das espécies que mais se destacam em nossa realidade atual. Sobre os devannyr, a raça original sobre a qual falamos, dizem até que eram capazes de respirar embaixo d’água (ainda melhores que os ziie feer, que permanecem com o fôlego suspenso por tempos intermináveis, porém em verdade não são anfíbios) e nela nadar mais rápido que os marrajo ou kagakoku! Possuíam uma longevidade quase inesgotável, dominavam todos os elementos da natureza, todas as ciências e os conhecimentos da mente e do espírito; e ainda possuíam poderosas asas semitranslúcidas, capazes de transportar seus espécimes até mesmo através da película que separa o mundo dos espíritos do mundo dos swannimane.

Claro que há exageros e especulações, não obstante, sabe-se que eram realmente muito poderosos e as provas de tais habilidades reverberam-se nos inacreditáveis feitos que fazem parte de sua história.

Esse foi justamente o maior erro de Emann. Pois, quando ele elaborou os devannyr, para em seguida semeá-los no ventre de sua esposa Ishennar – a deusa do parto, da vida e do casamento -, ele não imaginava que tal raça acabaria se deixando embriagar pela vaidade e pela ambição. Os devannyr ousaram se considerar melhores que os deuses, e tentaram se revoltar contra Emann e o panteão divino. Organizaram sua rebelião profana e forçaram as portas do Walshavalla, tentando invadi-lo. Se não fosse por Heinnthal – o deus que guarda os portões do Walshavalla -, que brandiu sua poderosa lança e comandou sua guarda particular na defesa da terra dos mortos, os devannyr teriam destruído todo o equilíbrio do cosmos. Não obstante, essa é outra história a ser contada, em outro dia.

O que importa é que Emann resolveu criar outros swannimane (seres viventes), sem cometer novamente o erro de gerar uma única raça perfeita, nem dar asas aos seres racionais. Para guiar os novos swannimane, o deus supremo pediu ao deus Rhonixx que gerasse filhos, estes filhos se tornaram os dragões, os arakóse (embora, em algumas lendas afirmem que eles tenham vindo antes dos devannyr). Durante muitos séculos eles conviveram com os pequeninos e neófitos swannimane, protegendo-os e ajudando-os a evoluírem, cada espécie fazendo uso pleno de suas habilidades naturais, dadas por Emann. Por esse motivo, nosso mundo possui tantas riquezas de espécies racionais. Nossas diferenças é que nos permitem aprender a viver em harmonia, forçando-nos a evoluir em uma medida justa para o espírito, a carne e a mente.

Sei que esta história não é totalmente desconhecida pela maioria. E devem estar se perguntando por que digo estas coisas, se esperavam que eu viesse aqui apenas narrar sobre as guerras do passado. Todavia, antes de tudo, devemos conhecer nossas origens, ou relembrá-las. Pois somente trazendo à tona de onde viemos e rememorando quem somos, é que poderemos descobrir a nós mesmos. Lembrem-se da frase que está inscrita nos templos de Kirasynn: “Ved Genozet jih seh. Gakwyt tiss sinn mirynnus, eej seh ujd urund, ho kira jiizad” (Conheça-te a ti mesmo. Apenas assim florescerá, em ti e ao seu redor, a luz interior).

Nossa raça em especial, feer, origina-se em um primeiro ramo dos lendários unn feer. Graças à nossa imensa capacidade de adaptação, nossos antepassados foram se diferenciando com o passar dos milênios, à medida que nosso povo começava a desbravar diferentes territórios de nosso mundo. Por isso estamos espalhados por quase todo o globo. Poderíamos dizer que, em todo o nosso mundo, Sekhairiann, há sempre um traço da cultura dos feer, ou cidadelas erguidas por nossos primos. Contudo, apesar de relativamente unidos, diferimos um pouco, paradoxalmente, inclusive, graças exatamente à adaptação constante, que não somente correu em traços biológicos, como também em socioculturais.

Os dahr feer, por exemplo, como muitos sabem, são os nossos primos que habitam as florestas, bosques e pântanos. Eles apresentam suas peles mais escuras, variando entre tons de verde água, verde musgo, verde esmeralda, verde oliva, verde lima, lima (não, não é repetição, pois há diferença entre estes tons), verde chá, verde água-marinha, verde aspargo, verde floresta e todos os demais, chegando até mesmo a um verde tão escuro que beira quase o negro. Possuem orelhas um pouco mais proeminentes e são consideravelmente fortes, porém de físico ágil e mais elástico. Aliás, de modo um pouco diferente dos hem feer, seu poder físico enquadra-se mais em uma categoria ginasta de força. Fora isso, seus sentidos não foram poluídos pelos ruídos e a constante agitação sensorial dos grandes centros urbanos, atribuindo-lhes maior percepção visual, olfativa e auditiva sobre o ambiente.

Apesar de seu modo livre de ser e de seu contato com a natureza, os dahr feer nunca foram selvagens... Não com o rótulo bruto e incivilizado que muitos imaginavam e ainda imaginam. É uma espécie gentil e muito alegre. Sábios e amáveis. Com uma compreensão de equilíbrio e integração à natureza muito superior a quase todas as demais espécies. Suas cidades são, em sua maioria, exóticas, arborícolas, tribais e magníficas (embora haja cidades mais urbanizadas e os dahr feer destas desenvolveram uma cultura um pouco diferente dos demais, um bocado mais citadina obviamente), contudo não possuíam, naquela época, um reino unificado ou ordem política predominante, assim como não possuíam também uma capital centralizada.

Os dahr feer se espalhavam pelas florestas densas de Nig’hara, pelos bosques orientais de Ormanni (neste território justamente há suas cidades mais urbanas, ditas anteriormente), os pântanos de Machubah e quaisquer lugares no mundo onde a vegetação predomine. Muito embora Kethuria, localizada no coração do território selvagem de Gorondor, fosse (ainda é em parte) a cidade – se é que podemos chamá-la deste modo – mais importante em sua sociedade, na qual os grandes chefes tribais, vindos de todas as partes do mundo, se reuniam para concílios, sob a presidência do líder local (este talvez pudesse ser considerado um kirann supremo). Os sacerdotes peregrinavam para os grandes ritos de Khonn Wolpuz, nosso poderoso deus wolpuz da selvageria, protetor dos caçadores e guardião do equilíbrio natural. Também era comum que Kethuria fosse o palco de celebração dos ritos do quinto mjesek, o rito das estações, e outros ritos de grande importância.

Gorondor, na época, era um território muito perigoso para viajantes incautos, pois no extremo sul, muito próximo à passagem para o território de Gazeia, habitavam os kiba’nhanga, povo subterrâneo e muito primitivo, de hábitos canibais. Ao noroeste de Kethuria, banhados pelo Oceano Gôndriko, espalhavam-se as tribos dos mambaqui, que pouco incomodavam os dahr feer diretamente, porém impediam o comércio e transporte marítimo pela baía de Môo, forçando nossos primos a fazer uso das águas traiçoeiras do Rio Pythain para esses propósitos. Além disso, ainda havia os reinos hominoid que começavam a descer de Aeteerea e tentar forçar as fronteiras de Gorondor. Graças à deusa Khetann, os hominoid de Aeteerea nunca foram capazes de desenvolver um quinto sequer das habilidades de sobrevivencialismo e combate em selva dos dahr feer para atravessar e lutar no coração dos reinos selvagens.

Quanto aos nossos primos ziie feer, por sua vez, edificaram sua grande cidade-capital, Teth-Sekhai, na maior e mais centralizada ilha do arquipélago de Celeriij. A ilha de Mawinn. Eles sempre foram pescadores excelentes (por isso meu povoado nutria grande simpatia e respeito por eles), exímios nadadores e mergulhadores, capazes de manterem seu fôlego por sete a oito vezes mais tempo que quaisquer outros feer, ou de se locomoverem embaixo d’água em velocidades espantosas. Fora o fato que também eram considerados estupendos navegadores. As águas dos oceanos, rios, mares e lagos eram, para eles, como se fosse a sala de estar de suas casas. Nossos primos evoluíram sempre à margem de grandes porções de águas, por isso desenvolveram suas habilidades únicas neste elemento. Não são anfíbios propriamente dizendo, mas a quase imperceptível membrana que se estende um pouco além de suas palmas, entre os dedos, somado ao peso e densidade adaptados de seus ossos, atribuem-lhes vantagens enormes contra a maioria das espécies, quando submersos.

