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Eliza Santos Benedetti, também conhecida como Liz, Liza ou Lizzie, pode levar uma vida adulta comum e sem grandes marcos históricos, simplesmente vivendo como uma jovem-adulta que trabalha, frequenta baladas, bares e restaurantes, tem um relacionamento ioiô com um rapaz bacana, faz uma viagem ao ano e tem contas à pagar.

Contudo, por baixo daquela excelente postura, linguajar culto e boas referências profissionais estava uma talentosa pilota automobilística e grande parte da sua roda social não fazia ideia disso.

Sua história começou cedo, quando ainda tinha apenas seis anos. Com a mãe sendo sócia de uma grande rede de farmácias e o pai supervisor de uma equipe de bioquímicos em uma empresa multinacional, ela ficava sob os cuidados do tio.

Fábio Benedetti era jovem, um rapaz impulsivo que passou a morar com a irmã mais velha depois que a mãe decidiu largar tudo no Brasil para se aventurar pela Europa. No entanto, ele não deixava que sua obrigação como babá o impedisse de viver suas aventuras, portanto levava a garota para jogos de futebol, jogos de basquete e, a sua paixão pessoal, corridas.

Mostrou-a a história das corridas, as suas etapas, o grande campeonato de Fórmula 1, os bastidores por trás das máquinas potentes, a beleza do deslizar dos carros pelo asfalto e os grandes ídolos do esporte.

A menina ficou tão encantada que fez com que o tio a levasse para pilotar qualquer máquina que a fizesse ser tão veloz quanto e foi no kart por onde começou, mostrando que não era somente uma atenciosa espectadora, mas uma pilota dominante.

Inspirada pela história de Adalto Sampaio, grande ídolo brasileiro, ela se atentava a todas as formas de percorrer um caminho até a vitória.

Apesar de o esporte ser dominante por homens, a garota não se deixava abalar.  Aprendeu a ser rápida, a percorrer trajetórias, frenagem, dosagem da aceleração, posição do volante, a largar, ultrapassar, evitar uma ultrapassagem, saber se posicionar na pista e planejar uma corrida.

Ela prestava atenção a todo detalhe no acerto do chassi e motor acompanhando o tio à montar e desmontar os karts e com isso adquirir conhecimento sobre as minuciosas particularidades daquela ferramenta.

Assim aos oito começou a participar de corridas em campeonatos mirins regionais. Ganhava sete corridas de dez competidas e sempre alcançava o pódio, um lugar entre os três primeiros colocados.

Vista a grande fascinação da menina pelo esporte e seu inegável talento natural, os pais – mesmo que a contragosto – autorizaram que o tio a levasse para campeonatos mirins municipais.

 Dos municipais ela seguiu para os estaduais e com quatorze anos já era dominante nas pistas e tinha uma extensa lista de vitórias no bolso.

Na época ela sofria muito preconceito por ser atuante em um esporte masculino e a maioria das crianças a recriminavam, acusando-a de inúmeros outros adjetivos maldosos referindo-se à opções sexuais e por seu jeito especial. Por isso não tinha muitos amigos, resumia-se à Natalia, uma colega da sua classe na escola; Raul, um dos competidores que disputava as mesmas provas que ela e seu tio.

Muito madura para a sua idade ela ignorava os maus comentários e voltava seu foco completamente para o seu objetivo, se tornar uma pilota de Fórmula 1.

As condições não eram as mais acessíveis, o esporte sempre teve um custo muito alto e seus pais não eram completamente a favor da sua escolha, vetando-a de receber qualquer valor para isto.

Apesar de sempre estar recebendo prêmios em valores monetários nas disputas, não era sempre que eles podiam cobrir as quantias para que ela pudesse ter as melhores condições de motor, chassi e adereços mais custos de viagens, alimentação e hospedagem. Por isso nesta época inúmeras foram as vezes que ela e o tio passavam a noite no próprio carro.

Ainda aos quatorze anos, apesar de todas as adversidades, ela terminou o campeonato juvenil vitoriosa e passou para a Fórmula 4, a primeira escala no automobilismo fora do kart. A maioria dos pilotos eram mais velhos, por volta dos dezesseis e dezessete anos, mas mais uma vez não se deixou abalar.

Ela disputa um campeonato na Argentina, onde mostra grande desenvoltura e termina em segundo lugar no pódio. Lá ela chama a atenção de uma equipe alemã de automobilismo, a Carsport, que a propõe um contrato como pilota júnior até que atingisse dezesseis anos, idade a qual estaria oficialmente liberada para dirigir automóveis e assim disputar em campeonatos maiores.

