Aquele que tinha dezoito anos

Quando partiu de Louisiana ainda era de manhã. Quando abriu o porta-malas do carro que roubou e encontrou um rapaz amordaçado lá dentro, faltava um pouco para o meio dia. 

O garoto, Tony, era um chorão. Não calava a boca e reclamava tanto que Cora se arrependeu de ter tirado a fita da boca dele.

— Estou com fome. – disse ele pela décima vez.

Cora nem o dignou com uma resposta, percebeu cedo que mandá-lo fazer silêncio não adiantava.

— Sério. Eu estou com muita fome. Tipo, faz um século que eu não como nada. – Quanto mais ele falava, mais Cora tinha vontade de bater a própria cabeça no volante, impaciente. Ela também estava morrendo de fome, mas não era como se ela pudesse fazer alguma coisa, quem dera poder só estalar os dedos e fazer uma refeição se materializar. — Meu estômago vai começar a corroer a si mesmo e eu não quero ficar amarrado e com azia.

— Garoto, olha em volta... – Cora fez um gesto sarcástico para demonstrar a paisagem que havia do lado de fora da janela: uma faixa de vegetação rasteira depois do acostamento e então quilômetros e quilômetros de árvores, de porte médio, quase do tamanho de arbustos, mas muitas. — Estamos no meio do nada. Quando eu parar, eu juro que te alimento. Tá bom assim? Pode ser? Ou você quer que eu te deixe aqui, na beira dessa estrada? Aposto que tem coiotes por aqui que você pode caçar, assar e comer!

A resposta cortante fez Tony se calar por sólidos dez minutos antes de soltar um suspiro alto e colocar sua cabeça novamente entre os bancos dianteiros.

— Também preciso fazer xixi.

— Puta que pariu! Quantos anos você tem? Seis? Será que não dá pra você segurar até a gente chegar em um posto?!

— Não, você não está entendendo… eu tava amarrado, em um porta-malas e a minha bexiga está muito, muito cheia. – ele tinha uma expressão de sofrimento no rosto enquanto falava e Cora teve que respirar fundo para não pular no pescoço dele ou jogá-lo pra fora do carro e seguir viagem sozinha, como deveria ser. 

— Quantas pedras na cruz eu joguei pra merecer isso? – murmurou para si mesma, suspirando cansada, enquanto encostava o veículo no acostamento.

Ela desceu, se espreguiçou e percebeu o quanto estava cansada, seu corpo doía em todos os lugares e sentia como se até os seus ossos estivessem exaustos.

Era fácil culpar a existência de Tony por isso, porque enquanto ela se alongava, ele lutava com a porta do carro, claramente emperrada, ao invés de sair pela outra.

— Por acaso as amarras estão tão apertadas que começaram a afetar o seu cérebro? – ela disse, casualmente, abrindo a droga da outra porta e o puxando pela gola da camisa.

— Ela só precisa que a gente vá com jeitinho. – ele respondeu, antes de correr e se meter no meio do mato. De lá ele berrou: — Você é que é muito estressada!

— Será que nem pra mijar você consegue calar essa boca?! – Cora gritou de volta. Na ausência dele, aproveitou para pegar a barra de cereal que deixara na bolsa do porta-malas e colocou no bolso da jaqueta, depois experimentou abrir a porta emperrada por fora e não conseguiu também. 

— Jeitinho… sei. – murmurou, aborrecida, mas mesmo assim, ela fez uma última tentativa e forçou a maçaneta para cima com força antes de puxá-la. Houve um estalo alto e feio antes que finalmente abrisse. Cora se abaixou para investigar a origem do problema e notou que na região inferior da porta, na parte larga que se encaixava ao carro na hora de fechar, havia um monte de inscrições e cortes feitos no próprio metal. A superfície estava destruída ali e ela quase se cortou com a parte cerrada do ferro quando tentou tocá-lo. — Mas o que é isso?

Cora levantou-se e bateu a porta novamente, convencida de que essa era uma resposta que ela não gostaria realmente de saber.

