Duex

Já havia se passado uma semana desde que Eliza havia sido demitida. Sete dias sem precisar seguir horários, organizar sua agenda, frequentar reuniões, revisar papeladas, realizar tarefas e ela já estava no seu extremo da frustração. Odiava não ter nada produtivo para fazer.

Por isso havia criado uma rotina organizada em casa.

Ás oito horas da manhã ela acordava, punha um café para ser preparado em sua cafeteira, descia até a padaria na esquina da rua de seu condomínio para comprar dois pães e tomava o seu café da manhã. Às oito e quarenta ela abria o seu notebook na página de notícias do mundo e lia algumas matérias para se atualizar. Às nove começava a sua busca online por vagas de emprego, havia feito uma assinatura em uma página de classificados e de vez em quando participava de algumas pré-seleções de vagas.

Às dez e meia ela tinha aulas de alemão, havia se cadastrado em um curso online com professores nativos, e se divertia com os sons que as palavras tinham. Às onze e meia ela começava a preparar o almoço ou se arrumava para almoçar fora, fosse com a Pri, ou Rafael, com quem tinha um quase relacionamento estável.

Eles estavam há agradáveis cinco meses juntos e Eliza podia dizer que Fael a fazia feliz. Ao menos ele não era daqueles caras super possessivos que precisam saber cada passo que a parceira dá.

Eles tinham conversas agradáveis, riam bastante quando estavam juntos e tinham gostos semelhantes. Não compartilhavam tudo de suas vidas, mas Liza acreditava que era um ponto saudável do relacionamento.

Ela já havia namorado outras vezes e tinham sido tão agradáveis quanto. Seus relacionamentos, porém, tinham data de validade e não passavam de sete meses. Geralmente porque os companheiros procuravam por estabilidade, oficializar um compromisso e dar passos importantes na relação, mas com nenhum deles Liza sentira que estava realmente amando a ponto de se comprometer.

O mesmo acontecia no seu rolo com Fael.  Mesmo que o relacionamento deles estivesse caminhando decentemente, ela ainda sentia que não estava entregue á ele. Ela os via mais como bons amigos do que como um casal realmente. E isso com certeza era um problema, que ela não lidaria até que fosse necessário intervir.

Seguindo, às duas da tarde ela voltava a procurar por vagas de empregos. Depois disso tinha o resto da tarde e noite livre. O que era legal no inicio, mas já estava a deixando agoniada.

Teve dias que ela se permitiu ir aproveitar a noite em alguns barzinhos da Vila Madalena, bairro boêmio em São Paulo, e bebeu cerveja de qualidade. Outros ela apenas ficava no sofá da casa assistindo séries as quais nunca tinha tido tempo para serem finalizadas. Mas o tédio era sempre constante, ele ia e vinha frequentemente e Eliza não sabia até quando aguentaria.

Estava começando a considerar se voluntariar como vigia do seu prédio, visto o anúncio deixado no elevador no começo da semana. E naquela manhã, quando trocava de roupas para ir à padaria, decidiu que iria passar na portaria do prédio para saber mais sobre a vaga.

No entanto, enquanto escovava os dentes, o interfone do apartamento toca. Eliza se apressa em enxaguar a boca rapidamente a tempo de atender a chamada.

Ela corre até a cozinha e pega o aparelho.

- Oi.

- Dona Eliza, o Sr. Fábio está aqui na portaria. Tem permissão para subir? – a voz do porteiro questiona de modo formal.

- Fábio? – ela indaga, enrugando a testa. – Não conheço nenhum Fábio.

- Ele disse que é seu tio. – o porteiro diz depois de um tempo em silêncio.

- Isso é impossível, meu tio está no Reino Unido. – ela diz risonha.

“Posso falar com ela?” – Liza escuta a voz inconfundível no fundo da ligação. Logo o telefone é passado de mão e a voz soa clara em seus ouvidos – Cacete, Lizzie. Me libera logo, a viagem foi cansativa pra porra.

- Tio Fábio! – ela esbraveja feliz. – Não tô acreditando!

