Prólogo

Um ano antes…

Lembro-me de seu cheiro como uma completa aventura. O mar bravio que nos cercava era apenas uma amostra dos perigos que estavam ao nosso redor, mas a falta de esperança nas noites mais escuras, a solidão do frio que fazia os ossos doerem e o ruído dos estômagos famintos na madrugada em nada se comparam às saudades que tenho dele.

Sou um homem falho. Meus joelhos fraquejam quando me aproximo. É como um ímã que distorce meus campos magnéticos e o meu centro de equilíbrio, como se a realidade ao lado dele fosse completamente distinta da falsa percepção que possuo da vida.

Ele é, sem sombra de dúvidas, o que há de mais real em mim. A representação em carne e osso de sentimentos dicotômicos, como o amor e a vergonha, a grandeza de estar apaixonado e o medo de viver sozinho pelo resto da vida, como uma coisa incompleta e amorfa.

Ao seu lado, a vida tem sentido e o mais feio dos dias parece brilhante e alegre; o céu, mesmo nublado, se torna límpido como o azul de seus olhos. Sem ele, a paisagem se torna escura e cinzenta, como um desenho de nanquim borrado pelas lágrimas.

E as lágrimas, no caso, são minhas. Ouvi dizer que temos que perder tudo para então dar valor ao que tínhamos, mas eu não fazia ideia da dor que é essa derrota.

A felicidade não pode ser medida com um conta-gotas. Para encontrar a paz uma pessoa precisa transbordar a plenitude de uma vida sem o sabor amargo do arrependimento causado pela incapacidade de lutar por si mesmo. Muitos baixam suas cabeças, aceitam o que é imposto pelos outros e poucos, muito poucos mesmo, enxergam além dessas linhas anteriormente desenhadas pelos mestres que coordenam o show de fantoches.

Se hoje enxergo que sou apenas um fantoche manipulado pelas linhas impostas pela sociedade, devo a ele esse abrir de olhos, a tomada de consciência e a insatisfação que corrói o cerne da minha alma e me move adiante. Move-me em sua direção.

Incontentamento pode ser domado. Uma pessoa pode simplesmente sentir o quanto é manipulada e lutar contra a rebelião que domina a alma com a chama de uma rajada de raiva. E eu era bom nisso. Domar a maldita fera que arranhava-me por dentro e rugia aprisionada, e que depois apenas choramingava como um gatinho esquecido.

Acho que tudo tem seu limite. E eu cheguei no meu.

Dedos longos me tocavam como se eu fosse um maldito instrumento, arrancando sons de minha garganta que eu nem ao menos conhecia a capacidade de produzi-los. No cubículo de metal com a janela circular aberta e o cheiro de maresia invadindo com o vento gelado do ártico, a imensidão azul do mar e do horizonte refletia em seus olhos. Tinha um cigarro aceso e pela metade, pendurado em sua boca, preso com os lábios ressecados de frio. Sem nem piscar, manteve aquele olhar sério e intenso, que parecia arrancar a alma de mim.

O cheiro de sabonete se misturava com o suor e, na ponta de sua língua, o chiclete com aroma de canela, intenso e exótico, como a curva de seu nariz e a divisão superior dos lábios. Pele branca, clara, macia, que contra a tonalidade de meus dedos ficava parecendo algodão. Deslizei a mão firme em seu rosto, puxei para mim entrelaçando os dedos nos cabelos castanhos e macios, mas não tive coragem de acertar os lábios beijáveis e nem ao menos de assolar a boca deliciosa com a língua. Era demais.

E foi malditamente rápido. Talvez menos de dois minutos. Suas mãos hábeis arrancaram um suspiro e ejaculei forte, explodindo com choques pelo corpo, fraquejando ao ponto que perdi a força nos joelhos. Estava com as costas na parede e a porta tinha se chacoalhado junto com seus movimentos intensos em meu membro. Derrubei os braços, ofegando cansado com a testa escorada em seu ombro direito.

Tsc. — O som foi a única coisa que ouvi. Alguns segundos mantendo-se na mesma posição, parado em pé na minha frente, levantando a mão para tragar o cigarro e soltar fumaça pelo nariz.

A tensão se dissipou no ar. Meus músculos relaxaram e minha cabeça entrou em um estágio flutuante. Meu corpo inteiro estava em êxtase, nem estava pensando. Era apenas aquele momento. O hálito de canela, o cheiro de sal que vinha do oceano movimentado e a presença mordaz ao meu lado.