Encostou-se na traseira do carro e desejou ter alguma coisa com o que se distrair. Qualquer coisa. Quando dirigia, Cora tinha a chance de esvaziar a mente, de imaginar que o passado tinha ficado para trás da forma mais literal possível, para que ele nunca mais a incomodasse novamente. Era como dar um passo adiante e se tornar outra pessoa.

Mas Cora não era idiota. Por mais que esse fosse o único tipo de liberdade que ela era capaz de alcançar, Cora tinha plena consciência de que era apenas uma outra maneira de enganar a si mesma. 

E toda essa situação com Tony a deixava consciente de todas essas coisas até demais. A tentação de abandoná-lo ali e seguir viagem era enorme.

Se parasse demais para pensar na própria vida, ela percebia o quão vazia era por dentro e o quão insignificante era nesse mundo.

Por sorte – ou azar, melhor dizendo –, um carro vermelho vinha pela estrada, ziguezagueando, o motorista tendo claras dificuldades para controlar a direção. Era a distração casual de que Cora precisava. Ficou observando, esperando para ver o que ia acontecer.

Quando alcançou o local onde ela estava, Cora teve um vislumbre do problema: uma mulher lutava desesperada se debatia contra um homem no banco de trás enquanto os dois da frente tentavam ajudar a contê-la e, por isso, a desorientação do carro na estrada.

Eles passaram como um flash, mas foi como se ela os estivesse assistindo em câmera lenta. A angústia daquela mulher pesando no estômago de Cora como uma pedra. A estranha sensação de sentir o sangue esfriar e esquentar ao mesmo tempo, por causa da indignação e do ódio que a tomaram.

— Tony! Entra no carro!

— Mas eu não…

— Entra na porra do carro AGORA!

O rapaz veio cambaleando, desequilibrado por causa dos punhos presos e mal se jogou dentro do carro, ela já tinha dado a partida e arrancado. Ele teve que fazer um pouco de malabarismo para conseguir fechar a porta com o carro em movimento.

— Surtou?! Você... você enlouqueceu de vez!? – Tony ofegava e tentava caber o melhor que podia entre os bancos da frente, tentando entender a situação. Cora não queria se explicar, tinha adrenalina bombeando em suas veias. Afundou o pé no acelerador e se esforçou para não perder o carro vermelho de vista. — Se você queria se matar, não precisava ter me chamado de volta, sua doida! Eu não quero morrer em um acidente idiota!

— Cala a boca! – Cora se esforçou para projetar o máximo da sua vontade de cometer um assassinato na voz. Quando seus olhos encontraram os de Tony pelo retrovisor, o viu engolir em seco e segurar a língua. Era bom para Cora saber que ela ainda era capaz de intimidar alguém com uma ordem e um olhar afiado.

Por fim, ele bufou e se deixou cair para trás, no encosto, fingindo ar de magoado.

Cora revirou os olhos.

— Come isso aí. – disse ela, jogando a barra diet que tinha no bolso no colo dele. — Porque eu tenho que fazer uma coisinha antes da próxima parada.

Tony jamais imaginaria que sua vida se transformaria em um filme de ação, com direito a investigação policial, sequestro e perseguição de carros. 

Ele tinha que admitir que a posição dele não era a mais confortável de todas nesse ínterim, considerando que foi ele a ter um saco enfiado na cabeça, a ser interrogado, depois jogado em um porta-malas e a ser mantido amarrado – sem o menor pingo de simpatia de nenhuma das outras partes, diga-se de passagem –, mas Tony não podia negar que estava sendo emocionante.

Estar na companhia dessa mulher maluca era o menor dos seus problemas nos últimos tempos. Se ela fosse um pouco menos grossa com ele, seria quase perfeito.

Sem muitas opções, Tony fez o melhor que pôde para se segurar enquanto iam de um lado para o outro em alta velocidade na rodovia, ultrapassando caminhões e desviando por um fio de carros que vinham na contramão. Comeu a barra de cereal diet como se fosse pipoca de cinema e segurou firme a sua ainda vontade de ir ao banheiro. 