- Tá, tá, pode falar o quanto está radiante pela surpresa mais tarde, mas agora libera a minha subida. Tá legal? – ele pede num tom jocoso de impaciência.

- Claro. – ela diz e escuta o telefone ser passado de uma mão a outra novamente. – Pode liberar a subida, Mauro.

Ela ainda estava desacreditava mesmo vendo seu tio em carne e osso na porta de seu apartamento. Ele estava um pouco mais velho, mas eram os mesmos olhos avelã herdado da família, os mesmos cabelos castanhos ondulados e despenteados, o mesmo cavanhaque e bigodes desenhados e o mesmo jeito de moleque que sempre teve.

- Tio! – ela exalta animada e o abraça forte.

- Puxa vida, como você cresceu! – ele diz retribuindo o abraço na mesma intensidade. – Achei que ia ficar com um metro e meio para sempre. Você sabe, dizem que só se cresce até os dezesseis.

Eliza ri.

- Como eu senti falta desse seu bom humor. – ela diz afastando-se e dando passagem para que ele entrasse no apartamento, carregando uma mala média de rodinhas consigo.

- Não teria sentido se me ligasse mais vezes, - ele ralha ao parar a mala em um canto da sala e se virar para ela cruzando os braços – seus pais te proibiram de me ver, não de falar comigo.

- Me desculpe mesmo. – ela diz com sinceridade. – Eu fiquei tão atarefada nesses últimos tempos que nem para a vovó eu ligo com frequência. Toda vez que ela me liga me xinga horrores.

- Eu sei, eu ouço. – ele diz. – Aquela mulher vira um dragão quando está nervosa. Pessoas no raio de dez metros conseguem ouvi-la quando está dando bronca em alguém.

- Aliás, como ela está?

- Muito bem para uma vovozinha aventureira. – ele ri. – Ela está com mais energia que eu. A mulher faz tanta coisa que às vezes eu me sinto perdido. Até em grupo de escalada ela está.

Emília Benedetti era uma italiana desbravadora. Havia se aventurado quando jovem, fugindo de casa para vir pular carnaval no Brasil, se aventurou quando se casou com um brasileiro e decidiu por abandonar tudo no próprio país para ficar com ele, se aventurou ao ter sucesso em uma carreira como guia turística no país e não deixou de se aventurar quando o amor de sua vida faleceu de câncer no pâncreas.

Eliza não se recordava muito dele porque era pequena quando tudo aconteceu, mas sua mãe dizia-a como a avó havia sofrido na descoberta e progressão da doença.

Câncer é uma merda.

Emília havia ficado ao lado do marido até o final, fez todas as suas vontades e não havia deixado lhe faltar absolutamente nada, por isso tinha o sentimento de dever cumprido quando ele partiu.

Então, na opinião da neta, a avó tinha mais do que o direito de aproveitar os anos que lhe restava da forma que achasse melhor. Os filhos aprovando sua decisão ou não.

- Eu quero ter esse espírito jovem da vovó quando estiver com na idade dela. – Eliza diz sorrindo orgulhosa.

- Realmente. – o tio concorda.

- Mas, me fala, o que está fazendo por aqui e, ainda por cima, sem avisar? – ela questiona sorridente. – Me pegou de surpresa.

- Essa era a intenção. – ele piscou. – Eu queria rever a minha sobrinha preferida, que mal à nisso?

- Sou sua única sobrinha. – ela cerra os olhos brincalhona.

- E por isso eu decidi que não vou mais prolongar essa besteira de ficar evitando você só porque aconteceu tudo o que aconteceu. – ele contorna de forma eficaz – Eu sou maior de idade, você agora também é e, de qualquer forma isso não importa mais, seus pais estão separados mesmo. Não é como se estivéssemos infringindo alguma regra.

- Nunca liguei para a opinião dos meus pais, mas sempre tive que acatá-las. – ela dá de ombros. – Hoje não mais, faço minha própria vida. Só não mantive contato com você porque você foi para o cacete do Reino Unido. Como que foi esses tempos por lá?

