Capítulo 4

MELISSA

Bem, parece que finalmente tudo irá voltar ao normal. Pelo menos tão normal quanto pode ser... Sinto como se finalmente pudesse voltar a respirar, como se antes estivesse em uma espécie de coma, respirando com a ajuda de aparelhos. Em nenhum momento anterior da minha vida passei por tamanhas reviravoltas emocionais como nas últimas semanas. Mesmo com toda a obsessão e perseguição do Rick, levávamos uma vida morna, previsível, nada perto dessa loucura. Na verdade, toda a minha vida parece uma grande calmaria, como um mar de águas brandas, inabaláveis. E aí, de repente, estou me afogando em tsunamis.

Tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Quando eu acho que finalmente estou segura e vou ter uma gestação tranquila, aparece esse louco suicida me fazendo desconfiar do meu tutor e plantando várias dúvidas na minha cabeça. Andrew nem havia me dado motivos para duvidar de suas intenções, mas depois do alerta de Oliver todas as suas ações se tornaram suspeitas. Pode ser que eu esteja sob a influência das palavras de Oliver, pois o mais estranho disso tudo é que, por algum motivo bizarro, eu realmente acredito que esse louco pode estar falando a verdade.

Não sei se é por causa daqueles olhos, aquele azul infinito que me impede de raciocinar, mas tem algo nele que me faz entender perfeitamente todas as suas palavras e simplesmente acreditar no que diz. Não é possível que seja só essa minha personalidade passiva e impressionável. É como se emanasse dele uma energia que o torna confiável para mim, é quase palpável. Prometo a mim mesma me policiar e não acreditar de graça em tudo o que as pessoas dizem, principalmente esse rapaz misterioso e problemático.

Assim que Oliver consegue convencer a todos que não voltará a tentar o suicídio, os policiais vão embora e ele é envolto pelo carinho dos moradores da república. Andrew foi embora a uns quinze minutos, ele se despediu de mim da porta e acenei para ele sem sair do sofá. Agora o cansaço físico toma conta do meu corpo, e saber que tudo está tranquilo, por ora, faz com que o peso sobre meus olhos seja grande demais.

Oliver enfim é liberado dos abraços e sermões dos colegas e senta-se ao meu lado, exausto. Ele descansa a cabeça no encosto do sofá e vira para mim, capturando meu olhar com aqueles olhos, dessa vez cálidos. Sinto-me abraçada por seu olhar e fica difícil sustentá-lo.

Quando me dou conta de que estamos nos encarando fixamente, levanto e sigo para o meu quarto. Ele faz menção de levantar, e tenho certeza absoluta de que seria para me seguir, porém a menina loura baixinha se senta no lugar que acabei de deixar livre e começa a conversar animadamente com ele. Pode parecer loucura, mas consigo sentir seus olhos grudados nas minhas costas, me acompanhando, ainda que ele tenha permanecido no sofá.

Paro no pé da escada e, antes de subir, olho para trás por um segundo e nossos olhares se cruzam, confirmando minha suspeita de que ele estava a me observar. Não posso evitar o rubor e sinto minhas bochechas esquentarem. Imediatamente abaixo a cabeça e subo as escadas o mais depressa possível sem que pareça uma fuga.

Decido tomar um banho e me esconder sob as cobertas pesadas. Ajusto a temperatura do quarto, pego meu pijama de algodão e minha nécessaire e me tranco no banheiro. Abro a torneira e a banheira começa a encher. Adiciono alguns sais de banho que encontro em cima da pia e o ar rapidamente adquire um perfume delicioso de flores do campo.

Tiro a roupa e encaro meu reflexo pálido no espelho. As olheiras começando a aparecer novamente em torno dos meus olhos e o cansaço é mais que evidente em meu rosto. O espelho comprido possibilita que eu observe todo o meu corpo em constante transformação. Meus seios parecem um pouco mais volumosos e arredondados e minha barriga está apontando levemente.

O espelho vai ficando embaçado e a água quente cada vez mais convidativa. Deito na banheira e apoio a cabeça na borda, deixando os cabelos para o lado de fora. Sinto cada célula do meu corpo relaxar e fecho os olhos. Deixo minha mente vagar para além de mim, dessa casa, desse país. Deixo o vazio estrelado do universo tomar conta da minha mente cansada.

Acordo assustada com batidas frenéticas na porta. Quanto tempo se passou? Não sei dizer. Só sei que apaguei por tempo suficiente para a água ficar quase fria.