Os ziie feer são muito festivos e amigáveis. Sua cultura valoriza ao extremo a liberdade, ao mesmo tempo em que despreza o pudor (que eles consideram hipócrita) e a maior parte de todas as convenções sociais em relação à nudez e à demonstração de desejo, que para eles é distorcida e mal compreendida pelos povos continentais. Não podem, por isso, serem considerados exatamente libertinos, depravados ou mal educados, apenas são um pouco mais desinibidos. Alguns de seu povo perdem a linha e acabam gerando situações realmente desagradáveis, outros, que saibam dosar sua “leveza” nata, ao invés disso, acabam sendo admirados por seu carisma e sensualidade. Por causa do rótulo que acabou se formando graças aos exageros dos primeiros, alguns de nossos outros primos feer nutriam e ainda nutrem certa reserva pelos seus costumes, assim como pela tonalidade levemente azulada de suas peles. Tudo isso por causa de suspeitas muito errôneas a respeito de suas ligações com outros povos marítimos.

Na verdade, os ziie feer mantinham-se, àqueles tempos, em uma situação muito complicada com determinados povos e tribos, pois o arquipélago de Celeriij era povoado tanto por estes nossos primos, quanto pelos braquiurite, um povo de carapaça dura e articulada, porém relativamente civilizados, a despeito de sua aparência. Sua relação não era tão ruim, nem chegava a ser conflitante, porém algumas atividades culturais acabavam colidindo, o que causava pequenas escaramuças entre grupos armados independentes. Contudo, isto só ocorria porque a sociedade dos braquiurite, assim como a dos ziie feer, era constituída por um sistema político com um estado quase inexistente (restrito basicamente à segurança e manutenção da ordem pública) e bastante descentralizado. Portanto, quase não opinava quanto às atitudes e compromissos de seus cidadãos, permitindo a formação de sindicatos, clãs, sub-reinos ou unidades independentes. Entretanto, entre seus vizinhos anfíbios e marinhos, os que causavam maiores problemas, em verdade, eram os kagakoku e os marrajo.

Ambas as raças pertenciam à mesma espécie, porém tinham particularidades genéticas e culturais que os diferenciavam em duas subespécies distintas, apesar de se declararem tão diametrais, que, inclusive, suas nomenclaturas não possuíam sequer o gênero comum (em sua constituição linguística, claro). Eram criaturas racionais, porém muito primitivas e brutais, que habitualmente atacavam algumas das ilhas do arquipélago em busca de comida. Para piorar, ainda havia os zennarte: os terríveis piratas do Oceano Feérico. Eram advindos de quase todas as espécies, nações e demais buracos do mundo, todavia compostos, em sua maioria, por hominoid. Sua presença poderia significar semanas de combates contínuos para preservar as ilhas das pilhagens e as ladwynne (donzelas) da vergonha.

Os thau feer, falando de outra subespécie, estes sim no passado me causavam considerável temor. Na verdade, muito temor e suspeita! Sua tez acinzentada, seus ferozes olhos vítreos ou amarelados, seus cabelos com texturas mortas e seus cultos sempre secretos e sinistros despertam a desconfiança em toda a família dos feer. Por sorte, ou não (como se costumava dizer na época), são os que habitam (ainda) paragens mais isoladas, embora não tão distantes. Isolam-se em sua cidadela nas montanhas de Harau.

Eu já visitei Zerandius. Não é exatamente o centro político, em um sentido administrativo, de Harau, mas sim a capital religiosa, já que não possuem uma ordem hierárquico-social no sentido comum. Seu povo é comandado pelo sacerdócio, e o cargo de Füq Maweth, que é o supremo sacerdote de Zerandius, acaba exercendo as funções de: líder religioso, militar e político. É um povo muito silencioso, o que lá habita, e que nas primeiras impressões me causou muita angústia, ainda que posteriormente eu os tenha conhecido melhor em grandes temporadas que passei em seu reino e até me acostumando bastante à sua generosidade velada. É praticamente impossível ver um thau feer sorrir. Bom, talvez eu esteja exagerando. É muito difícil, isso sim! Principalmente um nativo de Zerandius que pouco tenha viajado. Sua religião e seus hábitos impõem-lhes uma atmosfera de concentração e seriedade anormais. Sua rotina é metódica e monótona. Suas vestimentas são destituídas de individualidade ou leveza e são tão devotos em seu caminho de retidão, que um comerciante thau feer é capaz de te fazer esperar por horas a fio, até que ele possa conseguir o troco exato para as compras que você tenha feito, sem faltar um só grão de ferruhd.

Os thau feer não encontram muitos problemas em seu território, pois a cidade de Zerandius se encontra muito bem posicionada estrategicamente. O que dificultaria qualquer investida inimiga. Para alcançá-la, é preciso atravessar boa parte do território, pleno de caravanas e pequenos vilarejos dos fen gris, que não é um povo guerreiro, propriamente dito, mas são muito ardilosos e ágeis. Zerandius é uma cidadela alta e de dificílimo acesso.

Quanto aos fen gris, já que mais uma vez os citei, é uma das raças mais espertas e marotas de Sekhairiann. Não são feer! Óbvio! Se é necessário dizer? Ahhh! Nunca duvide da ignorância dos swannimane mesmo que sobre suas próprias origens! Na maioria das vezes são conversativos e muito simpáticos, mas adoram engodos e truques. São ladrões hábeis e rápidos, sempre tentando levar a melhor sobre os viajantes. Porém, também são sedutores, contadores natos de histórias, belos em sua aparência exótica e são muito hábeis em argumentação e retórica.

Possuem cinco grandes caudas muito felpudas, orelhas triangulares que despontam pela parte superior de seus crânios, unhas das mãos e dos pés em formato de garras razoavelmente desenvolvidas, pelos nas cores: vermelho, vinho, marrom (em várias tonalidades) ou bege (contudo, ouvem-se muitas histórias sobre fen gris de cores inesperadas). Na maioria das vezes, alguém que negocie com eles é lesado e enganado facilmente, mas ainda acaba acreditando que levou a melhor.

Adoram viver a vida como saltimbancos, adivinhadores e músicos. Suas caravanas e pequenas aldeias praticamente bloqueiam a única passagem até o território dos thau feer, que por sua vez mantém uma relação silenciosa, porém generosa, com os fen gris, provendo-os com produtos farmacêuticos e tratamento médico quando necessitam. Detive-me certo tempo descrevendo-os, pois, ainda hoje, poucos feer mais sedentários desta parte do mundo tiveram algum contato com os fen gris, sendo desconhecidos por grande parte de nosso povo peninsular.

Ao oeste de Zerandius também se estende a cidade de Urkh-Shithur, capital dos durahk khan, o ramo mais poderoso e bélico da espécie dos durahk.  Apesar de imensamente fortes e excepcionais guerreiros, os durahk são justos e honrados. Mesmo pertencendo a espécies completamente diferentes, os gigantes escarlates consideram os hem feer como irmãos nas armas. Além da irmandade que nutrem com os hemporianos, também cultivam uma aliança sincera e afeto verdadeiro pelos feer silenciosos, pois convivem harmonicamente como vizinhos e em uma relação social simbiótica, na qual os durahk oferecem proteção e poder bélico, enquanto os últimos dividem com estes sua ciência. Por conta disso, torna-se um pouco difícil para qualquer exército mal intencionado alcançar as portas de Zerandius com tais ‘obstáculos’ no caminho. Sua amizade, com os thau feer é sólida e edificada em indiscutível confiança, apesar de não ser tão vibrante ou calorosa.

