Desassombro
Desassombro
Por: Paula Albertão
1

PRIMEIRA PARTE

ULLY

            Aterrissei no parapeito do prédio, sem que meu equilíbrio vacilasse por nenhum segundo, e me agachei para olhar a rua escura e deserta lá em baixo. Meus dedos se fecharam na borda estreita automaticamente.

            - Você tem um corte no braço. – me disse um vulto saindo das sombras.

            Sorri em silêncio. Será que não se pode ter um segundo de paz?

            - O que quer, Anton? – perguntei sem me mover para olhá-lo.

            - Nada. – respondeu displicentemente enquanto se aproximava ainda mais – Um boa noite educado?

            - Boa noite. – falei sem emoção enquanto continuava olhando a rua deserta.

            Não havia nada que me interessasse muito lá embaixo, mas não queria que Anton tivesse a impressão de que teríamos uma conversa amigável. Ele tinha a estranha presunção de que éramos amigos.

            - Sua mãe sabe que você saiu, Ully?

            - Você tem o péssimo hábito de se meter onde não é da sua conta. – comentei descendo do parapeito.

            Anton era alto, mais de um e noventa, e minha cabeça mal chegava em seu peito. Chegando mais perto eu conseguia ver o contorno anguloso do seu queixo e como seus olhos, escuros como a noite, estavam me observando atentamente.

            - Só me preocupo com você, garota. – disse em tom provocativo – E tenho certeza que sua mãe não sabe que você está andando em um prédio qualquer no meio da noite.

            - Claro que não. – retruquei com certa irritação – Mas eu posso estar aqui tanto quanto qualquer um. Já sou velha o suficiente para isso, ela que faz questão de não observar isso.

            Antou riu baixinho, acostumado com a eterna briga entre minha mãe e eu. Ela costumava ser excessivamente protetora quanto a tudo, e eu lutava desesperadamente para conseguir um pouco de ar.

            - Vamos embora, Ully. – seu tom saiu mais gentil, que era quando ele estava tentando me persuadir.

            - Você não é meu pai. – reclamei.

            - Nem poderia. – seu tom era levemente ofendido – Não tenho idade para tanto.

            Começamos a andar pelo telhado no prédio, lado a lado, enquanto eu aceitava gradualmente que era melhor ir para casa do que andar à toa a noite toda esperando de peito aberto alguma encrenca.

            - Certo. – cedi finalmente.

            - Ótimo. – ele me olhou por um instante, sorrindo.

            Em seguida acelerou para uma corrida e saltou no espaço vazio para alcançar o próximo prédio. Sempre tinha que haver um toque de exibição, pensei enquanto o imitava, e por algum tempo nós apenas fomos de prédio em prédio.

            Quando chegamos no último, Anton começou a descer pela escada de incêndio que nos levaria até um beco escuro, e mais uma vez eu o segui, com nossos passos anormalmente silenciosos.

            - Você não cansa de ser um completo inútil? – escutei uma voz masculina raivosa saindo por uma das janelas.

            No mesmo instante congelei, apurando os ouvidos, e Anton parou pouco a frente quando percebeu que eu não continuava. Permaneci ali, enquanto ignorava seus chamados silenciosos e severos, para ouvir uma conversa que não me dizia respeito algum.

            - Eu não... – uma segunda voz masculina, mais fraca e tremida, respondeu – Não fiz nada...

            - Eu estou cansado de sustentar um completo peso morto. – o outro rebateu sem piedade.

            Precisei me aproximar mais da janela, o que fez Anton se alarmar, e espiei entre as frestas da janela persiana. Um dos homens estava sentado na cama, de costas para onde eu estava, e o outro estava de pé próximo a uma porta.

            - Eu não fiz... – gaguejou mais uma vez o que estava sentado na cama.

            - Cala a boca. – o que estava em pé avançou em sua direção com o dedo em riste – Não quero ouvir essa sua voz irritante de novo.

            Houve um grande estrondo quando o homem saiu e bateu a porta com toda força. O que estava sentado estremeceu, embora eu não tenha movido nenhum músculo, e passou quase o minuto todo seguinte imóvel.

            - Não aguento mais isso... – ele sussurrou em seguida.

            Quando finalmente se colocou de pé, notei que ele era jovem e estava com os olhos terrivelmente vermelhos. Seu cabelo tinha uma bonita cor borgonha, mas estava sem vida e corte, e ele parecia frágil, como se pudesse quebrar bem diante dos meus olhos.