- Melissa? Você está bem? – A voz de Sophie soa preocupada. Ai, eu preciso levantar daqui, está começando a ficar realmente frio.

- Sim! Eu acho que cochilei, mas já vou sair.

Levanto e começo logo a me secar. Visto-me o mais depressa que consigo, me sinto congelando. Entro no quarto e o ar quente me envolve, mas ainda assim corro para a cama e me enrosco toda na colcha grossa e felpuda.

- Meu Deus, Melissa, seu queixo está batendo de frio! Vamos, me dê suas mãos. – Eu as estendo para ela. – Ui, você morreu lá dentro? Está uma pedra de gelo! Vou aumentar o aquecedor.

Ela aumenta a temperatura e o quarto fica mais aconchegante. Sophie senta-se ao meu lado na cama e pega novamente minhas mãos, esfregando-as entre as dela até esquentarem. Sinto imediatamente um grande carinho pela minha colega de quarto. Em poucas horas que passamos juntas já compartilhamos emoções tão fortes.

Ela olha para mim, como se estivesse decidindo me falar algo. Antes, ela se certifica de que estou bem aquecida e prende a colcha ao meu redor.

- Melissa, eu estive falando com o meu irmão, enquanto você estava no banho. Ele me contou que vocês conversaram um pouco antes de ele ir embora e que esse foi um dos grandes motivos de ele ter voltado pra mim vivo. No meio do meu desespero eu já sabia que você é uma pessoa do bem, o jeito como demonstrou sua preocupação com todos nós, mesmo tendo acabando de chegar aqui nesse lugar, fez com que eu me afeiçoasse a você de cara. E ainda depois de saber como você tentou ajudar Oliver, incentivando-o a ultrapassar qualquer coisa que estivesse alimentando o seu sofrimento, eu só tive a certeza de que seremos grandes amigas. Acho que te devo muito mais do que um agradecimento, mas vou começar assim, lhe agradecendo do fundo do meu coração por aparecer em nossas vidas na hora certa!

Com o choro preso na garganta, eu consigo apenas dar um sorriso trêmulo. Sophie me abraça e me sinto muito bem, como se ganhasse uma aliada. Porém algo está martelando fortemente em minha cabeça. Se ele contou tudo para ela, ele também deve ter contado sobre a minha gravidez. Fico ansiosa, pois em nenhum momento ela tocou no assunto. Preciso ter certeza se ela sabe, pois quanto menos pessoas souberem do meu segredo por enquanto, melhor.

Eu sei que não vou poder esconder por muito tempo, mas quero primeiro me instalar por aqui e na Escola, conhecer a todos. Preciso me cercar de cuidados para que Rick não descubra onde estou e isso envolve contar com o silêncio dessas pessoas.

- Não há o que agradecer, Sophie. Eu fico muito feliz que tudo tenha acabado bem.

Agora totalmente aquecida, sinto-me engolfada pelo sono. O conforto faz com que todas as minhas preocupações comecem a se dissipar. Sophie se afasta e não mais consigo abrir os olhos. Ela se levanta e apaga a luz. Tudo está bem agora. Estou boiando nessa imensidão azul e silenciosa. Em paz.

RICK

Nem que eu mergulhasse em uma banheira de álcool ou desinfetante poderia me sentir limpo novamente. O jeito como eu a traí, como fui capaz de tocar em outra mulher como se fosse ela, me deixou tão sujo que tenho nojo de mim mesmo. Eu realmente não a mereço, eu sou fraco, mas ela é o motivo dessa fraqueza, ela é a minha droga e essa abstinência está me enlouquecendo.

Depois de colocar a Amanda para fora e ficar duas horas embaixo d`agua, não suportei voltar ao meu quarto e pensar que os rastros de outra mulher que não a minha Melissa estão por toda a parte. Sinto o ar pegajoso e preciso sair para respirar. Antes de deixar o apartamento, ordeno à faxineira que limpe meu quarto e queime as roupas de cama.

Subo na Harley e volto a correr sem rumo. Sem capacete, o vento forte é mais que bem-vindo em meu rosto. O celular começa a tocar no meu bolso e penso em ignorá-lo, mas sou tomado pela ansiedade e desejo surreal de que seja minha Mel, então paro em uma calçada e atendo.

- Alô?