Há como entender esse fenômeno, principalmente se analisarmos da parte dos durahk, que são festivos, audaciosos e enérgicos, opondo-se ao modo de vida introvertido e frio dos outros. É uma relação de troca e, ao mesmo tempo, uma mútua atração pelo diferente. Quanto aos segundos, até hoje há muitos swannimane que não se sentem ainda à vontade entre esse estranho povo, os thau feer. O isolamento os distanciou demais dos outros povos. Não obstante, posso entender porque “O Renascido” viveu durante tantos anos entre eles. Somente nesse lugar, entre a meditação e a disciplina constantes dos feer silenciosos, ele poderia ter encontrado a maestria absoluta sobre os poderes sinistros que dominava (ou ainda domina... quem sabe?) e a extrema compreensão sobre o mundo dos mortos.

Quanto aos psam feer há pouco a ser dito. São nossos primos mais arredios e desconfiados. Talvez por isso tenham construído sua exótica cidade-caravana, uma impressionante construção móvel chamada Aj’Ahaj, “a tempestade do deserto” (em uma antiga língua feerit: psashii), que está sempre se deslocando pelo inóspito deserto de Thunsiris.

Suas peles de coloração forte e brilhosa, curtida pelo sol – eu reconheço – fazem deles, para muitos dos feer em geral, uma das raças mais belas, exóticas e atraentes, ao mesmo tempo em que os provém com uma anormal resistência natural às altas temperaturas, à fome e à sede. Fator este que constitui uma grande vantagem para a sobrevivência em seu território, já que Thunsiris compreende uma vasta extensão entre os territórios de Filanderaia e Tornutumam, chegando a ser considerado, por muitos, como um território só ao invés de dois, unidos por um extenso deserto. Uma região feroz e mortífera. Plena de criaturas gigantescas, venenosas e que lutam contra tudo e todos, devorando qualquer swannima e até mesmo devorando-se entre si.

Para piorar, o deserto de Thunsiris abriga a raça dos jec’hodiss, o povo lagarto que vive de pilhagens. Eles são velozes, ágeis, e não possuem culturas próprias, vivendo do produto de seus ataques. Roupas, armas, utensílios, comida e afins obtidos apenas através dos assaltos repentinos e selvagens que fazem contra as caravanas desavisadas.

Isso, entretanto, não assusta nossos primos do deserto, eis que os psam feer são guerreiros letais também. Na verdade, ainda mais letais... Exímios caçadores e arqueiros. Mestres nas artes da geotática militar e da sobrevivência em solo árido. Portanto, conseguem proteger-se bem dos jec’hodiss. Além disso, os nossos primos das areias possuem laços de estreita amizade e convívio com os munnobahurs (os primos distantes dos hunnobahurs que habitam as terras geladas do norte de Sekhairiann). Um povo forte, de criaturas inteligentes, pacíficas, muito espiritualizadas, mas que também produzem excelentes caçadores e avassaladores guerreiros. Essa aliança permite às espécies, em questão, a constituição de um forte exército unificado, cuja unidade mantém facilmente os lagartos do deserto e as tropas de Balluth à distância.

Os psam feer são os melhores corredores entre todas as outras espécies de Sekhairiann, tanto em resistência a longas jornadas, quanto à velocidade e aceleração em si, embora não disponham de tanta força física quantos alguns de nossos primos.

Todavia, quem sou eu para criticar a constituição física dos psam feer? Pois, a espécie a qual pertenço, os luxx feer, é nitidamente a mais fraca, em matéria de força bruta, entre todas as outras espécies dos ramos feer e, até mesmo, uma das espécies mais fracas, entre outros tão variados tipos de swannimane de nosso variado mundo. Porém, os luxx feer sempre foram os mais inteligentes na hierarquia genética de nosso gênero, disputando arduamente com os eien’ni (pelo pouco que se sabia deles, claro), além de nossa inclinação natural aos mistérios ocultos e à magia sacra. Afinal, nossa fundação foi abençoada por Sellenia, a deusa da magia, cujo nome nossa cidade ostenta.

Fora isso, Sellenia, o reino, tem a tradição de formar verdadeiros soldados. Unidades militares disciplinadíssimas que compensam a falta de vigor físico com dedicação integral à: estratégia, serenidade, lapidação, precisão, prontidão e muitas outras virtudes essenciais às artes da guerra que, de acordo com as lendas, foram ensinadas aos primeiros luxx feer pela própria deusa Aeshenn, a nam (senhora) dos jogos e da estratégia de combate.

Nossas tropas estão entre as mais poderosas de todas as terras e povos que existem em Sekhairiann. Nossa pele alva, estatura abaixo da média (perante os muitos outros povos de Sekhairiann – principalmente entre os feer) e nossos corpos destituídos de grande massa corporal, talvez até mesmo possam enganar os outros swannimane à primeira vista, contudo nossos soldados conseguem sempre surpreender pela técnica, visão e autocontrole absolutos.

Nossa civilização conseguiu expulsar praticamente todas as raças hostis de Diaphanes. Nossos poucos e tranquilos vizinhos remanescentes eram os dhumai trugh. Estes são os antigos nômades entre as espécies dos trugh, espalhados em pequenas tribos ao sul e sudeste do território, o que sempre nos permitiu uma razoável vantagem estratégica, pois eles se interpunham em qualquer eventual passagem dos herald, uma das raças submissas ao império de Balluth Holl Thelurgif, “O Corruptor” (embora, em um passado mais distante, os trugh tenham tentado invadir os territórios feer, o que iniciou uma grande guerra fronteiriça).

Fora isso, Diaphanes mantinha a posição estratégica mais bem protegida de todos os feer, visto que ao norte de nosso território iniciava-se o território de Harau, conforme já citado, muito bem protegido por nossos primos. Ao nordeste, subindo nosso continente peninsular, ficava o território de Ghera id Mann, os seus belos campos divididos entre os durahk geh (os primos camponeses dos durahk khan, porém não tão menos aguerridos) e os pequeninos simalli, que são a raça mais apta à agricultura, herbalismo, pecuária, e outras atividades rurais em toda Sekhairiann. Ao leste éramos costeados pelo território de Cromannith, onde ficava situada a cidade de Hemporia, lar dos nossos beligerantes primos hem feer. Só recebíamos praticamente algum incômodo advindo do sul de nosso continente. Pois nosso território possuía uma extensa fronteira com o território de Thanatia, lar dos herald. Algumas fronteiras sofreram pequenas alterações nas últimas décadas, outras deixaram de existir, mas o elemento primordial, que é a vida inteligente, ainda permanece disposta em grande parte desta mesma forma descrita.

A priori, os pobres coitados nunca conseguiram opor grandes perigos ao nosso reino, pois, conforme citado anteriormente, as tribos dos dhumai trugh acabavam servindo-nos como patrulheiros das margens do Rio Bolli, que é nossa fronteira natural com Thanatia. Muito raramente precisávamos enviar nossas tropas para conter os avanços inimigos. Porém, nesta época, os problemas se agravavam, pois os hominoid do extremo sul do continente, advindos da cidade de Qwarr, estrela do território de Sulfh; submeteram-se, também, ao jugo do Imperador Balluth Holl Thelurgif, assim como seus primos de Aeteerea antes fizeram.

No entanto, Sellenia não podia admitir o temor, pois isto nos enfraqueceria entre os ramos da família. Ainda éramos, por direito e disciplina, os soldados mais imponentes de todos os feer. Durante muito tempo (embora a situação tenha ficado estranha e sinistra àquela época), caso corrêssemos riscos, poderíamos contar com os reforços pesados: os hem feer.

Estes nossos barulhentos e truculentos primos, os hem feer, são os mais bárbaros e beligerantes entre todos os ramos feer. É assim que minha subespécie (e algumas outras) os considera. Há pouco eu havia citado a grande diferença entre os luxx e os hem, caracterizando-nos como soldados disciplinados desde a infância, e aos hem feer como guerreiros de nascença. Pois é exatamente assim, sem tirar nem por, que eles são inevitavelmente definidos. Diz o ditado que um pupinn hem feer já nasce com espada e machado em punho. Entre eles, inclusive, se originou a família Zondrakk, famosa principalmente por seus feitos heroicos em grandes guerras.

