Aquela dos cabelos selvagens

A luz do sol já os havia abandonado completamente e a lua estava alta no céu.

Miranda tinha a atenção dividida entre a voz de Tony e o ruído do vento entrando pelas janelas, sentindo a vibração do motor e do atrito das rodas no asfalto. Por mais estranho que aquele encontro tenha sido, Miranda estava contente por poder ficar quieta e respirar um pouco, sem se preocupar com sua própria vida.

— Meus pais não me deixavam fazer nada e depois que eles se separaram ficou ainda pior. Eu juro que achei que isso ia aliviar um pouco pro meu lado, sabe? Mas meu pai não se dobra, não mesmo. – Tony continuou falando e de vez em quando Cora balançava a cabeça de uma lado pro outro, sem dizer nada, mas com jeito de quem não aguentava mais ouvir o que não tinha sido perguntado. Tony prometeu contar-lhes como havia parado preso em um porta malas e não a sua auto-biografia. O pior era que, quanto mais bebia e contava sua história, mais relaxado ele ficava e mais solta ficava sua língua. — E, por isso, eu passei muito tempo no computador. Fiz vários amigos na internet e comecei a me interessar por alguns assuntos meio obscuros. Sempre curti essas coisas e na internet tem todo tipo de maluco. Gente que acredita que demônios são reais.

— Você acredita? – Miranda perguntou. 

Tony deu de ombros. 

— É divertido imaginar que existe mais nesse mundo do que a gente pode ver, não é? E minha rotina é um saco! Eu gosto de entrar nos fóruns e sentir um pouco de medo do escuro.

— Foi em um desses fóruns que eu conheci o Travor. – Tony continuou, se inclinando pra frente e aproximando seu rosto e seu bafo de vodka das duas. Ele sorria bobo. — Ele é o cara mais bacana de todos os tempos! Muito inteligente! Ele é irlandês e sabe de todo tipo de coisa. Ele e o parceiro dele têm viajado pelo mundo tentando quebrar uma maldição. 

Cora bufou.

— Ah tá, isso porque se está na internet é verdade, claro, e você realmente troca correspondências com um desfazedor de maldições. Aham. – ela ironizou e Tony fechou a cara. — Aposto que é um velho pedófilo tentando te enganar.

— Por que você tem que ser sempre tão cínica? – ele se inclinou para trás de novo e fez questão de dar um chute na poltrona de Cora. — Pra sua informação, eu conheci o Travor, ele estava por aqui e a gente marcou de se encontrar no dia do meu aniversário. Satisfeita agora?

— E aí? – Miranda instigou.

— E aí que ele é só, tipo, uns dois anos mais velho que eu, não um pedófilo. 

Difícil para Miranda não rir de um garoto desse.

— O que eu quero saber, Tony, é o que isso tem a ver com o resto da história. O que essa pessoa teve a ver com o seu sequestro?

— Hm, essa parte é mais complicada… porque o Travor tem esse amigo, o tal do parceiro dele. Vince o nome, se eu não me engano. Ele era calado, não se envolvia nas nossas conversas. Na verdade, ele nem parecia gostar que eu estava ali.

Os três haviam se conhecido há poucas horas, mas haviam dois fatos que Miranda poderia atestar serem verdade com toda a confiança do mundo: Tony era extremamente prolixo e Cora era extremamente cautelosa. Desde que começara a contar sua história, Tony já havia descrito sua família (morava com um pai homofóbico e tinha duas irmãs), falado sobre todos os amigos do colégio e sobre seu cachorro de estimação chamado Zeus, e só agora começava a entrar da parte em que se metera nessa confusão toda.

Enquanto isso, Cora se focou apenas em dirigir e se limitava a fazer um ou outro comentário.

— E, olhando pra trás, eu acho que devia ter levado o jeito dele mais à sério, como um aviso. – O tom de voz dele havia mudado, como se pensar no assunto estivesse forçando sobriedade nele. — Eu e o Trav conversamos horrores sobre várias coisas, ele realmente sabe muito, mas tem algumas coisas que eu queria que ele não tivesse me dito.