- Rick, é o Daniel. - Minha esperança se desfaz.

- O que foi agora? Se não for para me dizer exatamente onde Melissa está, não estou para ouvir mais nada.

- Mas é isso! Eu sei onde ela está, Rick! – Meu coração salta e fica preso em minha garganta.

- Isso é sério mesmo ou algum tipo de brincadeira idiota?

- Olha, o piloto responsável pelo voo de conexão da Melissa é um amigo meu de anos. Imagine só que entramos para a companhia juntos! Hoje cedo ele viu a foto dela que eu pus no mural da sala dos pilotos e veio falar comigo. Ele sempre se apresenta aos passageiros antes de decolar e me contou que Melissa estava sentada bem na frente e que sua beleza era inigualável. Era ela, com certeza!

- Vai me dizer logo o destino do voo ou vai ficar dissertando sobre como o seu amiguinho estava flertando com a minha noiva?

- O voo era mesmo para a França, como você suspeitou. Paris! Mas eu tenho uma informação mais precisa. Ele disse que precisou passar a noite na cidade, porque o céu estava com uma neblina terrível e os voos da noite foram cancelados. Ao sair do aeroporto, ele a viu de novo, acompanhada de um rapaz, bem como o que eu vi no vídeo. Ele ficou realmente encantado com ela, mas veja pelo lado bom, ele viu que um outro homem esperava por eles segurando uma placa com os nomes Melissa e Andrew e o nome de uma Escola de artes conhecida, a Beaux-Arts de Paris.

- Isso! É esse o nome da Escola!

- Isso foi o máximo que eu consegui. Agora é só você procurar a localização da Escola e vai encontrá-la.

- Claro. Eu vou conseguir. Eu vou encontrar minha noiva, Daniel. Quais as chances de você me colocar no próximo voo para Paris?

- Vou mexer uns pauzinhos por aqui. Vai atrás da sua garota, cara. Não deixa aqueles franceses idiotas ficarem com ela.

- Cala a boca.

Eu desligo e, injetado com um novo ânimo, volto para casa a toda velocidade. A faxineira já começara a tirar todo o lixo do meu quarto e se assusta ao me ver entrar como um furacão. Pego uma mala pequena em cima do armário, a que costumava usar nos acampamentos do exército, e jogo nela meus documentos e poucas peças de roupa, já que não pretendo alongar minha estadia em Paris. O plano já traçado em minha mente é curto: chegar, resgatar e voltar.

Daniel liga novamente e avisa que conseguiu me encaixar em um voo dali a duas horas. Tenho que correr. Acabo de juntar minhas coisas e mudo de roupa. Agradeço mentalmente por meu passaporte de tenente liberar o visto sem precisar de solicitação prévia.

Visto a jaqueta e jogo a mala sobre os ombros, decidido como um cavaleiro a resgatar sua princesa da torre. Passo quase correndo pela sala, mas minha mãe segura meu braço antes que eu consiga chegar à porta.

- Rick, onde você está indo com essa mala?

- Eu não lhe devo satisfações.

- Você ainda mora nesta casa? Eu mal lhe vejo, mal sei o que acontece na sua vida. Eu só vejo você sofrendo, torturado. Passa dias sem aparecer em casa e, quando volta, se tranca no quarto, quebra tudo, só causa confusão. Agora vai sumir de novo!

- Mãe, me solta. Olha só, desculpa tá? Mas eu não tenho tempo para de dar um update da minha vida agora. Eu só posso dizer que estou correndo contra o tempo para conseguir Melissa de volta. Você entende o que isso significa, certo? – Ela balança a cabeça afirmativamente.

- Vocês brigaram de novo, não é? Bem feio dessa vez, eu presumo.

- É, digamos que foi isso. Então você precisa me deixar ir agora, ok?

- Tudo bem, mas me mande notícias, por favor.

Ela me solta, mas não sem antes plantar um beijo na minha bochecha. E isso me embrulha o estômago... Vou direto para a porta e giro a maçaneta bem no instante em que a campainha toca. Surpreendo-me ao dar de cara com um oficial bloqueando minha passagem. Ele me olha de cima a baixo, como se tentasse me intimidar, mal sabendo que quem tem que ter medo aqui é ele por estar me atrasando.

- Deixe-me adivinhar. O senhor é Henrique Borges?

- Sim, sou eu. Em que posso lhe ser útil? – Pergunto com o meu sorriso mais debochado.