Ele tinha se enfiado no mato exclusivamente por esse motivo? Sim.

Ele tinha culpa por ter a bexiga tímida? Claro que não.

Como diabos uma pessoa é capaz de se concentrar o suficiente para fazer xixi no meio das árvores? E se tivesse algum animal olhando pra ele, ou mesmo algum tarado-maníaco escondido por ali? Não, de jeito nenhum.

Ele ainda ficou um tempo tentando se focar na sua necessidade urgente de expelir toda aquela água de seu corpo, até fechar os olhos ele fez pra ver se conseguia, mas nada.

E agora estava ali, à mercê de uma rabugenta que, além de não usar as palavras, não deixava que Tony usasse as dele, o mandando quieto o tempo todo. Uma chatice!

— Olha, eles estão virando ali! – apontou, com a boca cheia da derradeira mordida da barra de cereais. Apesar da confusão e da falta de comunicação entre ela e Tony, era óbvio que ela estava seguindo aquele corolla vermelho e que as pessoas dentro dele (fossem quem fossem) não faziam ideia de que estavam sendo perseguidos. Mais um pouco e estariam na cola deles. — Se você não virar agora, vai perder a entrada!

— Eu sei! – replicou ela, fazendo a curva, deixando sons agudos de buzinas e marcas de pneus para trás.

Tony devia ganhar um prêmio por não ter se mijado todo (ou pior) no estofado de Vince. Mesmo em sua pouca experiência de vida, Tony sabia que haviam maneiras melhores de chamar a atenção de alguém do que isso.

Suspirou fundo, e percebeu que a estradinha de terra atravessava uma boa porção de floresta até chegar em um descampado, de onde ele pôde ver um galpão. Nem era preciso olhar para saber que era de uma madeireira, o cheiro de serragem era indiscutível.

Tony perdeu o carro de vista, deviam ter entrado ou dado a volta. A mulher estacionou a uma certa distância e tirou alguns segundos para analisar o local de longe. Sem dizer nada, ela exalou com força, como se, com isso, expulsasse de si qualquer dúvida ou medo que tivesse. 

Ela desceu e Tony a seguiu nervoso em direção a traseira do carro e ficou assistindo histérico enquanto ela tirava uma chave de roda do porta-malas. Isso era mau, muito mau. 

— O que- o que você pensa que vai fazer com isso- essa… coisa? – perguntou, a segurando pela ponta da manga da camiseta, como se isso fosse impedi-la de fazer seja lá que maluquice ela planejava. — Solta isso! – finalmente, depois que Tony gritou, ela lhe deu alguma atenção. Se virou pra ele e fez sinal para que baixasse a voz. Então ele murmurou: — O que você está fazendo? 

— Nada que seja da sua conta. – ela respondeu, olhando bem firme nos olhos dele. Ela podia ter baixa estatura, mas sua áurea possuía um ar de perigo que Tony não conseguia ignorar. — Me escuta bem, você fica aqui, quietinho… Se tentar fugir ou tentar alguma gracinha, eu vou te encontrar e acabar com você, entendeu?

O rapaz acenou com a cabeça, os olhos arregalados de medo.

Até agora, ela não parecia ter interesse em machucá-lo e, talvez por isso, Tony se permitiu relaxar e baixar a guarda. Idiota. Não fazia ideia de quem ela era ou do que era capaz de fazer. Nem o nome dela sabia.

Ela acenou em resposta e pareceu tomar uma decisão de última hora, pegou a bolsa de Vince no porta-malas e tirou uma faca de dentro.

É isso, pensou, estou morto.

Tony deu alguns passos instintivos para trás, mas tropeçou nos cascalhos e caiu no chão. Queria se levantar e correr, mas ele já era naturalmente desajeitado, mais ainda agora que tinha as mãos firmemente presas uma à outra. Só o que conseguiu fazer foi ralar o cotovelo no cascalho.