            Apenas um instante antes de acontecer percebi que ele iria sair pela janela e precisei dar um salto para alguns degraus acima. Ergui os olhos em busca de Anton, não consegui encontrá-lo, mas tive plena certeza de que ele não me deixaria para trás.

            O jovem desceu as escadas rapidamente e sumiu do meu campo de visão em poucos instantes, mas pude escutar seus passos até a rua. Só depois continuei minha descida.

            Assim que meus pés encontraram o asfalto, Anton desceu de uma árvore do outro lado da rua com uma expressão de poucos amigos.

            - Onde você estava com a cabeça? Ele podia ter te visto.

            Passei ao seu lado e continuei andando, o ignorando completamente.

            - Ully, estou falando com você. – sua mão se fechou no meu braço.

            Me virei irritada e usei a outra mão para empurrá-lo com toda a força que consegui reunir. Anton cambaleou e seu aperto se desfez, com uma expressão assustada no rosto, mas sem reclamar.

            - Não me toque sem permissão de novo. – sibilei.

            - Desculpe. – ele pediu baixo.

            Continuei andando pelas sombras da rua, esperando que a irritação diminuísse aos poucos. Anton seguiu alguns passos atras, sabendo que não deveria tentar uma conversa enquanto meus nervos não relaxassem.

            - Sei que o que fiz foi imprudente. – falei vários minutos depois.

            - É bom que saiba. – ele se colocou ao meu lado novamente.

            - Não é um costume. – dei de ombros – Fui atraída, não consegui evitar.

            - Tente mais da próxima vez. – ele reclamou com a voz irritada.

            Lancei um olhar irritado, esperando que ele entendesse que não deveria me provocar à toa, e acelerei ainda mais o passo. Agora iriamos atravessar uma longa ponte, com uma grande que nos permitia ver um rio escuro e agitado vários metros abaixo, e eu queria estar fora de sua iluminação o quanto antes.

            Vi um vulto vários metros a nossa frente e interrompi a caminhada tão abruptamente que Anton se chocou contra mim levemente.

            - Foi sem querer. – apressou-se em dizer antes que eu explodisse mais uma vez.

            Mas meus olhos estavam focados na pessoa que passava as pernas para o outro lado da grade de proteção da ponte e segurava, vacilante, com as mãos no metal. Claramente era o jovem com cabelos cor de borgonha, que declarara não aguentar mais.

            - Nem ouse... – Anton tentou me ameaçar.

            No exato instante que o corpo frágil cortou o ar em alta velocidade em direção ao rio, pulei por cima da cerca sem hesitar e mergulhei de cabeça. Ainda consegui captar as reclamações de Anton, que logo foram encobertas pelo som do vento.

            A água estava muito gelada e, assim que consegui subir, comecei a nadar em busca do jovem. Estava escuro e as águas agitadas me atrapalhavam, mas eu não estava disposta a sair dali sem que ele estivesse seguro.

            Já estava ficando pessimista quando vi um movimento há apenas poucos metros. Tomada de nova determinação acelerei até o ponto e vi seu corpo desacordado boiando livremente de barriga para baixo.

            - Não, não, não... – reclamei me apressando para colocar seu rosto para cima.

            Assim que minhas mãos tocaram seu corpo mole, senti uma pequena eletricidade percorrer todo meu corpo e ofeguei. O que era isso?

            Sem poder me demorar comecei a nadar para a margem, torcendo para que não fosse tarde demais. Jamais me perdoaria por não ter entendido o que ele queria dizer antes de sair pela janela se ele não acordasse.

            O deitei de costas na margem do rio e comecei a chacoalhá-lo com uma ponta de histeria. O que eu devia fazer? Como se salvava alguém de um afogamento? Instantes depois ele começou a tossir e tive o impulso de virar sua cabeça de lado.

            Uma quantidade assustadora de água passou por sua garganta, mas eu respirava aliviada porque ele estava se mexendo e virando de barriga para baixo na areia. Optei por apenas ficar ajoelhada ao seu lado e esperar que acabasse.

            Olhei para a ponte pela primeira vez, mas mais uma vez Anton estava fora de vista. Com certeza agora eu o tinha irritado de verdade, e nem toda minha imposição o faria recuar de novo. Eu tinha me metido numa encrenca sem tamanho.