- O Delegado Vicente solicita sua presença imediatamente na 32ª DP. O senhor está preso por suspeita de envolvimento no crime que causou o acidente do Dr. Pedro Meirelles, no Hospital Samaritano. Se estava pensando em viajar, sugiro que guarde sua mala até o julgamento. – O sorriso some do meu rosto e eu não consigo pensar em nada de pior que pudesse acontecer nesse momento.

MELISSA

Me sinto sufocada e com os movimentos restritos. Ele está segurando meus braços para trás e me forçando a entrar em seu carro. Rick me abraça bem forte no banco de trás e começa a beijar meu pescoço, me mantendo presa sob seu peito. Ele solta meus braços e me vira de frente. Quero encarar seus olhos com ódio e fazê-lo me deixar em paz, mas não é Rick quem me olha de volta. Andrew me agarra pela cintura e me coloca em seu colo. Eu me mexo desconfortável e desesperada. Sua boca caminha ávida até meu ouvido e ele me manda ficar quieta. Me debato ainda mais e tento me soltar, até que me liberto das cobertas e acordo abruptamente.

Sento na cama, arfando e suando frio. “Calma, Melissa. Foi só mais um pesadelo.” Levanto e vou até o banheiro molhar o rosto. Eu achei que esses pesadelos fossem começar a diminuir, mas eles só pioram. Estão sempre se transformando conforme minhas preocupações mudam, o que me deixa transtornada. Decido descer até a cozinha e tomar um copo de água.

Tento fazer o mínimo de barulho possível ao descer as escadas para não acordar ninguém, mas, quando chego ao térreo, vejo que a luz da cozinha já está acesa. Entro e me deparo com ninguém menos que Oliver sentado no banco e encarando um copo de leite.

Ele levanta a cabeça e seus olhos se iluminam quando me vê ali. Eu não esperava encontrá-lo. Nem imaginava que ele estivesse passando a noite aqui. Ele deve ter percebido a confusão no meu rosto, pois se adiantou em me explicar.

- Sophie não me deixou ir embora depois do que a fiz passar hoje. – Ele tinha uma ponta de tristeza na voz.

- É bastante compreensível. Ela ficou devastada. – O que eu estou fazendo? Ele já está sofrendo o suficiente...

- Eu sei, tudo por minha culpa.

- Desculpe, não foi o que eu quis dizer. Não se culpe assim, você voltou, é isso que importa.

- Sim, graças a você. – Ele acrescenta rapidamente.

Viro para a geladeira e, praticamente me escondendo dentro dela, tentando disfarçar a repentina falta de ar. Encho um copo com água gelada e o viro de uma só vez, tentando fazer com que o nó na minha garganta se desfaça. Ainda de costas para ele, tento me recompor, mas, antes que eu recupere o fôlego por completo, ele está atrás de mim, apoiando as mãos nos meus ombros.

- Não consigo dormir. Não tive a chance de te agradecer por salvar minha vida.

- Eu não fiz nada, Oliver.

- É claro que fez! Como não? Se não fosse pelas suas palavras, pelo seu exemplo de força e determinação, e ainda por me deixar preocupado com a sua segurança, eu não teria voltado

- Mas isso faz de mim uma salvadora?

- Melissa, se eu não tivesse encontrado você hoje de manhã, eu teria pulado daquela ponte e agora eu seria apenas uma massa disforme no fundo do Rio Sena. Eu não teria agarrado naquela mureta depois de escorregar e escalado até o bombeiro que me estendeu a mão. Eu estava pronto para soltar, mas seu rosto surgiu pra mim como a luz no fim do túnel.

- Eu só dividi com você os meus pesadelos. E, pensando bem agora, eu nunca deveria ter despejado a minha história sobre alguém prestes a cometer suicídio!

- Você não tinha como saber, e isso foi tudo o que eu precisava. Uma sacudida nos ombros. Eu fui extremamente egoísta em pensar que meu sofrimento fosse o pior do mundo, mas você me mostrou que cada um tem que lutar a sua batalha pessoal nessa vida e eu estava entregando meus pontos muito rapidamente. Você me fez recuperar a esperança e vislumbrar uma trajetória que eu tinha enterrado, me mostrou que a vida continua ainda que estejamos atravessando uma longa tempestade. E você foi colocada no meu caminho como um arco-íris. Acredite, Melissa, você é meu anjo da guarda!

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