Miranda trocou um olhar discreto com Cora.

— Então, foi o Vince que te sequestrou. – Cora afirmou. – Porque você sabia demais.

— Não! – Tony foi rápido para defendê-lo, se aproximando delas mais uma vez. — Eles me pegaram quando eu estava indo embora, alguém colocou um saco na minha cabeça enquanto eu estava virando a esquina, nem vi quem foi. Me enfiaram em um carro, me prenderam yada, yada, o resto já dá pra imaginar, nem preciso dizer. 

— Me levaram pra um lugar e começaram a me fazer perguntas sobre o Travor, o Vince e sobre mais um monte de gente que eu nunca ouvi falar. E eu lá, me borrando de medo. – Tony prosseguiu. — E então, depois de um tempo eu ouvi a voz do próprio Vince... Tipo, não dá pra dizer em que tipo de encrenca eles estão envolvidos, mas eles falaram muito sobre esse carro, essa arma aí e um contrato.

— Agiotas então. – concluiu Cora e Tony só deu de ombros, como quem dizia ‘como eu vou saber?’

— Depois eu estava em um porta malas e a bonita aqui roubou o carro, na maior cara dura. – Tony então cutucou a covinha que Cora tinha na bochecha. Um ratinho cutucando a onça com a vara curta, pensou Miranda. — Por que você não conta pra gente o que anda fazendo por aí roubando carros e matando pessoas?

Ele mal terminou de fazer a pergunta e o clima pesou sobre eles, Tony pareceu perceber logo o erro e se encolheu devagar, saindo de vista. O silêncio da não-resposta e da não-reação de Cora se estendeu de tal forma que, por um instante, Miranda sentiu como se o companheirismo deles de minutos atrás nunca tivesse existido.

Tony tentara uma tática arriscada, arriscou e falhou. Ela mesma estava morrendo de curiosidade para saber sobre o tipo de pessoa que Cora era, o passado dela, o que a levou a agir daquela maneira, mas percebera logo que uma abordagem direta não era a solução.

Quem apanhou muito da vida não se abria com facilidade e Cora parecia ter muros mais espessos do que uma pessoa comum poderia encarar.

E, Miranda não queria soar pretensiosa, nem mesmo em seus pensamentos, mas Tony era alguém comum. Enquanto o escutava contar sobre seus problemas mundanos e seus desejos, Miranda só pensava no quão privilegiado ele era, crescendo em um universo em que ele tinha um lar, amigos e paixões. Um universo em que a opressão que sofreu dentro de casa não o destruiu. Tony ainda estava inteiro.

Miranda… ah, Miranda já tinha se quebrado em pedaços e cada pedaço continuou se estilhaçando, um depois do outro.

O silêncio perdurou e a conversa morreu.

Cora estacionou em um hotelzinho de quinta, de beira de estrada. Alugaram um quarto no segundo andar, com uma cama de casal e um colchão no chão. Era o que tinha e Cora não se encontrava em condições de tirar um tempo para procurar outras opções, seu corpo já estava na reserva e sua única vontade era a de se desligar do mundo por algumas horas. 

Era uma suíte e, sem dizer uma palavra, Cora se trancou no banheiro. Precisava estar sozinha, nem que por dois segundos. Olhou-se no espelho e odiou o que viu, um rosto cansado e cheio de culpa. 

O rosto de uma pessoa atormentada que não conseguia escapar do monstro que fingia não existir mais dentro de si. Roubava e matava. Ainda tinha sangue coagulado embaixo das unhas.

Ouviu o barulho de vozes e movimento do outro lado, da companhia que ela não esperava ter. Quando Cora tomou a decisão de sair da cidade naquela manhã, quando saiu correndo da casa de Noemi com um bule de porcelana verde em formato de elefante nas mãos, ela não se preparou para não estar sozinha.