Eles conversavam e se atualizaram da vida um do outro até que a fome bateu e a barriga de Eliza roncou. Pela aparição inusitada e feliz, a jovem concluiu que era merecido saírem para comer decentemente em uma padaria agradável.

O tio imediatamente readquiriu suas energias, parecia muito animado na caminhada que faziam até a garagem dos prédios.

- Você tem um Gol. – ele comenta alegre quando as luzes do carro piscam ao destravar o alarme. – É a sua cara.

- Não esperava uma Maserati, não é? – ela brinca quando entram no carro.

- Se for pra ser nesse nível, você tem mais cara de Porsche. – ele diz e ambos riem.

Fábio nota a agilidade do ligar até a desenvoltura da forma que ela manobrava o carro, mas nada comentou. Não falaria nada sobre o tal assunto. Por enquanto.

Contudo não fora surpresa alguma a velocidade em que Eliza percorria por entre os carros, as ultrapassagens rápidas e, até mesmo, perigosas para o trânsito de uma metrópole, mas ele sabia que ela fazia aquilo involuntariamente como se os seus sentidos executassem a ação antes que ela sequer pensasse.

Não demoraram a chegar em uma padaria grande e requintada.

- Então, demitida hein? – Fábio cita quando terminam de fazer os seus pedidos à garçonete.

- Cortes no orçamento. – ela dá de ombros. – Não é como se eu fosse a prioridade deles.

- Eles também não eram a sua. – ele observa. – O lado bom é que você agora tem muito tempo livre.

- Não sei o que tem de bom nisso. – ela ri anasalada – Você conhece o ditado, “mente vazia, oficina do diabo”.

- Credo, você falou exatamente como o seu pai agora. – ele faz uma careta enojada. – Aliás, como que tá aquele filho-da-mãe?

- Bem. – ela assente. – Com uma namorada com, literalmente, a idade da filha dele e tentando acompanhar a fase juvenil dela. – ambos fazem uma careta – Mas se ele está feliz, por mim tudo bem. O vi no final de semana retrasado, fomos jogar paintball. A mira dele continua péssima.

- E sua mãe com isso?

- Está O.K. O divórcio foi mais amigável do que eu pensei, acho que eles ficaram aliviados por não terem mais que manter as aparências de que um não combinava mais com a vida do outro. – ela ri – Minha mãe, claro, está cada vez mais focada na rede de farmácias, que está a triplicar o número de lojas, e enchendo aquela casa gigantesca com dinossauros.

A garçonete trás o pedido deles, que não demoram a abocanhar sem parar a conversa por isso.

- Dinossauros? – o tio indaga depois de engolir um pão de queijo. – Tipo, fósseis?

- Não. – Eliza ri. – Cachorros gigantes. Ela comprou dois São Bernardo que tomam conta da casa.

- Nada mais apaziguador do que filhos que não a contradigam, certo? – Fábio ri. – Sua mãe sempre gostou de ser uma doutrinadora.

- É. – ela ri e dá um gole no suco de laranja. – Mas ela também está feliz e, pelo visto, está tendo uns encontros ás escondidas com um cara aí. Então eu também fico feliz.

- E você?

- O que tem eu? – ela rebate distraída.

- Todo esse tempo você tem falado que as pessoas estão felizes e que você está feliz por elas. Mas, você está feliz por você? – ele questiona sério.

Eliza dá um meio sorriso.

- Estou.

- Você se esqueceu que eu te conheço desde quando ainda usava fraudas? – Fábio questiona brincalhão. – Eu sei quando está mentindo.

- Não estou mentindo. – ela persiste e quando vê que ele vai contradizê-la, continua: – Eu sou feliz com a minha vida, sou agradecida por ela. Sou privilegiada por ter o que tenho, por ter tido a oportunidade de ter feito tudo o que fiz. Para alguém na minha idade fico satisfeita em já ter saído de casa, ser financeiramente independente dos meus pais, ter o meu carro e poder comprar as minhas coisas.