Parece muita bajulação? Tenho que fazer jus aos hem feer, pois eles realmente eram (e ainda são) os mais fortes entre os demais tipos em nossa família. Possuem maior estatura e massa corporal, além de enorme resistência muscular e predisposição natural para inteligência combativa. Sua pele sanguínea e amorenada também ajuda a impressionar os inimigos em campo de batalha. Desde a infância são preparados na arte da guerra, caça ou esportes de superação física, sendo bem raros os que se dedicam à magia, sacerdócio ou às letras e artes.  

Na verdade, presencialmente eu não tenho nada contra os hem feer (aliás, um dos únicos hem feer que detestei profundamente desde o primeiro momento, foi justamente Gwydionn Zondrakk, porém esta é outra história que mais tarde esclarecerei) e até nutro extrema simpatia por eles, pois são muito festivos, espontâneos, adoram jogos, competições, boas histórias e adoram os bardos. Louvam-nos (os músicos) como se fôssemos os arautos da alegria, e nos recompensam generosamente. Sua sociedade é livre, extrovertida e ao mesmo tempo muito devota à sua liberdade e soberania. Suas fêmeas têm o mesmo tratamento e direitos que os machos têm, inclusive gerando poderosas guerreiras. Muitas destas compuseram ou contracenaram na história da maior parte das vitórias feer em guerras por toda a sua trajetória.

Não que em meu povo, os luxx feer, as fêmeas sejam vetadas ou submissas de alguma forma, pois em nossa sociedade estas não somente participam da vida política em nosso reino, como também muitas vezes a lideram. Somos de certa foram matriarcais, no entanto, por razões culturais, apenas em setores políticos e religiosos, com menor participação das fêmeas no militarismo. Entre os luxx feer as fêmeas normalmente voltam-se muito mais para a arte, religião e cultura e, apesar de terem sua plena soberania e liberdade, são mais reservadas em suas palavras e atos (por questões comportamentais, não institucionais), embora os machos luxx feer também não sejam exatamente a alma da festa...

Não obstante, sempre me impressionei com a personalidade forte e decidida das fêmeas hem feer. Elas não medem suas opiniões nem mantém reservas quanto à bebida e afins. Possuem atitudes que muitas entre meu povo ficariam escandalizadas, pois não medem palavras e não temem ser rudes, quando provocadas. Ainda assim não perdem jamais seus encantos e carisma, pois, apesar de tudo, os machos hem feer inacreditavelmente sabem a hora exata de medir seus modos e adotarem posturas mais românticas para a conquista das fêmeas, que são idolatradas e muito respeitadas.

Apesar de possuírem hábitos patriarcais e devoção total às figuras masculinas em sua linhagem (um hem feer que se preze sempre se anuncia como zon iid alguém, ou jon iid alguém – filho de alguém, neto de alguém; esta nomenclatura acabou se tornando tradicional praticamente em toda Sekhairiann), as oportunidades em todos os setores de sua sociedade estão abertas para todos os cidadãos, independentes se são machos ou fêmeas. Claro que, como são por natureza um povo brincalhão, zombeteiro e debochado, eles não perdem a oportunidade de tecerem piadas quando um macho não se dedica à ocupações mais viris, preferindo atividades sacerdotais e afins. Os hem feer não tem papas na língua e não se deixam calar pela covardia de outras espécies que tem medo de ouvir o que não querem. Falam até demais, às vezes...

Eis uma grande ironia! Recapitulando: Nós, luxx feer, somos, a princípio, matriarcais. Vivemos em uma sociedade na qual os exércitos são supervalorizados e bem treinados, contudo apenas com o objetivo de proteger e manter nosso estilo de vida e nossos hábitos culturais. Nossas fêmeas, como antes dito, ocupam as maiores cadeiras hierárquicas políticas e sacerdotais. Entretanto, estas mesmas estão atadas às regras e hábitos de etiqueta que valorizam o exagerado decoro e a serenidade, como muros valorais que ilusoriamente nos protegem. Enquanto os nossos primos bárbaros vivem praticamente pela guerra, competição e pela conquista, cultuando a arte e a intelectualidade apenas como diversão e/ou ferramentas para o fortalecimento de sua sociedade. Ainda que valorizem ou prefiram hierarquicamente os cargos político-militares (na maioria das vezes, ocupados por machos) aos teórico-administrativos ou religiosos, nenhuns de seus cidadãos são presos aos ditames do comportamento “educado e tradicional” ou códigos politicamente corretos de conduta. 

Hemporia é, sem dúvida, uma sociedade única. São considerados como criaturas bélicas imprevisíveis, impulsivas e irascíveis. Ainda assim, desfrutam de grande respeito e valor entre todos, posto que vivam pela honra. São guerreiros únicos, individualmente falando. Apesar de nunca terem sido tão familiarizados, ou tão partidários, de estratégias militares refinadas, um bando de hem feer soltos em um terreno plano e aberto sempre foi capaz de aterrorizar panteões bem formados de quaisquer outras raças, pois sua cólera é e sempre será lendária.

As histórias e mitos antigos atribuem sua força ao deus Athonn – “o deus que ergue montanhas” –, que os teria apadrinhado, após o surgimento dos primeiros de sua raça. Porém, Dhorn, o deus da guerra e da fúria, teria derrotado Athonn durante um combate em uma arena enlameada, tendo, a seguir, pedido como prêmio a guarda dos hem feer. Por isso, dizem que os nossos primos bárbaros, quando estão imbuídos por sua cólera divina, só param depois que cruzarem os portões de Walshavalla, a “terra dos mortos”, em nossa cultura. Um hem feer continua combatendo mesmo se mutilado gravemente durante um confronto. Para ser mais franco, quanto maior for a proximidade com a morte, justamente parece que eles se sentem mais orgulhosos e inspirados pela glória.

Seu território era soberano e mantinha-se sob seu pleno domínio. Porém eles possuíam cidades como Bargania e Hagorah que eram respectivamente: o maior posto comercial de seu reino e a cidade das arenas e coliseus. Cidades estas, nas quais eles recebiam hospitaleiramente guerreiros, comerciantes, artistas e viajantes de quaisquer raças. Era (e ainda é) muito comum passear por uma cidade tipicamente hem feer e deparar-se com um durahk, na maior parte das vezes do ramo dos khan.

Não podemos esquecer, também, dos nossos distantes primos tess feer. Porém seu povo sempre permaneceu um enigma para todos os outros ramos. Nossos primos, que habitavam as distantes paragens do extremo oriente de Sekhairiann, cortaram todos os laços com os demais ramos da família. Sua cultura não nos parecia compreensível ou inteligível, recusavam-se a adotar o feerit, que por convenção mundial tornara-se o dialeto oficial de toda a Sekhairiann, assim como bloqueavam todas as rotas comerciais ou rotas de informação que se aproximassem da periferia de seu território: Numorih, que abrigava a gigantesca cidade de Shiamaria, a invulnerável capital-fortaleza, rodeada pelo círculo interno da intransponível muralha numorihana. Esta muralha dispunha-se em dois grandes círculos. O primeiro que era um círculo externo, protegia quase toda a extensão do território de Numorih, enquanto o segundo encerrava a cidadela de Shiamaria, tornando-a uma gigantesca fortaleza.

Eram (e são) guerreiros poderosos e terríveis, que se mantinham frios e impassíveis durante o combate, como se suas almas estivessem congeladas. Além disso, desenvolveram técnicas exóticas e seus guerreiros de elite diferiam muito em habilidade de quase todas as classes de guerreiros que tínhamos conhecimento. Eram assassinos cruéis, limpos, rápidos e silenciosos. Inclusive, os primeiros stygenndaitto foram criados pelos tess feer. Essa era uma de suas técnicas secretas de combate que acabou se disseminando pelo mundo, graças ao grande rei Ethunnar, de Sellenia, que durante a Primeira Grande Guerra Sekhairianna, ao lado dos reis Gwedrann, de Hemporia, e o rei Rhazor de Kethuria, conseguiram estabelecer um forte vínculo de amizade com um stygenndaitto renegado; que, por sua vez, passou os conhecimentos que dispunha a três grandes soldados dotados de cada um dos reinos. Desta forma a arte dos guerreiros silenciosos acabou sendo disseminada pelo resto do mundo civilizado.