Tirou as roupas, ligou o chuveiro e deslizou para debaixo dele, esperando que o som da água abafasse aquele que vinha de fora. Se lavou com fervor, até sentir que estava livre das marcas daquele dia. Por fim, vestiu roupas limpas e saiu sem olhar uma segunda vez para seu próprio reflexo.

Apenas Tony estava no quarto, cochilava sentado no colchão, com as costas na parede, provavelmente esperando que ela terminasse para usar o banheiro. Não podia evitar sentir uma pontada de inveja, queria ela poder falar de si mesma como se isso não fosse um castigo, queria ela conseguir dormir com essa facilidade toda. 

Cora nunca foi boa em pegar no sono, menos ainda em se manter nele, por causa dos pesadelos. 

E dessa vez não foi diferente, exceto pelo pesadelo, bem diferente dos que ela estava acostumada a ter.

Nele, Cora estava parada no meio de uma estradinha de terra, rodeada por árvores coníferas altíssimas, todas mortas, nenhuma única folha estava segura em qualquer um dos galhos e os troncos eram cinzas e frágeis. Tudo ali parecia ser cinza, no final das contas, era como olhar para uma foto antiga e desbotada. Aquele lugar deprimia Cora.

Ela começou a caminhar, no mais completo silêncio. Não havia sinal de vida em parte alguma.

Mais à frente, Cora viu uma mancha preta no chão e acelerou o passo para alcançá-la. Quando chegou perto percebeu que se tratava de um corvo caído, morto. Ela o tocou com a ponta dos dedos e levou um susto quando ele abriu o olho que estava virado para cima e começou a encará-la. O que está morto deve permanecer morto. Ela pensou. Pensou? Não, era mais como uma voz em sua cabeça. Não, essa voz vinha de todos os lugares. Das árvores, da terra, dos cascalhos e do céu descorado. Vinha de seu peito e reverberava em sua pele.

O que está morto deve permanecer morto.

O corvo começou a se contorcer e a tentar abrir as asas. Ele grasnava alto, agonizando. Cora apavorou-se, ele sofria por culpa dela, ele estava morto e ela o trouxe de volta para o padecimento. Mas então alçou voo, desengonçado e desequilibrado, incapaz de voar em linha reta.

O grasnar logo se tornou gritos humanos de sofrimento e, mesmo depois que o corvo sumiu de vista, o som permanecia, enchendo os ouvidos de Cora e dando-lhe um desejo muito grande de morrer.

O que está morto deve permanecer morto.

Coralina acordou com um espasmo, sentou-se na cama e esforçou-se para conseguir respirar. Suor escorria de sua testa e ela tremia. Se lembrava de todos os detalhes do pesadelo e isso a perturbava. Ela limpou as lágrimas dos olhos e se levantou, se ficasse ali mais um minuto explodiria. 

Olhou em volta e percebeu que o sol estava perto de levantar, uma luz azulada entrava pela janela e ela sentia como se tivesse gelo nos ossos. 

Em algum momento, Tony se arrumou para dormir e o fazia profundamente, deitado no colchão e enrolado no que pareciam ser duas camadas de cobertores. Miranda não estava em lugar nenhum.

Cora vestiu a jaqueta e saiu do quarto para o corredor, ele era aberto e logo abaixo dele estava o estacionamento. Encontrou Miranda inclinada sobre o parapeito com um copo de papel na mão, olhando fixamente para o horizonte como se estivesse perdida em pensamentos.

— Não conseguiu dormir? – Cora perguntou, esperando que uma família de quatro pessoas passasse entre elas silenciosamente, levando suas malas e travesseiros, antes de se juntar a Miranda.

— Pode-se dizer que não. – Miranda respondeu e depois ofereceu seu copo para Cora. Era café. — Não tem açúcar, não consigo tomar isso.