— Espera! – a mulher capturou seus pulsos com uma mão e ele se debateu para se soltar. — Espera, caramba! Eu quero cortar essa fita!

Com o coração na garganta, Tony se forçou a ficar parado, os músculos tensos pelo nervosismo. Nem percebeu que tinha fechado os olhos, mas quando abriu os braços estavam livres e ela olhava como se ele fosse uma criança covarde.

— O quê!? Você é uma louca psicopata, como eu podia imaginar que você ia me soltar? – resmungou ele, se levantando, embora as pernas ainda estivessem bambas. — E agora?

— É o que eu disse. Fique aqui e não se meta em confusão. Se alguma coisa der errado… – ela estendeu para ele a arma que Vince mantinha no porta luvas. Tony ficou parado, olhando, nem viu quando ela fez o movimento de tirá-la de lá. Além disso, ele nunca tinha pegado em uma arma de fogo antes, não imaginava que teria que fazer isso agora. — Eu chequei e só tem uma bala nela. Só use se precisar.

Ela mesma pegou a mão de Tony, depositou a arma nela e fechou os dedos dele ao seu redor. Nem o esperou recuperar o fôlego para sair andando, a faca embainhada no cós da calça e a chave de mão firme na outra.

— Como assim se der errado? Dar errado o quê!? – tentou perguntar, mas já era tarde.

Depois que ela desapareceu de vista, porém, tudo ficou calmo demais. 

— Onde eu vim me meter… – começou a andar de um lado para o outro, sempre olhando por trás do ombros, paranóico, com a sensação de estar sendo vigiado e de estar absolutamente sozinho ao mesmo tempo. — Certo, certo, vejamos… sem dinheiro, sem celular, no meio do nada… ótimo. Perfeito. Brilhante. 

Dentro do carro a chave se encontrava plena encaixada na ignição, o chaveiro em forma de tartaruga feita de miçangas reluzia pendurada ali, como se o convidasse.

E Tony quase se deixou levar pela ideia, mas lembrou que não sabia dirigir.

— Odeio a minha vida.

Todo aquele silêncio e ruralidade o estavam dando nos nervos e aquela vontade de ir ao banheiro já estava começando a deixá-lo irritado.

— É… tem que ser agora. – Então ele deixou o carro e foi procurar algum lugar adequado para se aliviar. Bem ao longe, ele viu algo azul que lembrava muito um banheiro químico, um bote salva vidas no meio de um mar de má sorte.

Mas, aparentemente, aquele foi o único evento positivo a lhe acontecer naquele dia, pois, ao sair do banheiro, se deparou com um homem inclinado para dentro do carro deles, vasculhando ou roubando, Tony não tinha certeza.

Quando o sujeito se deu por satisfeito e se levantou em toda a sua altura, Tony percebeu o quanto ele era enorme, maior do que qualquer pessoa que já tenha visto pessoalmente. Seus cabelos eram longos e pareciam nunca ter visto água e shampoo na vida e, além disso, vestia tantas pessoas de couro que Tony podia imaginar o fedor de suor que esse homem devia exalar.

Escondido atrás da porta do banheiro químico, Tony esperou e ficou observando enquanto o homem olhava para o céu e um bando de corvos passava por sobre o lugar. Eles circulavam e pousavam agitados, seus grasnados cada vez mais altos à medida que aumentavam em quantidade.

Tony sentiu os pêlos da nuca eriçarem.

O homem olhou para trás e Tony teve a certeza de que havia sido flagrado. Os olhos do sujeito eram claros e sua expressão era dura, parecia transpassá-lo, mesmo à distância. Tony ficou congelado, preso naquele olhar até o homem se cansar dele, se virar e sair caminhando em direção às árvores.

Tony soltou o ar que vinha segurando durante essa troca de olhares e permitiu que seu corpo se desmanchasse, se sentando no chão e tentando entender o que diabos tinha acontecido.