A oportunidade na Alemanha é quase vetada pela mãe, porém o pai a convence de que essa era uma chance em milhares e que a filha deles realmente era reconhecida pelo seu talento. Foi uma briga minuciosa, mas vencida com fervor.

- Você foi para a Alemanha? – Priscilla interrompe Eliza boquiaberta.

A morena sorri.

- Com todas as despesas pagas pela Carsport.

- Que sonho! – a loira sorri encantada.

Já na Alemanha ela mostra sua determinação e se supera em cada obstáculo. Os campeonatos alemães da F4 são os mais disputados e, portanto, melhores para a formação de seus pilotos.

Assim, ao atingir quinze anos ela começa a disputar uma temporada como pilota titular e trás uma avalanche de vitórias para a equipe juvenil, alcançado terceiro e segundo lugar diversas vezes, terminando a temporada em segundo lugar na classificação geral.

Aos dezesseis anos chama a atenção da requisitadíssima Fórmula Renou 2.0., Campeonato Europeu, conhecida por ser onde grandes campeões de Fórmula 1 estiveram no início da carreira.

Neste ponto Eliza já está em velocidade total, sonhando que a qualquer momento estaria pondo os seus pés no campeonato tão sonhado.

Ela compete uma temporada completa, viajando por diversos países, entre eles Itália, França e Portugal. Conhece alguns agentes, empresários e mesmo patrocinadores. Contudo na época a sua aptidão não era tão aclamara como a de seus adversários, o gênero masculino ainda era muito forte, e isto a fez perder diversos contratos e oportunidades para melhor aprimoramento da carreira.

Mesmo assim seu desempenho a faz campeã da temporada naquele ano, despertando o interesse de marcas grandes e famosas escuderias. Entre elas a tão sonhada McDraguen, mesma onde o ídolo Adalto Sampaio fizera o seu nome nos anos 80.

- Me fala que eles te chamaram, por favor. – Priscilla pede com os olhos brilhantes.

Eliza sorri orgulhosa, relevando: - No final da entrega dos troféus Ron Dwayne me procurou.

- Traduza, por favor. – a loira faz uma careta engraçada.

- Ele era o chefe de equipe da McDraguen. – Liza conta – Ele me deu o cartão dele e disse para eu o procurar quando atingisse a maioridade, para entrar no programa juvenil deles.

Priscilla não consegue controlar um gritinho empolgado.

- Ele disse que já vinha notando o meu talento há algum tempo e que eu podia ter um futuro promissor como pilota da McDraguen. – a morena termina a fala suspirando.

A amiga nota um crescente tom de tristeza tomar conta da conversa.

- Mas não foi o que aconteceu, já que está aqui tomando vinho comigo. – a loira diz bebendo outro gole do líquido. O conteúdo da segunda garrafa já havia acabado, restava meros goles em ambas taças.

- Quando meus pais viram que correr estava passando de um mero hobby para a minha real profissão, me vetaram. – Liza diz cabisbaixa. – Só que eles nunca entenderam que eu nunca levei isso como um mero passa tempo, eu realmente me via fazendo aquilo pelo resto da minha vida. E eles tinham muito medo disso, de eu me machucar como outros pilotos já se machucaram. É um esporte perigoso, afinal.

- Eles simplesmente não aceitaram e foi isso, largou mão de tudo que tinha conquistado? – questiona indignada.

- Eu ainda era menor, legalmente ainda não tinha idade para tomar essas decisões. – explica. – Além do medo, tinha o fato de que minhas notas na escola estavam péssimas e o número de faltas era gigantesco porque eu mal parava em casa. – ela bufa cansada. – Então eles cancelaram meu contrato. Tivemos que pagar uma multa caríssima sobre a quebra de contrato com a Carsport e partir de então eles me proibiram de voltar a correr. Venderam meu kart e se livraram de todos os meus troféus.

- Que triste, amiga. – a loira diz pousando a mão no ombro da outra.

- Foi como se eles tivessem tirado um órgão de mim, algo que eu realmente precisava para viver. – ela prossegue, após engolir em seco. – Eu entrei em depressão, não queria mais sair de casa, comer, sequer levantar da cama.

Priscilla tapa a boca, horrorizada.

- Passei por muitas sessões de terapia para me recuperar. – Liza conta. – E, para suprir essa falta, eles me colocaram em um monte de cursos profissionalizantes. – ela ri sem humor – Não que eu reclame, afinal, isso acabou ajudando muito. Virei até poliglota. – por final sorri.

A amiga sorri em apoio e volta a olhar as fotos. Na maioria delas, para não falar em todas, a amiga tinha um sorriso radiante intacto nos lábios e o brilho de gratificação nos olhos. Aquela tinha sido uma parte muito importante da vida dela, estava claro.

- Então essa é a sua área. – Priscilla diz com convicção.