Porém, as rixas com os tess feer datavam de muito antes da Primeira Grande Guerra Sekhairianna. Ainda, para piorar, durante a Guerra da Submissão, o reino dos tess feer assumiu ter aderido à causa do Imperador Balluth, jurando fidelidade ao Império Único. Este acontecido selou de uma vez por todas a separação desses nossos primos dos demais ramos da família.

Eu tive a interessante oportunidade de me deparar muitas vezes com vários tess feer. Sua pele amarela, cabelos negros, lisos e compridos, tatuagens exóticas que recobrem quase todo o corpo e seu ar frio e cruel, fazem com que os seus oponentes tenham muito medo. Seus talentos genéticos são: um equilíbrio sobrenatural (tess feer são capazes de caminhar com facilidade e indiferença sobre fios de seda esticados entre copas de árvores) e inacreditável coordenação motora (consequentemente controlam com facilidade quase todos seus processos orgânicos).

Bom... Existem também os mili johr feer, que não são exatamente uma subespécie à parte, mas sim um tipo de denominação civil, que é como muitos mestiços se consideravam na época. Quando um feer possuía quatro ou mais raças diferentes em sua linhagem, passava a se considerar um mili johr feer. A priori essa era uma denominação isenta de racismo ou de algum outro valor pejorativo. Embora alguns feer mais tradicionais não aprovassem os cruzamentos inter-raciais, nossas sociedades, em geral, nunca adotaram posturas nitidamente racistas ou segregacionistas. No entanto, os mili johr feer gostavam de usar esse termo e de se denominarem desse modo, pois acabavam obtendo algumas vantagens; tendo em vista que a participação de mestiços nos concílios políticos possibilitava maior entendimento entre os diferentes reinos dos feer, e com isso os representantes miscigenados acabaram oficializando o termo, conseguindo vantagens de cidadania múltipla para os mili johr feer. Em geral, não havia preconceito a seu respeito. As relações entre nossas subespécies originais, entretanto, é que eram um pouco mais complexas.

 Em relação aos hem feer, por exemplo, nossas subespécies – os luxx feer – estiveram, durante muitas eras, envolvidas em um conflito mudo e indireto. Na verdade mais uma relação tumultuada entre irmãos que diferenças arraigadas em si. Apesar de nossos reinos sempre se considerarem reinos unidos, praticamente cidades gêmeas, eles, os hem, desprezavam nosso apego às ciências e aos livros, assim como desprezavam nossas estratégias civilizadas e premeditadas de combate e nossas convenções sociais. Os hem feer em geral não têm muita paciência para nossa predisposição política, nem para os discursos intelectuais e filosóficos que efetuamos durante os concílios.

Por outro lado, minha subespécie também os considera brutos, ignorantes, barulhentos e beberrões. Contudo, somos ambas as subespécies diretamente descendentes de Rhonixx e Dashenn, e de seus filhos: Gwederann, “O Forte”, e Rawzynn, “A Sábia”. Além disso, apesar das discussões usuais entre generais luxx e hem, quando finalmente atingem um consenso, a união dos dois exércitos costuma tornar-se uma máquina de guerra praticamente imbatível.

Os dahr feer e os hem feer nutrem um respeito mútuo, embasado no culto de deuses guerreiros e pelo fato de ambos valorizarem muito as suas aptidões físicas, assim como pela sintonia de seus espíritos livres e festeiros. Apesar da distância que separa os dois reinos, não é difícil ver alguns hem feer em viagem para Kethuria, a fim de participar dos grandes festivais, ou um dahr feer visitando Hemporia durante as grandes competições de jogos de guerra. Sem falar, nos inúmeros casos de miscigenação entre estes dois povos.

Nossos primos psam feer raramente socializam com outros ramos da família, mas não chegam a nutrir desafetos ou mesmo despertam quaisquer tipos de antipatia. Simplesmente mantém-se à distância. Respeitam muito os dahr feer e os ziie feer por sua ligação com a natureza e com os elementos naturais. Entretanto, não conseguem se sentir à vontade nas cidades hem feer e luxx feer, nem conseguem se adaptar ao clima soturno e sombrio dos thau feer. Ainda assim, paradoxalmente, alguns poucos psam feer acabam atraídos, por curiosidade, pelas grandes cidades de Sellenia e Hemporia, e o clima ameno de seus bosques. Estes usualmente são andarilhos natos, porém sempre voltam a esses dois reinos.

Já os thau feer sempre foram estranhos para todos, é verdade, mas, por incrível que pareça, eles nunca julgaram nenhuma das outras raças por suas diferenças. Ao contrário, simplesmente sempre souberam-se diferentes, respeitavam as diferenças, mas exigiam que não os perturbassem ou discutissem seus hábitos. Apesar de tudo, não é difícil que um thau feer se aproxime de um luxx feer, ou estabeleça algum nível de relação de amizade, pois eles, assim como nós, também são amantes do saber e das artes. Difícil mesmo era presenciar um thau feer perder seu precioso tempo tentando conversar com um hem feer. O silêncio meditativo contra o ruído sanguíneo.

Sábio é perceber o quanto estas relações mudaram (continuam mudando cada vez mais) um pouco em nossa era, e refletir o porquê destas mudanças, ou se não deveriam ter sido desta forma desde o início...

Porém, o tempo para deliberações desta natureza voltará quando a paz favorecer novamente a filosofia e as artes das palavras e da escrita.

            Embora – confesso – um tanto maçante, essa introdução foi necessária para que entendam a sociedade dos feer e entendam as forças que moveram e continuam movendo o nosso mundo em tempos de guerra ou em tempo de paz. As circunstâncias geralmente interferem em nossos desejos e em nossas opiniões, cegando-nos ou iluminando-os, pois todos nós somos eternas pupinne cósmicas, em nossos anseios e em nosso orgulho. Imerso nesta mesma ignorância, por não poder ver plenamente, mas iludir-me da consistência de minha visão, eu detestei Gwydionn Zondrakk desde o início. E é através desta história que eu pretendo iniciar esta narrativa, assim como as razões que me levaram a segui-lo, mesmo detestando-o.

Quando ainda jovem em Laguna Argenta, meu vazer sempre me falava sobre a família real de Sellenia antes da fatídica e trágica queda do dragão. Ele era partidário fervoroso do grande kirann Ethannor Thennoryah e, assim como muitos de nosso povo, ainda acreditava nas profecias sobre a prole do dragão. De acordo com estas profecias, apenas os descendentes diretos de Rhonixx poderiam empunhar Glyrunndhur “a espada do deus Dhorn”, para matar o over chytrall que assolava nosso mundo.

Para nosso povo, Annahk Thennoryah, a filha de Ethannor e praiatsa de Sellenia, era a verdadeira descendente do deus dragão, era a nossa kiravn (rainha) prometida e ainda vivia, mas permanecia escondida até o momento em que retornaria, reclamaria e retomaria o trono de seu reino e guiaria nosso povo contra as hordas de Balluth “O Corruptor”. Desde que era uma pupinn ela já despertava o carinho e a curiosidade de todos por onde passava. Curiosamente o mesmo não corria com sua aler, uma pupinn que, apesar de obviamente possuir os mesmos pais heroicos de Annahk e consequentemente o mesmo sangue, possuía um temperamento mais fechado, tenso e nitidamente sonso. Muitos contam que chegaram a receber gratuitamente caretas suas quando a olhavam.

Meu vazer se gabava de que seu avô teria sido um filho bastardo do bisavô de Annahk, o que nos aproximava em um determinado grau de parentesco da grande rainha das profecias. Por isso, meu vazer me fez estudar com muito afinco, para desenvolver plenamente todos os meus inúmeros e notáveis talentos, a fim de que, um dia, quando nossa kiravn prometida e oculta retornasse, eu pudesse me tornar o primeiro ayehdomann da corte de Sellenia. Uma pretensão bastante elevada? Quem não sonharia com a chance de conviver ao lado da ladwynn lendária e sua família, ainda mais dispondo dos dons, ferramentas, habilidades e disciplina necessários para tanto?