Senti um empurrão, a torneira abriu e suas mãos passaram embaixo da água, livrando-se do esperma e da espuma do sabonete. Ainda sentia o músculo do pênis latejando, quente, ensaboado. Não houve sorriso, nem palavras, apenas o cigarro, aceso e pela metade, oferecido na minha direção.

Peguei. Levantei as calças do uniforme militar enquanto tragava. Desencostei da porta, sentindo o constrangimento começando a se instalar. Acho que percebeu. Abriu a porta, o suficiente para passar, fiquei atrás da porta e ela fechou-se novamente.

Aquele cigarro estava na minha boca como um beijo. O beijo que não tive coragem de dar. Sou um completo covarde, inclusive para admitir que aquele foi o melhor orgasmo da minha vida inteira.

Peguei a toalha, me lavei mal, só limpando a bagunça e me preocupando com o que diria se vissem que eu não tinha aguentado. Era difícil controlar aqueles instintos, mas era parte do treinamento. Controlar-se. Nossos limites estavam sendo testados naquela temporada.

Abri a porta. Os sete homens, soldados com quem eu dividia a cabine, explodiram em uma risada, mas não foi o que magoou mais. Ele estava ali no meio, sentado ao lado de um amigo, trocando olhares cúmplices comigo, com o mesmo constrangimento que eu sentia como facas afiadas atiradas contra a própria pele, em cada riso debochado.

Vamos, seus desgraçados, duzentas pratas. — A voz cortou o riso. A mão que tinha me tocado agora estendida pedindo o pagamento, e as notas foram sendo colocadas. Cada homem deu duzentos.

Uhhhh, quanto cobra para bater uma para mim, Caubói? — Um dos soldados de voz grossa provocou, com um sorriso largo e maldito.

Sem uma dedada você vai levar um século para gozar, recruta. Então uns dez mil. — Retrucou o sorriso, fazendo o homem se colocar em seu lugar. Gostei de ouvir aquilo, língua afiada, personalidade forte, seus traços mais marcantes.

Tudo isso, porra? — Outro soldado reclamou, foi desconcertante, parecia que queria o serviço e uma chama doente faiscou dentro de mim naquele momento.

Tá achando que é de graça? Vai à merda. — Guardou o dinheiro no bolso da frente do uniforme. A etiqueta não exibia um nome. “D.K.”. Seus olhos me encontraram. — Pra você tem desconto, gostosão. — Piscou um olho, puxou o cigarro que estava pendurado nos meus lábios semiabertos com espanto e saiu da cabine.

Uhhhhh… — Os soldados que ficaram no quarto o seguiram com o olhar. Um maldito ímã.

O silêncio permeou a cabine até que um dos soldados coçou a garganta e se levantou da cama.

Vou primeiro. — Passou por mim. — Finalmente saiu, porra, quero cagar.

Não espero delicadeza e nem educação desses malditos. Pensei em subir no beliche, mas eles estavam olhando para mim como quem espera comentários. Além do mais, é constrangedor, somos, em maioria, heterossexuais, além de soldados e homens que estão ali para compor um treinamento de elite.

Desde que entrei no Navio, não me esforcei para decorar seus nomes, mal e mal suas feições. Esses caras são meus rivais e tenho certeza que pensam do mesmo jeito. Apenas cem vão chegar ao final do treinamento, muitos desistirão, outros vão morrer no caminho. Minha meta é aguentar oito meses e sumir, o máximo que alguém da Sociedade chegou.

Saí do quarto.

♜♜♜

Alguns meses depois…

O primeiro horário no Navio é sempre a mesma coisa. Uma sirene toca, as luzes acendem, você tem dez minutos para sair da cama, se banhar e ir para o café da manhã. Eles fazem marcha, então, a mesa de deliciosidades é liberada: pão velho, café frio, manteiga gordurosa e pedaços embutidos de frios. Tem ovo mexido, às vezes, salsicha com molho de tomate, e raramente e muito de vez em quando, bacon. Mas normalmente servem sopa de cauda de peixe com cabeças boiando; se for um dia de sorte, patinhas de caranguejo.

Impossível resistir colocar tudo no seu prato até virar uma montanha gosmenta de todas as coisas. A fome é enorme e ninguém garante o jantar.

Durante a marcha eu procurei aquele rosto, mas queria fingir desinteresse e embora tenha o avistado, deixei passar. Era como uma confirmação que o dono dos olhos azuis mais intensos que já vi estivesse mesmo ali e não fosse fruto da minha imaginação.

