Capítulo Dois.

Antes de dormir.

   — Quem é ela? — questiona Michelle, curiosa.

   — Sou Sabrina. — Ela se apresenta antes que Matheus a apresenta-se. — Sabrina Animabus.

   Michelle sorri para ela. Um sorriso forçado e nada simpático. Algo naquela garota não cheira bem. Há algo estranho nela. Michelle pode sentir, mas não sabe explicar.

   — Sabrina é uma grande amiga minha — diz Matheus — A conheci depois que a mamãe matou o papai.

  Michelle teria ouvido mesmo o que jurou ouvir. Seria uma brincadeirinha de mal gosto? Ou seus ouvidos a estariam enganando?

   — Quem matou quem? — Ela faz uma cara de surpresa. — Não. Isso não é possível.

   Matheus sorri.

   — Acostume-se, porque isso é só a ponta do iceberg.

   Sabrina sorri, desviando o olhar em direção ao Matheus. 

   — Por que você não conta tudo o que aconteceu à ela? — diz a garota.

   Michelle, mesmo não indo muito com a cara da menina, tem que concordar. Ela está perdida. Não sabe sobre o que eles falam. Não sabe onde está. Em que ano está. Afinal, quantos anos haviam se passado mesmo?

   — Afinal, quantos anos eu estive em coma mesmo? — pergunta a ex-youtuber.

   — Dez anos. Eu já te falei isso — responde o rapaz — Afinal, isso te lembra algo?

   O que isso deveria lembrar exatamente? Do que diabos ele estava falando? Michelle força sua mente, puxando lembranças de dentro de sua "caixinha". Dez anos desligada. Como está o mundo? Continua o mesmo? Ela se lembra de algo. O último dia que viu o rosto do irmão, antes de ele crescer do nada a ponto de aprender a dirigir um carro. O dia que mudou sua vida. 

   "Um homem, alto e bonito, sorri para ela. Alegre por estar alcançando seus objetivos. A frente dele, um altar concretado com um material antigo, resplandece luzes bruxuleantes que iluminam a cabeça de duas moças. Uma delas tem o cabelo tão vermelho quanto sangue, essa grita nomes e palavras estranhas à garota. A outra, é mais familiar para Michelle, como se já se conhecessem a muito tempo. A moça vira o olhar para ela, um olhar sanguinário e nada amistoso. Aquela feição, aquele rosto... Brenda, sua amiga de infância, um demônio castigado pelas sombras da corrupção humana.

   — Ainda não acabou, garota — diz o homem, que agora apresenta sua pele num tom avermelhado — Você terá que mandá-las para o outro lado e trazer minhas crias mais leais."  

    Sabrina começa a rir, como se achasse graça naquilo.

   — Zanathus — diz ela — Conhece esse nome?

   — O quê? — pede Michelle — O que é você?

   Sabrina ri, divertida com a feição de Michelle.

   — O homem de pele vermelha. — Ela entrega um livro para Michelle. — Olhe nas páginas marcadas.

   Michelle pega o velho livro, fechando-o sem interesse no que Sabrina iria mostrar.

   — Eu sei quem é Zanathus — diz Michelle, nada simpática.

   — Eu sei. — Sabrina sorri, como se soubesse tudo sobre tudo. — Eu vejo você.

   Michelle permanece em silêncio pensativa no a garota disse. Até que Matheus acaba com o silêncio.

   — Sabrina é vidente — diz ele — Por isso está aqui. Ela é a fonte.

   Michelle suspira. O que raios, definitivamente, está acontecendo? Ela acordou depois de dez anos e simplesmente a colocam em um carro sem dar explicações de nada. E agora, soltam algumas palavras para que ela fique ali, com cara de vegetal.

   — Pare o carro! — grita ela — Pare essa merda agora!

   Matheus a olha, assustado. Em seguida, estaciona no acostamento.

   — Você me deve explicações — exige Michelle — Ande. Me fale tudo o que aconteceu nesses malditos anos.

   Matheus suspira, olhando para Sabrina. A garota assente com a cabeça.

   — Ok. — Ele concorda. — Depois de tudo o que aconteceu naquela fazenda eu me vi obrigado a saber mais sobre isso. Ninguém acreditou em mim. — Ele faz uma pausa para pensar. — Descobri muitas coisas, uma delas é que você é a chave para acabar com Zanathus. E que ele não é simplesmente uma criatura que devemos temer. Ele é a besta.