- Mas você poderia ter bem mais. – ele instiga.

- Tio Fábio, por favor. – ela pede, já sentindo o assunto que viria a seguir.

- O que? – ele questiona fingindo-se estar desentendido. – Esse é o momento certo para você ir atrás do que sempre quis e ser plenamente feliz. Porque eu sei que você não está satisfeita do jeito que as coisas estão agora.

Ela morde a bochecha por dentro, ganhando tempo.

- Nós dois sabemos que isso não é mais possível.- diz depois de um tempo.

- Não. Eu sei que é possível e você acha que não é. – ele diz arrancando-lhe uma risada contida. – Você tem um talento, um talento que poucas pessoas foram gratificadas em ter. Sabe quantas vezes eu quis ter essa habilidade no volante como você tem? – ele arqueia a sobrancelha esquerda. – Eu mataria para ter, mas não é possível. Porque é um dom. Você nasceu com isso.

- Muito cedo para filosofar, não acha? – ela questiona divertida e ele a olha com cara feia.

- Não muda de assunto.

Ela revida os olhos espontaneamente.

- A questão, tio, é que eu não sou mais aquela garota de dezesseis anos. – ela diz. – Eu mudei, você mudou, todos passamos por uma evolução durante esses seis anos. E eu não sei se estou preparada para enfrentar tudo aquilo de novo. – ela admite, encolhendo os ombros – Eu fiquei muito instável emocionalmente depois daquilo e não estou certa de que retornar para um ambiente em que eu fui muito hostilizada, insultada, vítima de preconceito pelo meu gênero é o melhor para mim no momento.

- Você sofreu muito lá sim, eu vi tudo isso. – ele pousa a mão em cima da dela por cima da mesa – Mas a sensação de ter uma máquina potente no seu comando, como ela desliza pela pista naquele asfalto macio, a velocidade que faz o seu estômago congelar, a sensação de que você está voando e ainda por cima fazer aquele bando de mauricinhos metidos comer poeira não recompensa tudo isso?

Por um momento Eliza se pega presa nesse misto de sensações e tem recordações vívidas onde vivenciava tudo aquilo. Faltou pouco para ela sentir o vento batendo contra o seu corpo e a pressão nos seus dedos sob o volante.

- Aonde quer chegar com isso? – ela indaga depois de despertar.

- Te fazer perceber que ser pilota é o que você é, e não tem como negar a sua origem.

Eles finalizam o seu café e o tio cobre toda a conta, disse que era o mínimo que podia fazer. Na volta para o carro o tio é quem toma a direção e Eliza não o contraria.

Quando estão tomando um caminho diferente do para o condomínio onde ela mora, Liza questiona: - Onde estamos indo?

Fábio a olha de soslaio e sorri.

- No autódromo de Interlagos. Tem uma coisa lá que eu quero você veja.

(...)

É indescritível a sensação que Eliza sentia ao estar de volta, depois de longos anos, à um autódromo.

Seu tio conseguira acesso às arquibancadas e, mesmo que não estivesse ocorrendo uma corrida no momento e o lugar estivesse completamente vazio, a emoção que arrepiava desde a sua espinha até os pelos eriçados em seu braço era impagável.

Ela percorreu os olhos pela extensão daquele circuito e parou em um trecho específico que ligava o fim da reta dos boxes à Curva do sol. As duas curvas que formavam um S, nomeado carinhosamente como o S do ídolo Adalto Sampaio.

Lembrar-se de Sampaio a fazia lembrar a sua determinação, resiliência, dedicação e o quanto era motivado. Consequentemente se sente envergonhada. No passado ela levava cada ensinamento do ídolo ao pé da letra e, se ainda tivesse comprometimento consigo mesma e com seus sonhos, não pensaria duas vezes em retornar ao esporte que tanto amava. Sampaio estaria decepcionado com o que ela havia se tornado.

Eliza se lembrava claramente da primeira vez que havia pisado ali. Com seis anos de idade e de súbito ela decidira que queria ser como aqueles pilotos. Ela queria sentir o arrepio de estar controlando um carro potente, de percorrer aquele circuito e trabalhar com uma equipe legal.