Fiz flexões como o treinador de uniforme preto e máscara ordenou. Não sabíamos seu nome, era apenas o Comandante. Não importava, existiam vários comandantes, cada um em sua modalidade, todos prontos para nos fazer suar até os músculos doerem com o esforço. Alguns eram piores que os outros.

Na fila do café da manhã, contei duas colheres de canela e quatro cubos de açúcar no café iodado. Era o mais perto que chegaríamos de algo doce. Mesmo assim eu recusava, prefiro o amargo e o gosto da cafeína idosa grudando na língua como graxa, que pode realmente despertar uma mente sonhadora.

Essa hora da manhã e você com esse humor, DK? — Derrubei a bandeja, recebi em resposta um daqueles sorrisos indecifráveis.

É sempre tão cretino, soldado?

Só quando dormi mal. Senti sua falta na minha cama. — Peguei a cafeteira térmica, girei a tampa e derrubei o líquido no copo de vidro. Um cubo. Fiz uma careta.

Para adoçar o dia, amorzinho, você está amargo. — Colocou a colher plástica na boca de forma que imaginei que fosse meu pau. Piscou um olho, pegou seu copo e se afastou.

Fiquei sério evitando dar bandeira e não percorrer a linha do uniforme em seus ombros até o pescoço. Ele estava com os cabelos lisos amarrados em um coque. Resolvi me sentar do outro lado do refeitório.

Depois da primeira tarefa, antes do almoço, enquanto todos os homens iam para o chuveiro antes que ficasse mais frio, poderíamos ser encontrados contando as notas de dinheiro e rindo em um canto do convés, fumando um cigarro mentolado enquanto os flocos de neve acertavam nossos cabelos.

Lucrativo. — Peguei o bolo de dinheiro que seus dedos hábeis me estendiam com um sorriso. O dinheiro talvez não fosse limpo, mas mantinha a vida girando no Navio. Tráfico de cigarros, chicletes e até barras de chocolate, mas o melhor mesmo era o álcool. Coloquei no bolso frontal, meu nome não era o verdadeiro na lapela. — O que me diz?

Alguém me deve uma bebida. — As sobrancelhas castanhas se curvaram, mordiscou os lábios com os dentes grandes. — Semana que vem vai chegar um barco, mais vinte novatos. “DL” vai te colocar em outro quarto.

Não vou reclamar, você sabe. — Traguei o cigarro e estendi para ele. — Adoro suas mãos.

Eu sei. — Revirou os olhos e tragou o cigarro.

Ficamos em silêncio depois das poucas palavras, o som do mar batendo em seco contra o bico do Navio e o breve balançar do corpo como as mães fazem em uma cantiga de ninar. Recostei-me, escorregando um pouco para frente, e não hesitei ao segurar sua mão.

Dá para acreditar que estamos aqui já faz seis meses? Vivos? — perguntei em um sussurro, deslizando o rosto no dele, a pele branca e fria da bochecha. Dei um beijo delicado.

Não relaxe, italiano.

Espere, como sabe que…

Seu sotaque. — Deu um sorriso curto e se afastou, tragando o cigarro. — Não me tire por idiota, sou bem treinado.

Seu nome, é qual? — Eu quis saber, ele torceu a boca, desgostando da pergunta. — DK e DL são muito parecidos.

Daniel.

Seu nome é Daniel?!

Desde que eu me lembro, sim! — Riu, balançando a cabeça, alguns fios soltaram-se do coque. — E você se chama Benedict mesmo?

Não. É um nome falso, claro.

Claro. — Passou o cigarro para mim. Fiquei quieto, pensativo, ele apenas me observava como quem espera a revelação do meu nome, mas eu não quis dizer naquela hora. — Pretende mesmo servir o exército?

Não exatamente.

Você tem muito talento.

Em te masturbar ou em ser um soldado?

Os dois, eu diria. — Senti minhas bochechas pegando fogo e bati a mão no peito, quase engasgando com a fumaça do cigarro. — Cristo, não fale assim, como se não fosse nada… É tão errado.

Oh, errado. — Bateu os cílios escuros, demonstrando cansaço. — Não sabia que você era desses.

Eu tenho uma família bem rígida e religiosa.

Hm. Entendi. Sei como é, na verdade. De qualquer forma, não estou aqui pelo treinamento.