Cora tinha a chave de roda firme na mão. Ela tentava não se preocupar com o garoto que deixara sozinho e nas besteiras que ele poderia fazer na sua ausência, especialmente com uma arma na mão. Mas ela tinha que dar a ele uma chance de se defender caso algo saísse do controle.

O tempo estava passando, Cora não tinha ideia há quanto tempo aquela mulher vinha sofrendo nas mãos daqueles homens e não podia se distrair com “e se”s. 

Depois de andar pela extensão do galpão e chegar até o fundo, Cora se deparou com a imagem de um homem, alto e magro, empurrando a cabeça da mulher loira contra a parede de concreto, o braço enfiado até o cotovelo dentro da blusa dela. Ela se contorcia, lutando para se soltar, mas sem sucesso. 

Antes de avançar mais, Cora olhou em volta, viu o carro deles, mas os outros dois homens não estavam à vista. Isso a preocupou um pouco, mas teria que lidar com um problema de cada vez. 

O homem falava muito e, com certeza, não estava atento ao que acontecia em sua volta.

— Está se fazendo de difícil agora é, docinho? Onde está aquela vadia sacana de ontem, hm? – ele dizia e Cora resistia a vontade de vomitar de nojo.

— Me solta, seu cretino! – a loira gritou.

As duas fizeram contato visual, os olhos amedrontados da mulher se arregalaram, surpresa pela presença de mais alguém ali. Quando Cora fez-lhe sinal para que não revelasse sua posição, a mulher acenou e todo o seu pânico e desesperança se transformaram na postura de alguém que estava pronta pra lugar, agora que sabia que tinha alguém por ela.

Foi com grande satisfação que Cora atingiu o abusador na orelha direita com a sua arma improvisada, o som quase doentio do metal atingindo carne e osso. 

O golpe direto na cabeça foi o suficiente para desacordá-lo, mas não era o suficiente para Cora. Desceu mais um, e outro e outro, acertando qualquer lugar que pudesse alcançar. Não tinha intenção racional de matá-lo, mas sentia a necessidade de fazê-lo sofrer. Muito.

O sangue em suas mãos fez a chave de roda escorregar e cair no chão com um estrondo, o eco do galpão englobando-as com ele.

— Chega. –A voz da mulher era um barulho distante para Coralina, um ruído baixinho no meio do turbilhão que ela estava sentindo. Tem mais dois, pensou, tem mais dois pra pagar. — Ei, você tem que parar.

Sentiu alguém segurar seu pulso e, por mais que seu primeiro impulso fosse se desvencilhar e empurrar a pessoa para longe, o toque ajudou para que ela se ancorasse novamente à realidade. 

— Onde estão os outros? – Cora perguntou, se separando dela e tirando a faca da cintura. Só a ideia de sentir o peso da chave de roda nas mãos já a deixava enojada.

A mulher franziu o cenho e seu olhar foi da lâmina para o rosto de Cora várias vezes, confusa e com medo. Cora começava a ter raiva disso, quanto mais tentava ajudar, mais inseguras as pessoas se sentiam em relação a ela.

— Pra onde eles foram? – insistiu.

— Eu não sei, eu… – mas a mulher não pôde terminar a frase. O som de um tiro irrompeu não muito longe dali. O número de corvos que estavam empoleirados nas árvores e alçaram voo por causa do susto impressionou Cora.

Nem haviam corvos lá quando eles chegaram.

As duas mulheres correram na direção do barulho. Um dos homens fazia o mesmo, mas suas costas estavam na direção delas e Cora não perdeu tempo. Ele estava de bermuda e fez um talho na parte de trás de seu joelho.

Ele caiu com um grito.

— Filha da puta! – imprecou, se esforçando para se levantar, mas incapacitado, e tentado agarrar Cora pelo tornozelo.

Por um instante, pareceu que ele ia tirar uma arma da cintura e Cora teve que pensar rápido.

— Corre pro carro! – Cora ordenou à outra, logo antes de reunir toda a força que o ódio podia oferecer e acertar o sujeito na têmpora com o cabo da faca. Com um gemido, ele desmaiou no chão.