            - O que está acontecendo? – sua voz parecia arrastada, com certeza a garganta devia estar ardendo.

            Olhei para o homem, que agora erguia a cabeça para me focalizar, e fiquei com a mente em branco. Parte de mim gritava que eu precisava me afastar agora que ele estava bem, mas uma parte um pouco maior me fez permanecer exatamente onde estava.

            - Você é um anjo? – seus olhos piscaram, confusos, e pareceram me olhar com admiração.

            - Já chega. – a voz de Anton soou clara e forte, mas não olhei.

            Meus olhos estavam presos na figura molhada e frágil que estava na minha frente. O que esse jovem tinha de diferente? Ele também não se movia, parecia que estava vendo uma coisa sobrenatural.

            A mão de Anton pousou no meu ombro:

            - A ajuda está vindo. Temos que ir.

            Sem conseguir sentir irritação pelo toque não solicitado, me coloquei em pé. Anton estava certo, eu já tinha feito minha parte e agora era melhor deixar que profissionais tomassem conta da situação.

            Começamos a nos afastar rapidamente e, contra a vontade de um Anton completamente irritado, olhei várias vezes para trás, atrapalhando nosso progresso, para observar que os olhos do jovem tinham se fechado novamente.

            - Francamente, Ully... – Anton repetia de tempos em tempos.

            Não respondi, apenas segui seus passos pela escuridão com os pensamentos muito longe. Não conseguia parar de visualizar os olhos do rapaz em mim, e aquele corpo frágil tremendo de frio na areia.

            Não demoramos a chegar na floresta e, quando nos embrenhamos na mata fechada, Anton se sentiu confortável para expressar seu descontentamento com minhas atitudes. Seu jorro de palavras não surtia efeito em mim, mas fiz cara de arrependimento e não rebati nada.

            - Vai contar para minha mãe? – foi a única pergunta que saiu dos meus lábios.

            Ele parou, colocou as mãos na cintura e respirou profundamente com a cabeça erguida.

            - Não. – disse por fim – Não se eu puder evitar. – acrescentou.

            - Obrigada. – falei sinceramente – Mas eu não podia deixar que ele morresse, podia?

            - Podia. – respondeu impiedosamente – Nós não interferimos.

            Preferi não dizer mais nada agora que ele estava se acalmando, mas não podia concordar. Eu jamais me perdoaria por apenas assistir aquele pobre homem se afogar sem ajudar. Como eu seguiria minha vida depois disso?

            Eu gostava de meus passeios noturnos, claro, e sempre andava no alto ou em lugares muito escuros. Nunca tinha interferido em nada, nunca nem tinha conversado com ninguém, mas me senti verdadeiramente atraída para aquele jovem e, quando o toquei, senti algo muito diferente.

            Finalmente chegamos em casa, bem no meio da mata fechada, e comecei a me direcionar para minha casa. Anton ainda me seguia, mesmo que a sua casa ficasse em uma direção diferente, mas preferi não reclamar.

            - Olha... – ele me disse assim que paramos ao lado do enorme tronco de árvore – Tome cuidado.

            - Eu sempre tomo. – respondi com um toque de ousadia – Eu sei que hoje não. – me apressei em acrescentar diante do seu olhar cético – Foi a primeira vez, eu juro.

            - E única. – era um alerta.

            - A única. – confirmei.

            Anton se foi sem despedidas e eu subi pelo tronco da árvore, usando os pequenos degraus de madeira de apoio, até chegar na passagem para minha casa. Ainda estava tudo escuro, mas logo amanheceria.

            Nossa casa ficava entre os galhos fortes de uma árvore alta, era toda de madeira, e meu quarto ficava do lado que o sol nascia. Tudo que se dava para ver das janelas eram árvores e mais árvores, nem mesmo um sinal da cidade.

            Entrei lentamente no meu quarto e abri a janela, depois me deitei no meu colchão – que era sustentado por um suporte de madeira – e fitei o teto. Ali haviam alguns filtros dos sonhos que eu mesmo tinha feito num período em que o artesanato me encantou.

            Demorei muito para conseguir fechar os olhos, mas quando o sono me venceu tive sonhos repetitivos com as cenas da escada de incêndio e do quase afogamento no rio. A última imagem que me lembro foi dos olhos do garoto me encarando.

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