Não?

Não… — Ele pegou o cigarro dos meus dedos, eu estava demorando com ele e essas coisas queimam, desaparecem, custam caro como um demônio dentro desse navio. Daniel levou até os lábios e tragou. — Estou localizando alguém. Um alvo que precisa ser eliminado.

Sabia! — bradei com alguma alegria em confirmar o que eu imaginava. Desde que somos parceiros de equipe, noto que ele é malditamente muito bom nas estratégias e só podia ser um veterano. Mas é assustador, ele parece bem jovem… O que me leva a outra possibilidade. — Você é um espião?

Que palavra horrível.

Mas é isso, não é?

Sabe que é uma informação secreta e não posso falar sem ter que enfiar uma bala no meio da sua testa? — Deu uma risada, fazendo piada, mas eu sabia que estávamos em um ponto da conversa em que ele não estava mais negando.

Não sei dizer exatamente como essa dinâmica entre nós começou. Nos conhecemos nos primeiros três meses de treinamento e viramos amigos. Logo virou uma espécie de codependência para vencer as fases do treinamento. Nos damos bem, nos entendemos e sabemos como tirar vantagem dos novatos (e até de alguns veteranos). Conseguimos, juntos, manter boas pontuações, nos complementamos em campo e um não deixa o outro desistir. Mas esse depender, aos poucos, transformou-se em carinho… E um tesão que eu não consigo mais controlar.

Com sua mira? Passo! Prefiro ficar sem saber, pode guardar o segredo para você. — Revirei os olhos brincando e ele sorriu, me entregou o cigarro ao perceber que eu estava encarando seus lábios, mas não era o acessório que eu queria. — Mas você tem que matar essa pessoa?

Mistério. — Deu de ombros e pareceu preocupado. Aquela era a primeira vez que falávamos sobre isso e, embora houvesse gosto de vitória por eu ter desconfiado que ele era um agente em serviço, era assustador pensar que naquele navio ninguém era quem realmente dizia ser. — Tenho que localizar, o que vier depois, não sei. Pode ser apenas um interrogatório, pode ser alguém com uma mensagem que eu preciso levar adiante… Eu não sei.

Eu não sei nada sobre você….

Você sabe meu nome, o que eu gosto de tomar no café da manhã, o que prefiro beber, como gosto de trabalhar em campo e, como meu parceiro de equipe, sabe que adoro quando você vai na frente.

Eu te defendo, você atira. — Dei de ombros, traguei o cigarro e expeli a fumaça. — Suas chances de acertar alvos são muito melhores que as minhas, sigo suas estratégias.

O que é extremamente mais íntimo do que qualquer coisa que eu tenho com alguém, sabia?

Tem razão. — Balancei a cabeça em concordância. — Acho que confiar suas costas guardadas para outra pessoa é muito mais íntimo do que aquilo que fazemos no banheiro para enganar os novatos e conseguir uma grana.

Headshot.

Vai me dizer seu nome de verdade um dia? Se sairmos vivos daqui, quero poder te ver de vez em quando.

Isso é uma promessa, italiano? — Sorriu, erguendo as sobrancelhas ao mesmo tempo, interessado.

Benito — revelei. Sei que não devia, minha identidade está protegida nesse treinamento por um bom motivo, mas ali, naquele convés com os cabelos balançando ao vento marítimo, ao lado dele, eu queria apenas que ele soubesse quem eu era e que eu soubesse quem ele era. — Meu nome mesmo é Benito Lambertini.

Saber seu nome de verdade se enquadra em um tipo íntimo de intimidade?

Um tipo muito íntimo de intimidade — concordei balançando a cabeça.

Hm, que bom. — Ele apagou o cigarro, jogou a ponta para o mar e ficou em pé, puxando os cabelos para trás da orelha e estendendo a mão. — Daniel Kovaliev.

Uau. — Segurei na mão dele e me levantei. — É um nome que combina perfeitamente com você.

Trocamos um sorriso e cada um seguiu para o seu lado, simplesmente. A vida era perfeita há um ano, com promessas que poderiam existir no amanhecer. Se houvesse amanhecer.

♜♜♜

Atualmente…

Obediência. Honra. Rigor. São as regras do jogo. As regras da Famiglia. E, dentro da associação, nenhuma regra pode ser quebrada sem que os infratores sofram as últimas consequências.