Estranho ter comprado algo que não iria consumir, mas quem era Cora para reclamar? Cafeína cairia bem para terminar de acordar seu corpo daquele pesadelo. Aquele tinha sido tão vívido que Cora continuava ouvindo o grasnado daquele corvo ecoar em sua cabeça.

Cora tomou aquele café como se fosse um shot e fez uma careta, Miranda riu.

— Obrigada de novo, por ontem. Teria sido horrível se vocês não tivessem aparecido.

— Tudo bem, a gente só estava no lugar certo na hora certa. – Cora soltou uma risada curta e amarga. — Apesar de ter sido do jeito errado.

Miranda franziu o cenho.

— O que você vai fazer depois daqui? Será que não vão atrás de você, por causa do carro? Ou por causa do sumiço do garoto?

Essas eram perguntas pertinentes, Cora pensou, mas com as quais ela não queria ter que se importar ainda. Deu de ombros.

— Posso estar no meio dessa merda agora, mas não são meus problemas. Quando eu não precisar mais do carro, deixo ele por aí. – respondeu. — E você?

Não passou despercebido à Cora que Miranda não se opusera e nem entrara em pânico com a brutalidade com que o problema fora resolvido e nem se importara em dizer seu destino ou questionar os dois estranhos que Cora e Tony eram pra ela. Miranda era uma mulher misteriosa, mas, assim como Cora não queria que se intrometessem em sua vida, ela não se intrometeria na dos outros.

— Eu não sei. – replicou, pensativa. — Eu não tenho um destino.

Cora poderia dizer o mesmo sobre si mesma, mas evitava dizer isso em volta, pois a fazia se sentir uma menina perdida. Miranda, entretanto, não parecia uma menina perdida, parecia uma mulher solta.

— Alguma vez você já teve medo de fechar os olhos e não saber o que esperar quando abri-los? Como se tudo pudesse mudar se você não estiver olhando? – Miranda perguntou, interrompendo seus pensamentos.

— Como morrer? – Cora escutou aquilo e lembrou imediatamente do sonho. O que está morto deve permanecer morto

— Como não ser mais você mesma.

— Não. Nunca tive medo de deixar de ser quem eu sou, porque eu não posso mudar. Eu posso escolher onde eu estou, mas nunca quem eu sou. – Cora replicou, amarga. Jogou o copo fora e enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta antes de afastar-se. — Já que estamos acordadas, acho que a gente pode dar o fora daqui. Você pode acordar o garoto enquanto eu acerto as contas?

Para Miranda, viajar não era uma escolha, porque às vezes ela dormia em um lugar e acordava em outro, dias ou até mesmo meses depois, vestindo roupas diferentes e sendo chamada por nomes diferentes. Às vezes, ela conseguia reunir itens pessoais e ter uma bagagem para levar consigo e, às vezes, só o que ela tinha era o que carregava no corpo. Como agora.

Não importava o quanto agradecesse a Cora e Tony, Miranda jamais seria capaz de expressar toda a sua gratidão pelo que eles fizeram por ela naquele dia. 

Miranda ficara consciente, dona de seu corpo e de suas ações, por quase dois sólidos anos, sem apagões ou sustos. Tivera um emprego e um apartamento modesto, tentava se reerguer depois das últimas quedas (que foram muitas) e estava contente com a estabilidade, que era tão rara para alguém como ela.

Até que, em uma noite, descansara a cabeça no travesseiro, na segurança de seu quarto, apenas para acordar no banco traseiro de um carro nojento, sendo agarrada por um sujeito mal encarado que a chamava por um nome que ela conhecia bem: June.

June era uma pessoa que assumia o controle do corpo de Miranda durante seus ‘apagões’. Ela apresentava um comportamento autodestrutivo e contraproducente, como se tivesse prazer em destruir tudo o que Miranda fazia tanto esforço em construir. Não dava para entender os motivos para que June fizesse questão de se envolver com gente perigosa que tinha a única intenção de machucá-la.