Porém, atentem, meus ouvintes. As funções de um ayehdomann não se resumem pura e simplesmente às dos bardos normais. Nós oficializamos o início dos rituais e festividades religiosas, interpretamos os sonhos, somos autorizados a escrever sobre a família real, acompanhamos os exércitos em combate e invocamos, com nossas canções, as bênçãos dos deuses.

Somos os intérpretes dos kiranne, quando precisam entrar em contato com algum povo que não conheça o feerit. Abençoamos e educamos a kirannith (família real), e traduzimos textos antigos e sagrados. Apenas o theores ayehdomann recebe a honra de adentrar o templo principal de Sellenia. Esta variação de nossa classe está incumbida da divina tarefa de transcrever e interpretar as profecias realizadas pelas ptherynn. Para tanto, compreensivelmente eles devem ter sua virilidade extirpada, para que não sucumbam à tentação e acabem cometendo algum pecado que ofenda a pureza das nossas sacerdotisas sagradas. Claro que esta seria uma imensa honra para qualquer ayehdomann, mas nunca aspirei a tal cargo. Prefiro manter cada parte do meu corpo em seu devido lugar.

Meu grande sonho sempre foi o de ser o paideoh ayehdomann! Este é o ayehdomann que se responsabilizaria pela guarda espiritual e educação da família real. Para isso, dediquei-me durante toda a minha vida. Pois, assim como meu vazer, acreditava e cantava as profecias sobre a prole do dragão, e sonhava com o retorno de Annahk Thennoryah, nossa amada kiravn dos sonhos e das esperanças.

Um ayehdomann é considerado intocável, pois nossas vozes proferem as palavras sopradas por Djannyn, a deusa da música e das mensagens dos deuses. Por isso, também consideramos todo e qualquer bardo (mesmo que não seja um dotado) um swannima (vivente racional) tocado pelas bênçãos de Djannyn. E exatamente por causa dessa crença é que surgiu meu asco e repulsa por Gwydionn Zondrakk.

Da primeira vez que o vi, ele era um guerreiro em ascendência. Havia passado muitos anos de sua vida, escondido sob a alcunha de Akill Kriptestenn, zon iid phann feer, durante o tempo em que andou entre os lendários Wardanne. Sua reputação crescia vertiginosamente, pois se espalhavam já por toda Sekhairiann as histórias sobre o jovem hyerogladius que havia derrotado e matado o grande Ouruhs Glathiatus, um mito entre todos os guerreiros que já caminharam por Midharenn.

Nessa época, o Zondrakk ainda mantinha oculta sua verdadeira identidade, mas já havia se tornado o braço direito de Mannsh Xen’dinn, o líder da força rebelde antiballuthiana “Sekhairiann Hynnode”. Também já havia participado de inúmeras batalhas e realizado outros grandes prodígios, o que aumentara ainda mais a sua fama. Como era um dos favoritos do conselho de Mannsh Xen’dinn, assim como um de seus principais gendrote (generais), Gwydionn e a Sekhairiann Hynnode acompanharam-no em uma viagem a Serendor – uma efervescente cidade comercial localizada nas planícies de Outarenn –, para negociar com um importante chefe local da resistência a sua participação em uma terrível batalha que estava por vir (posteriormente esta batalha também se tornou lendária). Eu também me encontrava na cidade, logo não tardou a que nossos caminhos se cruzassem.

Naturalmente fiquei impressionado com o porte de Gwydionn. Era nitidamente um hem feer (mais tarde percebi meu erro, pois ele também possuía ascendência dahr feer, esta flagrante apenas no comprimento ligeiramente maior de suas orelhas) dotado de uma musculatura tão forte que, salvo suas feições, sua cor e suas orelhas (mais uma vez referindo-me a elas, porém para exemplificar que todo feer, ainda que possuidores de desenhos diferentes do órgão, segundo cada subespécie, ainda assim possuem-nas pontudas), de longe ele poderia ser confundido com um durahk khan. Portava uma grande espada prateada (uma hessenshokenn legítima digna de grandes hyerogladius) que com certeza teria sido produzida por algum grande ferreiro. Também usava um imenso escudo retangular e espesso, preso às suas costas, cota de malha reluzente, grandes manoplas e botas de metal.

Parecia uma imagem esculpida em dhornmanium. Seus cabelos longos e castanhos eram atados na nuca em uma presilha que mantinha sua extensão solta, e ainda assim sua franja escorria por sobre o seu rosto, misturando-se ao incomum e suspeito alaranjado profundo de seus olhos que, por falar nisso, pareciam-se com duas pontas de flechas sendo arremessadas por suas órbitas, reluzindo em um misto de fúria, vontade e tristeza.

Tinha muitos amigos, inclusive/e principalmente Anmdall Muk’rinn, o grande guerreiro neshamah gadithann, que estava sempre ao seu lado, mesmo quando estavam em suas montarias. O bahurs portava-se em relação à Gwydionn estranhamente como se fosse um guardião silencioso de um ejunn (nobre) ou de um kirann (rei). O que ajudava muito a enriquecer o mito em ascendência do lodwann, pois poucos conseguiam entender fragezint chytrallk (expressão idiomática sem tradução lexical isolada que corresponde mais ou menos a: “por que diabos”) aquele poderoso e famoso munnobahurs de linhagem tão reconhecida, que era considerado praticamente uma lenda viva, dedicava tanta atenção a um jovem sem hereditariedade ou posses. Entretanto, apesar do fascínio inicial, minha repentina admiração não demorou a desfazer-se naquele mesmo dia. Na verdade, transformara-se drasticamente.

Havia pouco tempo que eu adquirira certa amizade por outro bardo. Em verdade não chegava a ser amizade, por assim dizer, mas eu passava, na época, bastante tempo ao lado dele. Seu nome era Kaetann Vallais e eu aprendia com ele técnicas novas e bastante inovadoras (na época assim eu acreditava), as quais eu almejava incorporar aos meus conhecimentos próprios e inovações musicais, para produzir um estilo inusitado e evoluído de música. Algo que faria meu nome em Sekhairiann e facilitar-me-ia alcançar os meus sonhos.

Kaetann era cínico, arrogante, fazia-se de intelectual e ao mesmo tempo fingia-se humilde e simples. Na verdade, entretanto, era um vendido, um populista hipócrita e aproveitador. Prestava-se a escrever qualquer coisa que lhe fosse encomendada e desfrutava de um status de revolucionário, mas já cantara, inclusive, na corte de Markrill Awdminn, o falso kirann (ou kirann falso) de Hemporia, e prestara-lhe mil homenagens. Era um ser fútil e arrogante (ambos, mas refiro-me, aqui, à Kaetann), que se mascarava completamente apenas para fazer tipo. Aliás, mestre em forjar inteligência ou sabedoria. Costumava proferir aforismos e jargões dúbios e nunca os completava, pairando sempre a incerteza no final de cada sentença sua; para muitos parecendo assim alguma forma superior de desprendimento. Em tempos anteriores cantara contra “O Corruptor”, cantara contra kiranne corruptos e políticos desonestos. Cantara sobre soldados que abusavam de seu poder e cantara sobre a pobreza e a humildade. Todavia, não pensava duas vezes em se aliar aos seus “antigos inimigos” para esquecer a humildade e findar rapidamente a sua própria pobreza.

Particularmente, eu me associara a ele apenas para poder aprender o pouco que pudesse enriquecer meus objetivos. Não obstante, fosse o que fosse, Kaetann era um bardo e para mim isso era sagrado.

Naquele dia, Gwydionn ao entrar na cidade avistou Kaetann, veio até ele e trocou pouco menos de uma dúzia de palavras. Este factualmente tentara fugir, mas vira-se cercado pelo olhar inescapável de Anmdall, imprensado pelo público que se ajuntara (os swannimane supostamente racionais parecem possuir esse ‘faro’ para tragédia, quando estão em bando) e imobilizado pela certeza amarga de que o hyerogladius não deixaria que isso acontecesse. Em seguida, Gwydionn sacou sua espada e, com apenas um movimento, a cabeça de Kaetann rolava pelas ruas de Serendor, enquanto seu jovem pajem tentava estupidamente alcançá-la.