   Michelle se lembra de seu sonho. Seria uma visão do futuro? Ela prefere acreditar que não.

   — Papai e mamãe se divorciaram depois que nossa mãe começou a trazer cadáveres para dentro de nossa casa — continua ele, colocando o carro na estrada novamente — Eu logo percebi que tinha algo errado com ela. Em minhas investigações descobri que estava sobre influência de algo. Eu disse ao papai, mas ele não acreditou. Numa noite, quando ele me trazia de volta da casa dele, mamãe saiu para fora para nos receber, ela estava ensanguentada e gritava por ajuda. Lembro que ela caiu no chão e começou a se contorcer, papai se aproximou para ajudá-la... Eu gritei a ele, mas já era tarde. Nossa mãe o matou.

   Michelle absorve a história com dificuldade. Mas, não podia discordar. Ou simplesmente, não queria. Está claro para ela o quanto está amaldiçoada.

   — E as meninas? Como estão os pais delas? — pergunta.

   — A polícia chegou à conclusão de que Brenda havia matado a todos. — Ele sorri, como se contasse uma piada. — Tenho certeza que é coisa de Zanathus isso. Karina levantou uma busca contra Brenda. Sem saída, Alice vendo que sua filha estava em risco tomou uma atitude mal pensada e assassinou a mãe de Amanda. Desde então, ninguém viu mais ela.

   Michelle suspira. Muita coisa aconteceu nos últimos dez anos. Por que maldições ela ficou desligada todo esse tempo? Ela poderia ter ajudado o irmão. Poderia ter prevenido esses acidentes. Mais já é tarde. E nada ela pode fazer. Nada que ela saiba fazer.

   — Mamãe ainda está viva? — resolve perguntar.

   — Está — responde Matheus — Mas, não está aqui.

   — Ela está presa? 

   — Manicômio. – Sabrina é quem responde. — Por conta de sua perturbação, por conta dos demônios, foi diagnosticada pelos mundanos como maluca. Cai entre nós, é tão difícil assim acreditar que existem criaturas das sombras?

   Matheus para o carro em frente a uma pizzaria.

   — Deixaremos esse assunto para mais tarde — diz ele — Vamos tentar ser "normais" pelo menos por um instante.

   Sabrina sorri.

   — Essa história me deixou mesmo com fome — diz ela.

*** 

   A pizzaria não estava muito cheia, o que indicava que o local não é dos mais frequentados. Michelle observa cada detalhe do ambiente, buscando qualquer coisa que pudesse usar para convencer seu irmão e a amiga estranha dele de que ali não era um bom lugar para lancharem. O recinto de nome "Massas do Italiano", para a infelicidade da jovem, não apresenta sujeiras e nem nada do tipo. É uma pizzaria normal.

   — Pensei que ia ter que ficar sozinha nessa espelunca. — Uma jovem se aproxima, um pouco nervosa. — Não tinha um lugar melhor para gente se encontrar?

   Michelle analisa a garota, essa é do seu tipo. Bela e poderosa, conclui Michelle. A garota de pele clara e olhos azuis, possivelmente poderia ser modelo.

   — Eu gosto da pizza daqui — diz Sabrina.

   — Você come até bosta se deixar — diz a bela garota.

   Ela se aproxima de Matheus, o abraça e o dá um beijo. Michelle observa um pouco perplexa. O que diabos está acontecendo? Quem e o que é essa menina? Para ela, é muito estranho a sensação de ver seu irmão, até então pequeno, beijando uma garota.

   — Não fica assim. — Sabrina puxa assunto. — Também acho nojento.

   — Eu não acho nojento — responde Michelle à tal vidente — Só estranho.

   Matheus se vira para ela e puxa a bela garota que acabou de beijar.

   — Irmã, essa é Letícia — apresenta ele.

   A garota sorri para Michelle. Um sorriso frio e calculista.

   — Sou Michelle. Vocês estão...?

   — Namorando — termina a garota — E sim. Eu sei quem é você.

   Seria essa menina outra vidente? Pelo menos, essa era mais bonita. E normal.

   — Vidente? — pergunta Michelle.

   Sabrina ri. Como se tivesse ouvido uma piada muito sarcástica.