Se tratava de duas pessoas no mesmo barco que insistiam em remar o tempo todo em direções diferentes.

O fato de que tinham transtorno dissociativo de identidade era um segredo que Miranda e June pareciam concordar em guardar o melhor que podiam. Já era complicado o suficiente navegar pela vida tendo que lidar com partes de si mesma, mais ainda seria se outras pessoas fossem envolvidas.

Miranda voltou para o quarto e teve pena de acordar Tony tão cedo, mas era hora de partir. Seguiria com eles até onde fosse possível e depois se esforçaria ao máximo para reorganizar a sua vida.

Ela não poderia desistir nunca de ser a adulta dentro de sua própria história, aquela que tinha que tomar as decisões responsáveis e difíceis, aquela que precisava manter o corpo saudável e seguro, mesmo que June de vez em quando aparecesse e estragasse tudo.

Decidida a parar de pensar tanto em June, pelo menos por enquanto, Miranda respirou fundo e se concentrou em juntar as coisas que acabaram ficando espalhadas pelo quarto. Quando terminou, Tony parecia mais ou menos acordado para o mundo, com o rosto inchado e uma mancha de baba no canto da boca.

Miranda sorriu, ao menos um integrante desse grupo estranho teve uma boa noite de sono. 

Tony havia começado a traçar um plano do que iria fazer dali por diante.

Por mais que reclamasse que sua vida fosse monótona e sem graça, os recentes acontecimentos o convenceram de que não tinha nada de errado em ter um rotina pacata e previsível. Queria voltar para casa, mas, antes, tinha que colocar algumas coisas de volta no lugar.

Travor era seu amigo, vinham conversando virtualmente há anos e Tony estava certo de que ele não tinha culpa pelo seu sequestro, era também uma vítima. Talvez estivesse precisando de ajuda naquele mesmo instante e, se tivesse algo que Tony pudesse fazer para impedir que algo de pior acontecesse, ele faria.

Apesar de ter caído no sono no meio do desenvolvimento do plano na noite anterior, a primeira parte era clara: se livrar de Cora e Miranda, conseguir um telefone e entrar em contato com alguém que pudesse ir buscá-lo e levar o carro e a ele de volta. O resto era resto. Improvisar sempre foi seu ponto forte. 

Os três estavam na estrada desde o amanhecer, os dedos de Tony estavam pegajosos com a cobertura açucarada dos donuts que Miranda comprou pra eles comerem como café da manhã. O que não era nada mal, mas agora ele estava com sede e entediado, encarando o teto mofado do carro de Vince, esperando que alguma coisa acontecesse.

— Preciso fazer xixi. – disse, mais para quebrar o gelo do que por vontade genuína.

— Droga, esqueci de trazer uma garrafinha vazia pra você. – Cora retrucou, sarcástica, trocando olhares com ele pelo retrovisor. — Se aguenta aí.

— Que saco… – Tony nem se deu ao trabalho de insistir, abriu a janela do seu lado ao máximo e colocou o braço pra fora, abrindo e fechando as mãos contra a resistência do vento forte que vinha em sua direção, desejando um pouco de ordem no meio do caos, embora a ordem soasse enfadonha às vezes.

Se assustou com os cabelos de Miranda voando por todos lados da janela do passageiro, fios loiros, longos e finos chicoteando o braço de Tony, que ele encolheu rápido. Ela havia colocado a cabeça para fora da janela, depois o tronco, se segurando com as mãos firmes na porta. Ela ria.

Os movimentos inesperados dela fizeram com que Cora perdesse o controle por alguns instantes, quando instintivamente segurou as costas da blusa de Miranda, com certeza temendo que ela fosse saltar do carro em movimento.

Tony não achou que Miranda faria isso, claro que não. Uma mulher não podia ser julgada por querer colocar a cara no sol e celebrar a liberdade em uma autoestrada parcialmente deserta. 

O problema era que ela não parava e não dizia nada, começou a parecer mesmo que ela estava esperando a oportunidade para se jogar.