Foi uma cena ao mesmo tempo ridícula e trágica. Os membros da Sekhairiann Hynnode, que estavam próximos de Gwydionn, ficaram mudos e chocados, sem saber o que dizer ou fazer, os cidadãos congelaram como se um menor movimento ou sussurro pudesse acarretar o juízo final. Anmdall serenamente sacou seu arco, estendeu suas flechas e manteve-os apontados para o chão, como se indicasse que não pretendia usá-los a não ser que alguém pusesse Gwydionn em ameaça. Eu engasguei com um pedaço de pão que mastigava.

O Xen’dinn voltou-se calmamente para Gwydionn, aproximou dele sua montaria e lhe perguntou se tal gesto tinha sido uma questão de honra, se fora caso de extrema necessidade. O jovem hyerogladius, sem demonstrar abalo nenhum, apenas acenou com a cabeça que sim, enquanto limpava o sangue de sua espada, para em seguida guardá-la. Parecia bufar e quase chorar de satisfação. Mannsh olhou para o resto de suas tropas e declarou que apoiava Gwydionn. Então todos se acalmaram e simplesmente deram de ombros.

Eu não pude conter minha indignação e avancei ofendendo-o e dizendo que Kaetann era um ayehdomann, vociferando que nem os kiranne ousariam infringir tal punição a um bardo sagrado (dando ênfase ao “sagrado”) sem dar motivos, ou sem um julgamento longo e refletido. Quanto mais um bárbaro ignorante e sem linhagem real. Disse-lhe também que aquilo era um absurdo e que não poderia ficar assim, que sua alma seria despedaçada e dependurada do lado de fora dos muros do Walshavalla, juntamente com todos os seus antepassados.

Gwydionn apenas refreou novamente o seu equinodonn e nesse momento eu me dei conta de que minha língua tinha acabado de preparar a minha própria sepultura. Senti minha garganta seca e minhas entranhas querendo se esvaziar sem controle. Ele aproximou-se o suficiente para que eu sentisse a respiração de seu equinodonn mesclando-se com a minha. Em seguida ele apenas olhou para mim com aqueles dois sóis incandescentes emoldurados no rosto, com uma mistura de desprezo e sutil compaixão, como se estivesse debochando educadamente, e disse:

– Seu amigo teve o que merecia. Contudo, se você estiver com pena dele e quiser estar ao seu lado, para consolá-lo é claro, eu posso providenciar isso. Jamais, contudo, fale de meus antepassados novamente, ou essa sua viagem de reencontro com o bardo maldito poderá ser mais longa e sofrível.

Não pude responder. Gwydionn sorriu suavemente como se tivesse invadido a minha alma e descoberto o quanto eu estava apavorado e arrependido de falar sem pensar. Ele simplesmente me desprezou, forçou seu equinodonn a dar meia-volta e continuou seu trajeto com a Sekhairiann Hynnode. Nem olhou para trás. Era como se sua montaria tivesse largado apenas mais um tolete de skit pelo caminho. Nesse dia, por causa disso que aconteceu e pelo que perdurou acontecendo com meu sistema nervoso ainda por muitos e muitos anos, eu o odiei com todas as forças de meu coração.

Ele não somente havia assassinado um bardo publicamente e a sangue-frio, como fez isso sem sequer se perturbar com a reação dos swannimane. Para finalizar, saiu impune, sem que ninguém o incomodasse e como se o acontecido tivesse sido algo tão trivial e sem importância, que nem lhe impediria de tomar algumas canecas de serevizzia a seguir. A cabeça de Kaetann parecia um tanto quanto estúpida e destituída de valor. Se o pajem não a tivesse recolhido e enrolado-a em uma toalha, não demoraria a que as pupinne a usassem para brincar, chutando-a pelas ruas.

Além disso, ele me humilhara. Ameaçara-me e logo a seguir ignorou minha presença. Ignorou que eu pudesse me vingar dele amaldiçoando seu nome nos rituais ayehdomann, ou que eu compusesse centenas de canções denegrindo sua imagem, ou distorcendo seus feitos e tudo o mais. Era como se ele simplesmente considerasse-nos, os bardos, como criaturas incapazes de afetarem seu humor ou disposição. Como se fôssemos vermes inúteis, que não pudessem ofuscar sua glória de guerreiro.

Para piorar, eu tinha a forte impressão de que ainda teria que suportar ouvir falar sobre seu nome, e que ainda haveria de encontrá-lo muitas vezes, pelo meu caminho, ao longo de minha vida. Como se eu tivesse rogado uma praga contra minha própria encarnação, ou deuses ouviram meus pensamentos e resolveram zombar de mim. Permanecia encontrando-o repetidamente, durante alguns anos, em terríveis pesadelos nos quais ele surgia e vinha calmamente, caminhando para arrancar minha cabeça. Com sua montaria pisoteando meu corpo. Sonhava que Anmdall disparava suas flechas, perfurando as palmas das minhas mãos e o dorso de meus pés, atando-me às árvores ou às paredes, para que Gwydionn pudesse me alcançar e me estripar, enquanto assobiava tranquilamente uma serena canção de ninar. Sonhava ainda com muitas outras imagens, ainda piores e mais atemorizantes. Em todas elas eu era – de alguma forma terrível – espancado, humilhado, fatiado, esmagado, despedaçado, derretido, estilhaçado, torturado e/ou morto no final.

Fora isso, conforme já dito, como se uma maldita profecia tivesse sido traçada para o meu destino, parecia que os deuses decidiram me culpar por algo feito em outras vidas e me condenaram a ter que estar ao lado dele. Pois, da segunda vez em que o encontrei (alguns anos depois), Sellenia estava em polvorosa. Nossa kiravn Annahk estava viva e retornava ao seu trono, que havia sido guardado por sua sann Seyrenne por mais de dezessete anos. Era um misto de euforia e pura comoção que inundava as ruas da cidade.

Nunca me esquecerei do mágico momento em que eu vi Annahk. A bisneta do vazer de meu avô bastardo. Minha prima longínqua. A linda e sábia kiravn das profecias e de nossos sonhos. Tão bela e tão suave. Tão delicada e gentil, porém ao mesmo tempo poderosa e ungida para destinos tão grandiosos. Transpirava luz por onde passava. Espalhava um perfume suave e inebriante de mirynne e dias da maravilhosa e benfazeja estação de Miryshay. Todos exclamavam que os traços de seu rosto e o aveludado de sua voz eram idênticos aos de Sannyria Thennoryah, sua bazer; assim como o verde refrescante de seus olhos e o ruivo flamejante de seus cabelos eram o reflexo exato dos de Ethannor Thennoryah, seu vazer. Ela era linda e emanava sua beleza como uma dádiva aos que dela estivessem próximos. Além disso, ela materializava, em sua existência comprovada, o fruto das profecias sobre a prole do dragão. Nossa kiravn sonhada que voltara para guiar nosso povo e liderar o mundo contra Balluth.

Não pude me conter de tanta emoção. Havia a possibilidade de que em um futuro não muito distante eu estivesse, durante todos os dias do resto de minha vida, próximo daquela magnífica e santificada fêmea. Pois em breve eu poderia ser o paideoh ayehdomann de Sellenia, já que, após anos de estudo, anos de sucesso em inúmeras provas e seleções, eu me aproximava, em disputa com apenas dois nomes bem mais fracos, do cargo cuja vacância exigira os rituais de escolha.

Subitamente, em um gesto de louvor, ao vê-la, eu me atirei de joelhos ao chão, mesmo sem saber se, entre aqueles milhares de swannimane, eu seria notado por minha devoção. Parecia que eu estava envolto em luz e música celestial.

Então, para meu completo desespero, como se advindo do fundo de minha alma, das profundezas de meus temores e fobias, eu escutei o barulho abrupto do resfolegar de um enorme equinodonn, interrompendo a música celestial. Parecia que todos tivessem sido congelados e apenas restasse – em uma brecha entre tempo e espaço – eu, o som terrível de meu terror particular e minhas entranhas novamente querendo afrouxar-se de tanto pavor.