Tremendo, Cora checou os itens que o homem tinha consigo e, realmente, lá estava o revólver. Na tentativa de se manter focada e não deixar que sua mente adentrasse caminhos tortuosos, ela ainda tirou o tempo para conferir a quantidade de munição, tomar posse da arma e localizar a carteira dele. Haviam algumas notas ali e Cora as pegou também.

Podia parecer frio o quanto fosse, mas aquele homem iria sangrar até a morte ali naquele galpão abandonado. Cora não tinha dúvidas de que ele merecia, mas ela também sabia muito bem o quão fodido era ter que passar por uma situação como essa.

Se levantou e passou a parte do braço que estava menos suja de sangue sob o nariz. Ainda tinha mais um para dar conta e Cora não podia se deixar abater agora.

A distância entre o corpo que ela estava deixando para trás e o carro era um espaço longo e aberto, o que significava que tanto Tony quanto a mulher haviam visto cada um de seus movimentos e que de longe Cora podia ver que o terceiro homem já desacordado.

Era uma conjuntura estranha essa. Desajeitada. Cora queria sumir, desaparecer e nunca mais olhar para a cara dessas pessoas.

— Está morto. – a mulher disse, quando Cora se aproximou o suficiente para ouvir sem que tivesse que alterar a voz.

— Ah, jura? – todos esses acontecimentos deixaram Cora com um mau-humor desgraçado.

Tony parecia que ia vomitar a qualquer momento, estava sentado no chão, com as costas apoiadas na roda de trás. Estava encolhido, segurando a cabeça com as mãos.

Cora foi na direção dele e teve um pouco de dificuldade para tirar a arma de suas mãos, tamanha era a força com a qual ele a estava segurando. Conferiu a trava e a colocou de volta em seu lugar, no porta luvas. 

Nesse processo, Cora teve uma sensação esquisita, seu corpo foi percorrido por um arrepio e ela teve a impressão de que alguma coisa estava errada. Olhou em volta e podia jurar que viu um vulto passar por entre as árvores.

— Quantos caras eram? – perguntou, sem desviar os olhos do lugar, para não perder nenhuma movimentação. 

— O quê? – a mulher perguntou, como se não esperasse que Cora fosse se dirigir a ela, como se estivesse perdida em pensamentos e só então acordasse.

— Quantos malditos filhos da puta estavam naquele carro?

— Esses três. – a moça deu um chute no corpo inerte de um deles para ilustrar.

Devia ser imaginação, então, Cora decidiu. Nenhum daqueles homens teria conseguido se levantar e se fosse para fugir ou se esconder eles teriam sido mais ruidosos.

Tony se levantou apressado e, como era esperado que aconteceria, correu para vomitar atrás do carro, fora de vista. Ficou ali até que as ânsias fossem só ânsias e não tivesse mais nada para sair.

Voltou para a companhia das outras duas pálido, respirando fundo, uma mão no peito e a outra no estômago. Cora e a mulher se entreolhavam sem graça, sem ideia de como proceder depois de tudo o que aconteceu ou de como lidar com um garoto possivelmente traumatizado para a vida.

— Meu deus do céu! – ele soltou, de repente. — Que loucura foi essa? Vocês estão bem?

— Eu… tô bem…? – Cora viu a outra responder confusa. — Eu estou bem, eu acho. Obrigada por, vocês sabem, terem me salvado. Eu nem sei o que dizer.

— Ah, eu entendo, também sei como é ser sequestrado. Não é nada bom. – Tony simpatizou e ofereceu a mão em cumprimento. — Meu nome é Antonie, mas pode me chamar de Tony, eu não ligo.

— Eu sou Miranda. – ela retribuiu o gesto, sorrindo. — E você?

Cora, que não entendia como aquelas pessoas poderiam estar agindo tão naturalmente considerando tudo, decidiu que já era hora de terminar o espetáculo e seguir em frente. Sair dali, no mínimo. Não ir para a cadeia ainda era prioridade pra ela.