— Volta pra dentro! – Com um puxão final, dessa vez no cós da calça que Miranda vestia, Cora fez com que ela retornasse para a segurança do interior do carro. — Qual é o seu problema!?

O coração de Tony batia acelerado, tanto os olhos quanto os cabelos de Miranda estavam selvagens e ela não se parecia com a mulher gentil que os vinha acompanhando até agora. Parecia estar se divertindo e Tony não conseguia encontrar a graça.

— Encosta. – Miranda disse, a mão na maçaneta.

— Não.

— Cora, pára o carro… – Tony insistiu, vendo que Miranda parecia brincar com eles, forçando a maçaneta lentamente para cima, mas sem hesitação. — Melhor parar a droga do carro!

— Não! Isso é maluquice, o que foi que deu em você? – Cora soava irritada e Tony tinha um péssimo pressentimento sobre tudo isso.

Mas Miranda não parecia disposta a pedir duas vezes, pois no instante seguinte, se jogou contra Cora e colocou as mãos no volante, tirando o carro da estrada de uma vez.

Tony gritou, congelado no lugar, assistindo Cora acotovelar Miranda, lutando para afastá-la e recuperar seu espaço.

Em algum momento, Cora foi capaz de agarrar o queixo de Miranda com uma mão e tirá-la de cima enquanto manobrava da maneira que conseguia com a outra até parar de vez. O aperto dela em Miranda era tão forte que seu rosto parecia uma massa de modelar. 

— O que foi isso!? – Cora era, definitivamente, uma sobrevivente. Tony percebeu isso logo e estava claro que depois de tanta luta, não era agora que ela ia se deixar ser abatida. Entretanto, o olhar dela o assustava e a raiva que ela projetava naquele aperto ia acabar machucando Miranda e ele não queria ver nenhuma das duas feridas. A ferocidade em seus olhos e os dentes arreganhados a faziam parecer uma predadora. — Perdeu o juízo!? 

— Cora… Cora, calma… ela deve ter um motivo, não tem? – Tony se inclinou para frente, para olhar Miranda nos olhos. — Não é, Mira? Aposto que tem um motivo bem plausível pra-

Antes que pudesse terminar de falar, Miranda atacou de novo, dessa vez arranhando Cora onde suas mãos alcançassem. Se engalfinharam e se debateram no pouco espaço que tinham, os sons que saíam daquela briga eram demais para Tony, os grasnidos, os gemidos e o farfalhar do embate de duas mulheres adultas cujo propósito era incapacitar a outra. Nenhuma delas pararia enquanto a outra ainda estivesse reagindo.

Tony saiu do carro e abriu a porta do passageiro por fora, fazendo Miranda e Cora se desestabilizarem, segurou Miranda por debaixo dos braços e a puxou com força. O corpo dela caiu com um baque dolorido no chão e ele a arrastou pelo cascalho, para longe de Cora, mesmo que ambas ainda estivessem espumando e Miranda se debatendo para sair aperto de Tony.

— CHEGA! – gritou, se pondo em pé na pequena distância entre elas antes que Cora decidisse avançar. — Mas que porra é essa!? O que- o que foi isso que aconteceu?

A bochecha de Cora tinha três marcas ensanguentadas, onde as unhas haviam ido mais fundo, dava para ver que ela se esforçava para controlar a respiração e que a mulher que se levantava lentamente do chão não saiu de sua vista nem por um instante. 

— Pergunta pra ela, o que foi que aconteceu. – Cora disse, seca. — Tô curiosa.

Tony massageou o arco do nariz e pensou em como a primeira e única parte do seu plano já se mostrava impossível. Como ele poderia lidar com essas duas malucas estando no meio do nada com elas enquanto tentam se matar.

Respirou fundo e se virou para Miranda, um pouco de sangue escorria por seu nariz e Tony suspeitava que uma das cotoveladas de Cora o havia quebrado ou trincado. Ela agia como se estivesse meio bêbada, se colocando de quatro para conseguir apoio e se levantar. 