   — O quê? — Letícia encara Matheus. — Sua irmã ainda não está bem da caixola? — sussurra.

   Matheus sorri e pisca para Michelle.

   — Já pediu a pizza? — pergunta ele.

   — Quatro queijos e Marguerita — responde Letícia — Venha, vamos nos sentar.

   Demora um pouco para que a pizza seja servida. O silêncio toma conta dos jovens. Sabrina observa as paredes, como se elas estivessem contando uma história a ela. Definitivamente, essa garota não bate bem das ideias. Michelle chega a essa conclusão enquanto a observa.

    — Então. — Letícia puxa assunto. —, fiquei sabendo que você era Youtuber.

   — Era — responde Michelle — Eu tinha canal de moda e essas coisas. Você conhece?

   — Não — responde — Não tenho tempo para isso.

   — O que você faz da vida? — resolve perguntar.

   — Marketing. Faço estagio de publicidade numa grande marca. GTE — diz ela — Conhece?

   Michelle pensa um pouco. Nunca tinha ouvido falar dessa empresa.

   — Nós somos a maior empresa de tecnologia do mundo — se gaba ela.  

   A pizza chega, aumentando a fome dos presentes. Com seu cheiro marcante e queijo derretido.

***

   Todos comem e conversam um monte. É bom saber que se pode ser normal de vez em quando. Michelle não se lembrava da última vez que esteve com seus amigos tão alegremente. Tá certo que ela acabou de conhecer a eles, mas seus amigos também não poderiam estar ali. Pois estão mortos. 

   — Tenho que ir — diz Letícia — Não posso chegar tarde em casa.

   — Deixe que eu te levo — insiste Matheus.

   — Obrigada, mas não precisa — diz ela — Tchau para vocês.

   Michelle e Sabrina se despedem dela ao mesmo tempo. Sabrina observa a menina sumir para longe deles. Os olhos azuis acinzentados dela brilham estranhamente, como se vissem algo a mais do que olhos comuns podem ver. Pode ser que esteja triste. Tristeza é o que estampa o olhar da garota.

   — O que foi? — pergunta Matheus.

   — Nada — responde ela — Nada que deva se preocupar.

   Ela bebe um gole de energético.

   — Por que vocês não falam de demônios perto dela? — quis saber Michelle — Ela não sabe de nada?

   — Letícia não sabe de nada. — Sabrina responde. — E mesmo que soubesse dúvido que iria saber lidar com isso.

  — Nem todos são fortes — diz Matheus — Não quero colocá-la em risco.

  Amanda. No fundo, a namorada do irmão lembrava Michelle de Amanda. Bela e sagaz igualmente, mas fraca em relação a espiritualidade. Lembrar da amiga desperta perturbações na mente de Michelle, como se a alma da menina gritasse ao seus ouvidos. Pânico, medo e destruição. Tudo se repete como um pesadelo infernal.

   Michelle leva a mão até a cabeça. Uma forte dor rompe tudo por dentro. Distúrbios, tonturas, ânsias e náuseas. Tudo novamente.

    — Michelle, tudo bem com você? — pergunta Matheus, preocupado.

   Sabrina se aproxima e coloca a mão sobre a cabeça da irmã do amigo. Ela sussurra alguma coisa. Tudo se quebra dentro da psique de Michelle. Uma página em branco sendo rasgada por rabiscos indecifráveis.

  Michelle abre os olhos. A dor vai embora. A confusão se desmancha e tudo volta a ser como era antes. A cruel e maldita realidade.

   — Nos conte o que te perturba — diz Sabrina — Eu sei que está nos escondendo algo.

   Michelle suspira. O que pode fazer? Ela pensa e reflete, colocando os pensamentos em ordem. Será que deve mesmo contar o que viu? Pesadelo ou visão? Nunca saberia responder a essas questões. Não sabe como controlar a própria mente desorganizada. E se for tudo verdade? Não poderia arriscar a vida das pessoas em troca da própria sanidade. Seria muito egoísmo, até mesmo para ela. A jovem pega o copo de água de cima da mesa e beberica um gole para molhar a garganta. Está decidido. Irá contar.

   — Eu tive uma visão — diz ela.

   — Qual visão? — questiona Matheus.

   Michelle olha para a amiga estranha do irmão, a mesma assente com a cabeça.

   — O fim do mundo está próximo — começa ela.

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