— Cora. – respondeu e olhou de esguelha para o aperto de mãos que Miranda e Tony ainda compartilhavam, isso Cora não poderia oferecer, com tanto sangue tingindo sua pele. — Eu preciso me limpar, depois eu vou embora. Miranda, você dirige?

Miranda engoliu em seco e só balançou a cabeça para dizer que não. Ótimo, a vida de Cora não podia ficar melhor. Ela revirou os olhos.

— Aposto que deve ter alguma torneira funcionando por aqui ou alguma fonte de água, por que vocês não vasculham os carros daqueles filhos da mãe e vêem se eles tem comida ou dinheiro? – disse e antes que eles pudessem abrir a boca para replicar, continuou: — Deixo vocês na primeira cidade que aparecer e nunca mais falamos nisso. Combinado?

Tony respirou fundo. — Combinado, né? Fazer o quê?

— Claro. – O tamanho do alívio que Miranda expressou ao responder quase suspeitou Cora. Toda a tensão que a moça carregava no corpo se dissipou e ela logo puxou Tony para realizar as tarefas que Cora havia sugerido.

Enquanto os dois cuidavam de passar a limpa naqueles sujeitos, Cora deu adeus à sua camiseta, a usou pelo avesso como trapo para limpar a pele onde aquele sangue imundo havia respingado e depois a jogou fora. Em seu lugar, vestiu uma das regatas pretas que tinha de sobra na mochila. Por sorte, havia tirado a jaqueta pegado "emprestado" logo cedo, bem antes de tudo começar, por causa do calor.

Pequenas bênçãos.

Terminou mais rápido do que esperava e se encontrou sozinha no carro, esperando. Sentou no banco do passageiro e pressionou a testa contra o volante, as imagens da violência se repetindo na sua cabeça, o fantasma da contração muscular durante os golpes, a urgência e a necessidade de fazê-los parar. De fazer gente como eles deixar de existir.

O bombardeamento de pensamentos a fez esmurrar o painel, para se forçar a se concentrar no presente. Geralmente, Cora era boa nisso, mas, geralmente, não tinha motivos para se lembrar do passado e abrir velhas feridas.

Na verdade, naquele momento, sentia como se, além de abri-las, tivesse feito algumas novas no mesmo lugar.

De novo, Cora estava morrendo por uma distração.

Viu que os outros voltavam, carregavam algumas coisas com eles, o que era bom, porque significava que Tony não reclamaria tanto, pra variar.

— Olha, tem vodka! – Tony balançou a garrafa de longe, comemorando.

— Você é uma criança. – Cora retrucou, imaginando que agir como um ser humano normal faria com que não lhe fizessem perguntas e a deixassem em paz. Ninguém precisava saber o quão mexida ela estava.

— Eu tenho dezoito, obrigado! – respondeu, entrando no carro.

— É o que você diz. – Miranda riu e olhou para trás, se ajeitando no banco do passageiro. — Cadê a sua identidade pra provar?

— Ah, não, eu não aceito ninguém duvidando da minha idade. Não depois de tudo o que passei pra comemorar o meu aniversário. – ele pontuou sua fala abrindo a garrafa e tomando um grande gole de álcool. — Eu não estaria nem aqui se não fosse por isso. – ele suspirou. — O que eu não daria pra viajar no tempo. Dois dias atrás já seria ótimo.

Cora deu a partida e saiu. Se não fosse a motorista designada, uma vodka cairia bem, principalmente agora que tudo indicava que Tony falaria pelos cotovelos até o fim dos tempos.

— Nossa, que barra, passar os primeiros dias da sua fase adulta assim. – Miranda comentou. — Mas o que aconteceu, no final das contas?

Pelo retrovisor, Cora viu o sorriso se espalhar no rosto de Tony. A pergunta era tudo o que ele precisava pra deixar a barragem de palavras dele se romper.

— Deixa eu ver por onde eu começo… 

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