— Se acalma e vai falando, Mira. – ele pôs as mãos na cintura. — O que está acontecendo com você?

Algo foi a coisa errada a se dizer, porque Miranda soltou um grito de guerra e, ímpeto, usou um dos truques mais velhos da face da terra: jogou um punhado de detritos do acostamento nos olhos de Tony e o empurrou no chão.

Primeiro, Tony tentou imobilizar os braços dela e, quando isso não deu certo, concentrou-se em proteger seu rosto e pescoço, para não acabar como Cora, cheio de unhadas.

O sol brilhava por trás da cabeça de Miranda e, de onde estava, Tony teve a impressão de que estava sendo atacado por algum tipo de divindade, uma mulher fera envolta em um círculo luminoso.

O pensamento se quebrou junto com uma peça delicada de porcelana, uma que Cora usou para golpear a lateral da cabeça de Miranda e a derrubou desacordada para o lado. Em seu lugar, em frente ao nimbo estava Cora, em pé e imponente, talvez também um tipo de deusa. 

E, no fim, Tony se viu caído no chão, rodeado por pedaços reluzentes de porcelana verde, no meio de duas forças que ele jamais seria capaz de entender.

Encostados ao carro, sentados à sombra dele, Cora e Tony recuperavam o fôlego. Não tinham palavras para descrever o que tinha acabado de se passar e, por mais que tentasse se controlar, Cora ainda tremia. Tony devia estar muito pior.

Depois que Miranda desmaiou, os dois prenderam os braços e os pés dela com o pouco que ainda tinha de um rolo de fita adesiva que encontraram no fundo do porta luvas e a deixaram sentada no banco de trás.

Não havia um kit de primeiros-socorros por perto, então eles tiveram que improvisar. O nariz de Miranda foi fácil de colocar no lugar, especialmente com ela desacordada, mas o último golpe abriu um corte em seu couro cabeludo e Cora sabia o quanto era difícil estancar sangramentos na região da cabeça.

As mechas de cabelo próximas do ferimento estavam ensopadas de sangue.

Cora era a única que tinha mudas de roupas e escolheu uma de suas camisetas para fazer de faixa. A situação não estava nada, nada boa.

Das três garrafas d’água que eles tinham, duas foram usadas para a limpeza dos estragos e a outra Cora e Tony dividiam agora, enquanto observavam um calango passar correndo de trás de uma pedra para outra.

Tony pirragueou.

— O que a gente faz agora? – perguntou.

A resposta que Cora queria poder dar era a de deixar os dois na beira daquela estrada e esquecer que aquilo aconteceu. Quando tivesse a oportunidade, colocaria fogo naquele carro velho e seguiria adiante. Mas não tinha dentro de si a coragem de fazer isso.

— Vou levar ela até o hospital mais próximo. Não sei o que deu nela, mas ela precisa de ajuda. – Cora se levantou, limpando a calça com as mãos. Olhou em volta, pensando de repente em como foi um milagre que ninguém tenha passado naquela rodovia para ver a bagunça que eles fizeram. — E talvez ela precise de pontos.

— Seu rosto está… – Tony apontou e Cora dispensou a preocupação dele com um gesto, aquilo era o de menos considerando todo o resto.

— Eu cuido disso depois. – disse ela. — Você pode vir e decidir de lá o que vai fazer ou pode ficar aqui e pegar uma carona.

Levar Tony para qualquer lugar era algo a mais com o que se preocupar, mas Cora tinha a impressão que Tony poderia se meter em problemas caso ficasse por conta própria. Era um dilema pra ela e, por isso, era mais fácil deixar para ele a decisão.

Ele acenou e estendeu a mão para que Cora o ajudasse a se levantar.

Cora o ergueu e, com os dois de pé, aquilo se tornou um aperto de mão que selou algo que eles só viriam a nomear depois.

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