Ouvi seus cascos chocando-se contra o chão, como se fosse um terremoto. Cada batida desafiava as forças da gravidade e atirava-me contra Honkhaldhr, nosso sol, o escudo incandescente de Emann. Senti a sombra do gigantesco animal gradualmente colocar-se entre mim e a luz divina. Ouvi o som pesado e metálico da armadura e das armas sendo levemente sacudidas pelo trote militar e ameaçador. Então, levantei meu rosto, já imerso em pânico, como se cada fibra de meu ser tivesse trazido à tona meus piores pesadelos de volta.

Eu sabia que era ele. Meu inconsciente revirou todas as informações que eu havia colhido, durante algum tempo, sobre notícias que atravessavam nosso mundo. Eu juntei as peças do quebra-cabeça, refleti sobre aqueles sinistros olhos alaranjados que, no passado, me despertaram tantas suspeitas e cheguei à terrível conclusão de que o Zondrakk, cujo retorno, os swannimane também anunciavam e comentavam; o hyerogladius que havia resgatado nossa kiravn, não era nada mais nada menos que o guerreiro assassino que povoara minha alma de pânico durante tanto tempo.

Sentindo cada músculo, artérias e veias, de meu pescoço, enrijecidos e emperrados, lutei para erguer a minha cabeça e olhar em seus olhos. Ele sorriu. Sim. Ele me notou no meio da multidão. Muito mais tarde aprendi que ele jamais se esquecia de um rosto (apenas um único em toda sua história lhe escapou), tampouco esquecia alguma ofensa a seus antepassados. Torceu curioso uma de suas sobrancelhas, franziu levemente a testa e deixou escapar, pelo canto dos lábios, um leve sorriso, confirmando terrivelmente ter me reconhecido. Com esse mínimo conjunto de movimentos de seus músculos faciais, ele me massacrara, esmagara toda a minha coragem, pisoteara minhas forças. Entretanto, ainda assim, seu sorriso era algo impreciso. À época, não era possível afirmar que ele certamente me reconhecera (ao menos eu torcera para que não). Ao mesmo tempo em que deixara evidente que, caso não tivesse me reconhecido, não teria projetado sua atenção sobre mim. Fiquei bastante confuso realmente. Tanto quanto até hoje ainda fico ao relembrar. O fato é que, mais uma vez, atropelara minha minúscula existência com sua arrogância e glória. Eu me senti novamente humilhado. Senti-me insignificante e perecível como um filhote de mamunne.

Meus sonhos foram violados. Meu júbilo foi estuprado pela presença daquele bárbaro musculoso e potente, justamente naquele dia que eu tanto esperara. No dia do retorno da minha amada kiravn.

E ele estava ao lado dela. Como se a festa fosse organizada para ele também. Pleno e reluzente em sua armadura... Sua postura mista de kirann e gladiador... Porque ele era Gwydionn Zondrakk, zon iid Udrer, jon iid Gwonn! Era ele o herdeiro por direito do trono de Hemporia. E Annahk o amava... Ah! Ela com certeza o amava, como sabem todos aqueles que já ouviram sobre suas histórias. Para mim, na época, era inimaginável tal coisa! A kiravn de nossos profundos anseios e esperanças, entregue à brutalidade vil e estúpida daquele bárbaro e profanador das coisas sacras e belas.

Annahk não fazia questão de esconder seu profundo e genuíno amor por ele. Ela olhava para o povo e em seguida olhava novamente, como em reflexo, para ele e sorria. Ela dividia seu momento único com ele. Era como se dividisse também seu reino com ele. Isso, ainda por cima, foi justamente o que ela, naquele mesmo dia, praticamente fez.

Durante a cerimônia de coroação, a kiravn Annahk apresentou-o ao povo como o Zondrakk, herdeiro legítimo de Hemporia, e elevou-o ao posto de guardião da kiravn, o líder da guarda real, o Dux Gladium; para, logo em seguida, anunciar seu vindouro noivado. A primeira coisa que Gwydionn fez (com a aquiescência de Annahk) foi desfazer a guarda de elite real, para eleger seus Zondrakk (não o nome de sua família, mas o título que atribuíra a sua guarda particularl) ao cargo. Muitos protestaram, mas em um breve e grosseiro discurso ele encerrou a discussão com o eficiente e erudito argumento sob o fio de sua espada. Todos os revoltosos silenciaram e se acovardaram. Exatamente como eu fizera alguns anos atrás.

O próprio ejunn Awdrenn não se colocou muito tempo entre ele e seus desmandos. A princípio acreditei que o “Hyerogladius Puro”, “O Invicto”, o derrubaria de sua arrogância e o derrotaria na frente de todos. No entanto, Gwydionn desceu de seu equinodonn, colocou-se a menos de um palmo de distância, face a face com ele e, após algumas farpas, citações do juramento dos hyerogladius e palavras amenas de irmãos, conseguiu, também, seduzir a alma do puro, que se ajoelhou perante o Zondrakk, jurando-lhe eterna fidelidade.

A essa altura eu quase comia minha guitarra de tanto ódio. Parecia que o mundo se dobrava àquele bárbaro!

A seguir, fui levado à kiravn Annahk, pois o conselho dos delegados-ministros, junto à nova bazer kirathenn (a grande líder do templo) sugeriu para a kiravn a necessidade de um novo paideoh ayehdomann. Posto que Merkurynn, o meu saudoso kyhonn, meu mestre, que também fora o meu antecessor, havia falecido recentemente. Em seu testamento, explicitara o desejo de que eu fosse seu substituto e denotava minha superioridade em relação aos demais ayehdomann.

Por apenas um minuto tentei esquecer a presença do bárbaro naquele lugar. Tentei retomar um pouco da felicidade que eu sentira por estar tão próximo de realizar meus sonhos. Porém, nem Gwydionn, nem Annahk, me deixaram manter essa dignidade. Pois, assim que fui apresentado, ela pediu ao bárbaro que grunhisse a sua opinião. E ele disse:

– Sabe o que penso sobre os bardos, minha kiravn. Para mim, eles não passam, em sua grande maioria, de uma corja de falsos artistas, interesseiros, vendidos, mentirosos e covardes. Contudo, eu já escutei esse Koverdall se apresentar. Ele é diferente dos outros. Possui verdade, energia, uma língua ferina e muito talento. Eu gosto de sua atitude e de sua música. Por isso, eu aprovo sua decisão.

Aquela foi a humilhação suprema e final. Pois, para ver meu sonho realizado, tive que ser submetido ao voto daquele que eu mais detestava. Além disso, ele me elogiou e me aprovou! Como se, mesmo em sua condição de bárbaro bruto, ignorante e assassino de bardos, demonstrasse uma infalível superioridade real. Sua mão pousara sobre meu destino. Eu me sentia um passarinho preso entre os dentes de um djagaar.

Eu o odiava. Ele tomava, para si, tudo ao redor de todos. Tomara a vida de um ayehdomann, tomara o dia de minha glória, tomara o amor da mais perfeita entre todas as fêmeas de Sekhairiann, estava tomando (de um jeito ou de outro) parte do trono de Sellenia e, um dia, acabaria tomando de volta seu trono em Hemporia também. Quem sabe tomaria o mundo para si.

Acatei meu destino, embora parecesse que Palik, o deus das travessuras e dos imprevistos, estivesse escrevendo presencialmente com mijo aquele capítulo da história de minha vida. Dando boas risadas às minhas custas, claro...

Assim, eu me uni à história de Gwydionn e Annahk. Mil fatos ocorreram após este dia, todavia deixem-me narrá-los em seu momento oportuno. Por hora, basta saber que permaneci com eles até o derradeiro dia de sua batalha contra Balluth.

Mantive, durante muitos anos ainda, tais opiniões sobre Gwydionn Zondrakk, embora pouco a pouco eu aprendesse a reconhecer suas virtudes, sua imensa capacidade de superar as dificuldades e de transformar aparentes derrotas em vitórias triunfais, assim como a predileção que os deuses claramente demonstravam ter sobre ele.

Porém, o dia em que eu realmente consegui entender sua história e perceber o que o movia... O dia em que eu descobri que durante tanto tempo eu nunca soubera quem realmente era aquele guerreiro, o dia em que eu aprendi a amá-lo e a admirá-lo, foi, justamente, o dia de sua morte.

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