Nunca teve a oportunidade de competir naquele autódromo, porém, e não queria aceitar a ideia de que nunca teria a oportunidade. Isso se ela optar por continuar como Analista de exportação.

Fábio nota o local onde o olhar da sobrinha está preso e não consegue evitar sorrir, era exatamente o efeito que esperava ter com aquela visita. Contudo, isso não bastava.

- Vamos. – ele diz encaminhando-se para a saída da arquibancada.

- Vamos aonde? – ela indaga seguindo seus passos com tranquilidade.

- Quero que conheça um velho conhecido meu.

Eles percorrem os corredores externos, em uma caminhada vagarosa e tranquila na direção das garagens. Como o tio havia conseguido acesso à uma parte tão restrita do autódromo era o que passava pela cabeça da jovem, mas o questionamento sumiu quando ficaram tão próximos da pista principal.

Ela admirou aquele asfalto impecável, que se assemelhava à um tapete de veludo extenso. Uma grade de ferro a separava daquela superfície em que Eliza estava louca para sentir, usufruir, percorrer.

Chegado às garagens Fábio entra no quinto portão, o único que estava aberto. Liza está um pouco atrás e quando seus olhos pousam no que estava dentro daquele cubículo suas pernas travam do lado de fora.

Seu coração sob o peito tamborilou, suas mãos transpiraram e ela podia sentir sua pressão cair gradativamente.

- Lizzie? – o tio a chama quando nota sua ausência.

Mas os olhos dela estão vidrados naquele carro único, o inconfundivelmente gritante modelo MD4/4 de Fórmula 1. As rodas grandes e desgastadas, a lataria pintada de branco com detalhes vermelhos, a asa traseira com o símbolo marcante da marca de cigarros e o número doze pintado em vermelho no bico frontal do carro falavam por si só.

Aquele era o carro em que Adalto Sampaio ganhou o campeonato mundial em 1988.

As lágrimas vieram involuntárias marejando seus olhos. Ela não podia acreditar.

- Eliza Benedetti. – uma voz masculina, diferente da de seu tio, capta a sua atenção.

Um homem por volta de seus trinta e cinco anos de cabelos castanhos, olhos calmos, sorriso fácil e de fisionomia conhecida por tamanha semelhança ao tio estava ao lado do carro. Ela sabia quem era ele, havia assistido algumas de suas corridas e torcido como se estivesse fazendo pelo próprio ídolo. Ele era Bruno Sampaio o também piloto e sobrinho de seu ídolo.

- Ah, Meu Deus! – ela sopra, limpando os cantos dos olhos e piscando algumas vezes para focar a visão. Não estava acreditando quem estava parado diante dela.

O homem sorri e se aproxima.

- É um grande prazer finalmente te conhecer. – ele diz estendendo a mão em sua direção.

- Me conhecer? – ela ri abobalhada apertando sua mão. – É um grande prazer conhecer você!

- Fico honrado. – ele sorri simpático.

- Essa realmente é... – ela induz em tom de indagação, apontando para o carro.

- Ela mesma. Ao vivo e a cores.

- Puta merda! – escapa de sua boca, mas ela não se importa. Seus olhos percorrem o carro novamente e ela não consegue controlar: – Eu posso tocar?

- Tocar? – ele arqueia uma sobrancelha aos risos. – Quero que você à pilote.

- O que? – sua voz sobe três oitavos, boquiaberta.

- Chamei o Bruno aqui hoje porque sua amiga Priscilla me ligou falando o quanto você tem estado incomodada com o vazio que sente em sua vida. – Fábio revela, aproximando-se dos dois. – Todos nós sabemos o que está faltando aí e o Bruno concordou comigo que é um pecado você estar tanto tempo longe das pistas. Ele está aqui para te fazer perceber que não há outra coisa que te faça mais feliz do que pilotar um carro.