- Esta era a minha área. – Eliza diz recolhendo as fotos espalhadas no chão e as recolocando de volta na caixa.

- Por que não pode ser mais? – a loira indaga enquanto observava a amiga guardar a caixa de volta no gavetão do raque e recolher as taças e garrafas de vinho pelo chão.

Eliza se levanta, coloca as taças e garrafas sobre o balcão da cozinha e suspira pesadamente.

- Porque já passou a minha época, eu perdi a fase de me atualizar com as tecnologias dos carros, pegar a prática de agora e toda a introdução à essa nova era. – deu de ombros, obviamente chateada.

- Eliza Benedetti, você tem vinte e dois anos. – a loira diz se levantando e caminhando em sua direção. – Você é jovem e esperta, ainda tem muitos anos para recuperar o tempo perdido. Se bem que, - ela sorri – eu acho que quando a pessoa tem um talento como você tem, o resto é mero detalhe.

- Eu nem sei se ainda consigo pilotar. – Liza se desvencilha.

- Você dirige o seu carro. – Priscilla comenta.

- Não é a mesma coisa, acredite. – diz com a voz rouca.

- Mas imagino que deva ser como andar de bicicleta. – a loira insiste. – Você pode perder a prática, mas nunca se esquece realmente.

A morena morde o lábio inferior em dúvida.

- Não sei não, Pri.

- Você está com a faca e o queijo na mão, é só cortar. – ela se expressa com ambas as mãos. – Afinal, Ron Dwayne já esperou por muito tempo.

- Ele não é mais o chefe de equipe da McDraguen, o cara se aposentou já faz um tempo.

- Mas ele não é o único chefe de equipe que existe. Eu acho. – ela trata de acrescentar, não entendia absolutamente nada do mundo automobilístico. Tirar a sua habilitação foi o máximo que chegou perto disso.

- Não é assim tão fácil quanto você pensa. – Liza diz séria. – Tudo isso tem um custo muito alto. Para voltar a competir em campeonatos do meu nível eu preciso ter patrocínios, escuderia e uma marca para representar. Depois do cancelamento com a Carsport eu desapareci das corridas e isso tem um preço, de ser esquecida. – ela engole em seco – Eu já não tinha muito apoio naquela época por ser mulher, agora então em uma retomada na carreira vai ser muito mais difícil simplesmente encontrar alguém que queira se associar à minha imagem. Aceite, acabou para mim. O laço de confiança entre equipe e piloto é um vínculo feito em anos, eu não tenho mais essa possibilidade.

- Mas e as pessoas que trabalhavam com você, o seu tio, eles não podem ajudar? – a loira tenta esperançosa.

- Pri, eu aprecio que você esteja tentando insistir nisso porque obviamente viu que me fez feliz. – ela pousa a mão no ombro da amiga – Mas é um assunto que a muito custo eu consegui esquecer, tive que enterrar lá no fundo da minha mente para que não me causasse mais dor. Eu não sei se estou preparada emocionalmente para voltar a ter isso presente em minha vida, sequer se estarei algum dia. Eu estou bem do jeito que estou, sério. – ela sorri como garantia – Nem todas as pessoas são plenamente felizes com as suas profissões e isso está O.K.

- Mas...

- Por favor. Por mim. – ela a interrompe. – Esquece isso.

Priscilla olha nos olhos da amiga, eles a imploravam para não persistir no assunto. Pela forma que ela falava e pelo modo que suas mãos tremiam ao tocar no passado, Priscilla sabia que Eliza tinha uma profunda mágoa de tudo o que havia acontecido. E a loira sabia que era normal sentir medo de sair da sua zona de conforto, mas ela também sabia que Liza não era daquele jeito.

Eliza era altruísta, perseverante, corajosa e nunca aceitava um não como resposta. E esta recusa de seu próprio sonho ia contra todos os seus conceitos.

Mesmo assim acatou ao seu pedido e ficou quieta.

- Bom, eu vou tomar um banho e me deitar. – a morena diz suspirando. – Foi um longo dia e amanhã eu já vou começar a procurar outro emprego.

Priscilla assente à contragosto.

- Boa noite.

- Boa noite. – a loira responde baixo.

Quando Liza fecha a porta do banheiro Priscilla corre em direção a bolsa da amiga e começa a sua busca pelo seu celular. Encontrado o telefone ela o desbloqueia e segue sem hesitações até a lista de contatos.

Precisava ser rápida.

Ela percorre a lista rapidamente até que o contato “tio Fábio” pisca na tela e seus olhos brilham.

- Vou esquecer, uma ova. - ela diz e aperta o botão da chamada. – É para o seu próprio bem.

O telefone toca duas vezes antes de ser atendido.

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