- E nada melhor do que pilotar o carro do ídolo para fazer você repensar as suas decisões. – Bruno completou. – Eu acompanhei a sua trajetória quando mais nova e é inegável o quanto você é talentosa. É um erro esconder todo esse potencial atrás de uma mesa de escritório.

- Espera aí, - ela pede, confusa. – eu estou um pouco perdida. Primeiro de tudo, como vocês se conhecem?

- No final da temporada da Fórmula Renou 2.0 que você disputou eu entrei em contato com o seu tio. – Bruno revela. – Eu queria saber mais sobre a primeira brasileira, próxima mulher, a disputar o GP da Fórmula 1.

- Você vê isso acontecendo? – ela questiona com um sorriso bobo no rosto.

- Claramente. – ele diz veemente.

- Mas e os patrocinadores, os contratos que eu perdi... – ela começa.

- Tudo isso vai ser recuperado, faço questão de ajudar com isso. Tenho muitos contatos. – ele a interrompe, com confiança. – Você só tem que sentar atrás do volante e dar o seu show. Precisa relembrar que nada mais importa depois que as luzes vermelhas se apagam. É você, o carro e a pista. Só isso importa.

Eliza pousa os olhos no carro novamente e respira fundo.

- Eu não sei se consigo. – admite receosa.

- Consegue. – o tio diz, empurrando um capacete verde e amarelo em suas mãos. – Eu tenho fé em você.

- Meus Deus, esse não é o... – ela esbraveja admirando o capacete em mãos.

- Não. – Bruno adianta-se em negar, rindo do evidente desespero da garota. – Esse é uma réplica, os dele estão em exposição em museu.

- Ufa. – ela suspira aliviada. – Acho que eu me culparia pelo resto da vida se suasse no capacete que foi do Adalto.

Os três riem.

- Está pronta? – Fábio pergunta, indicando o carro com a cabeça.

- Não. – ela diz e assente vagamente em seguida. – Mas eu vou mesmo assim.

Eliza veste o macacão de proteção simples, preto, a touca, prende os cabelos por dentro do macacão, calça as luvas e mira o capacete. Tinha se esquecido da última vez que havia feito aquele ritual. Como em todas e cada vez que colocou aqueles trajes, ela se sentiu eufórica. O coração acelerou e seus instintos redobraram. Ela não pôde evitar sentir ansiedade.

O carro foi posto na pista e ela se encaminhou em sua direção com as pernas tremendo e capacete em mãos geladas.

Ela mira o cockpick, tentando absorver todo e cada detalhe do banco, painel e espaço onde dali a poucos minutos ela teria a honra de estar.

Bruno e Fábio se aproximam dela e o primeiro indica o volante em suas mãos.

- Não consigo acreditar que isso está mesmo acontecendo. – ela diz colocando o capacete na cabeça e acertando a fivela de segurança. À esta medida ela tem que secar as lágrimas que já desciam incontroláveis pelos seus olhos, atrapalharia a sua visão de dentro do capacete.

Respirando fundo ela pega o volante das mãos de Bruno e monta no carro. Enfiando as suas pernas até alcançar os pedais e encaixando o volante no painel.

Ao contrário do que esperava o carro não cheirava à suor e sim à eucalipto, um suave aroma de limpeza que significava que a família tinha cuidados atenciosos com aquele carro – ganho por Sampaio em uma aposta com Ron Dwayne em uma de suas corridas.

Desde então Sampaio guardava o carro em casa e após a sua morte a família ficou com a sua posse. O banco, o painel, cinto, alças e pedais eram completamente restaurados, como se fossem novos. O McDraguen estava sendo bem cuidado.

Ela passa as mãos ao redor do volante, sentindo através das luvas todo o peso de estar comandando uma máquina histórica. Não controla o sorriso, era automático e inevitável.

Era aquilo. Estava acontecendo. Ela ia correr novamente.

E no carro e circuito de seu ídolo.

Seu coração triplica a velocidade das batidas.

- Esse é um carro antigo, por isso as engrenagens são diferentes das que estava acostumada. – Bruno diz apoiando-se na lataria para passar-lhe as instruções. – No geral, falta muitas coisas se comparado à tecnologia atual. Mas eu sei que você dá conta.

- Não estamos com o rádio, portanto não tem como se comunicar conosco enquanto estiver lá. – Fábio diz. – Esse é um momento seu, e vai poder fazer o que quiser.

- Faça quantas voltas você achar necessário, não tem problema algum. – Bruno diz – Só tome cuidado, estes são pneus macios e foram trocados recentemente, mas já são usados coisa de uma ou duas voltas, no máximo. Não temos uma equipe para troca-los aqui, então por favor, os poupe.

- Entendido. – ela diz sorrindo. – Muito obrigada, não sei dizer o quanto eu estou emocionada agora.

- Só aproveite. – Bruno diz e dá um tapinha na talaria antes de se afastar junto de Fábio.

Eliza aperta o botão no volante e o ronco do motor faz todo o seu esqueleto tremer de emoção. Ela dá partida e o carro começa a se movimentar vagarosamente até a pole position, a primeira posição de largada.

Ela olha o semáforo completar suas luzes vermelhas, cada luz acessa uma pontada gelada em seu estômago, e quando todas as luzes se apagam ela acelerou como há muito tempo não fazia.

O carro partiu de forma veloz e seu corpo fica pressionado no banco com a pressão do vento. Preparação física, ela precisava com urgência. Mas conseguiu relevar os primeiros instantes de aderência à pista e resistir aos contras.

O velocímetro marcava duzentos km por hora e ela reduz, porque logo vem a primeira curva. Suas mãos giravam automaticamente nos sentidos conforme a pista, seus olhos rapidamente seguiam o circuito enquanto acertavam a asa traseira e dianteira.

Ela troca de marcha e logo reduz para a próximas duas curvas seguidas, feitas com completo domínio – exatamente como Priscilla havia dito, ela nunca desaprendeu a pilotar.

Passadas as curvas ela pega a pista reta e acelera em seu máximo. O carro está com vibração, mas ela deduz que é normal devido à sua idade, e diminui o grau da asa traseira para melhor dinâmica.

Todo o percurso parecia estar gravado em sua mente, de tantas corridas que já havia assistido ali, e suas mãos se moviam sozinhas através dos comandos certos.

Ela puxa uma lufada de ar, controlando o choro.

Ela podia sentir como se tivesse o ídolo ali junto dela, de tão intima que se sentia com aquele carro mesmo nunca tendo o pilotado antes.

Quando chega às curvas em formado S não consegue controlar as lágrimas que despencaram pelo seu rosto. Ela reduz a velocidade e abre a viseira do capacete, já embaçada.

Sem tirar uma mão do volante ela limpa os olhos com o tecido da luva rapidamente e logo trata de fechar a viseira e voltar à mão rente ao volante.

O final da sua primeira volta é marcado pela passagem da faixa quadriculada no chão, mas ela não quer parar. Por isso acelera mais uma vez e faz o trajeto tudo de novo. Duas, três, quatro, sete, nove, doze vezes.

Cada vez mais querendo testar os seus próprios limites e superando qualquer medo tolo que havia passado por sua cabeça. Ela queria retomar, não, ela tinha que retornar à sua grande paixão. E ela sabia que poderia passar por qualquer coisa desde que pudesse ter suas mãos no volante de uma máquina potente.

No final da décima quarta volta ela para na pista interna, em frente de Fábio e Bruno, e salta do carro reabastecida de adrenalina e coragem.

- E então? – Fábio questiona esperançoso enquanto ela tirava o capacete.

- “Na adversidade, uns desistem, enquanto outros batem recordes.”[1] – ela pronuncia – E eu não estou pronta para desistir. – fala decidida e se vira para o tio – Me arranja um carro, o resto pode deixar comigo.

Fábio grita alegremente e bate a mão com um Bruno que sorria satisfeito.

GLOSSÁRIO

[1] Fala de Ayrton Senna, piloto de Fórmula 1 brasileiro que fez sucesso nos anos 80.

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