Todo homem nascido dentro da associação já é um membro da Giostra. Quando chegam a uma certa idade, lá pelos doze, treze anos, são “batizados”. É quando se tornam um “homem feito” e fazem um juramento diante dos líderes mais poderosos que se sentam à mesa do Carosello, usando máscaras que ocultam suas verdadeiras identidades.

Você não precisa ser um soldado, mas vai galgar degraus mais rápido, se for. Nem todos os que foram batizados conseguem se tornar um Uomo D'onore, nem todos viram Primo-Uomo. Apenas vinte e quatro deles se tornam Conte de uma região, adentrando o pilar de sustentação do Carosello. Somente três homens puderam usar o título de Marchesse, mas apenas um foi capaz de manter o anel em seu dedo e a vida pulsando em suas veias. E uma única pessoa, só uma, tem o título de Signora da Giostra.

Quando não conseguem subir os degraus de forma honrosa a ganância se torna uma doença entre os homens e começa a se acumular como o pó que deve ser varrido para debaixo do tapete que sustenta o carrossel. Alguns homens, os invisíveis, são como a vassoura: nascem e crescem com a única função de fazer uma faxina e tirar a imundice de cena. Normalmente são esses homens que ficam com as mãos mais sujas. Alguém tem que pôr a mão na massa.

Eu sou um desses homens, marcado pela tatuagem do Carosello. O cavalo preso às leis da Giostra. Um cavalo de ferraduras sujas.

Ao menos dê um sorriso e finja que está se divertindo, não te trouxe aqui para partilhar mau humor. — Liam ergueu os braços, sentado em uma mesa de uma barulhenta casa noturna.

Meu primo, e a pessoa que eu tenho mais próxima como um amigo, tem os cabelos cacheados castanho-claros, olhos imensos azuis e um corpo franzino e delicado. Sua avó, que por sinal também é minha, sempre aponta em como ele se parece um anjinho solene…. Mas de anjo esse puto não tem nada. Treinado para ser um assassino de sangue frio, desenvolveu um sadismo único e um senso de humor transviado.

Ao menos beba alguma coisa. — Fazendo uma careta, Liam bateu a mão em sua camiseta da banda Guns'n'Roses, que tinha uma caveira, rosas vermelhas e duas pistolas. Ele escuta esse tipo de música. Eu, por outro lado, prefiro heavy metal.

Não bebo quando estou em serviço — retruquei enquanto abria a tampa da garrafa de água usando o anel de aço vazado com uma ferradura no dedo indicador como apoio, o anel que pessoas invisíveis como eu usam na Giostra.

Você não está em serviço! — Liam revirou os olhos.

Liam — pontuei. Sempre chamo o nome das pessoas como uma forma de repreensão e talvez isso tenha algo a ver com o fato de que meus pais faziam isso comigo quando eu era criança. — Só estou aqui para não te deixar sozinho, alguém tem que te proteger. — Coloquei o gargalo plástico da garrafa nos lábios e dei um gole para refrescar. O calor fica insuportável no verão e eu já tinha dobrado as mangas da camiseta lisa e preta.

Proteger? Eu? — Ele riu incrédulo, gesticulando com as duas mãos. Embora tente esconder, ele é italiano, mesmo com aquele sotaque arrogante e suíço. Confirmei com a cabeça. — Sei me defender. Não precisa me proteger.

Na maioria das vezes ele estaria certo. Liam teve que aprender a se defender. Ele é como uma máquina na batalha, ágil e leve, com golpes precisos e criativo o suficiente para improvisar uma arma com qualquer coisa que encontra no ambiente. Mas nem sempre ele está a salvo, ou livre de se machucar.

Alguém tem que te proteger de Nero.

Não precisa, não. — O homem de olhar gélido interrompeu-se com o cigarro na boca, um palito de fósforo na mão e uma cartela na outra apenas para protestar, um anel igual ao meu reluzindo em seu dedo.

Ergui as sobrancelhas em resposta, apoiando a garrafa em cima da pequena mesa circular de madeira. Nero riscou o fósforo com um puxão e acendeu o cigarro, ignorando o cartaz de "não fume" pendurado na parede azul escura atrás de si. Homens como Nero Mascherini não costumam se intimidar com pouca coisa e por isso eu me preocupava com Liam, ele era o mais nobre dentre nós.

Liam não cresceu na Giostra. Ele tem sua tatuagem do cavalo feita de cabeça para baixo, porque seus pais não são casados, e porque seu pai biológico assumiu a homossexualidade em uma época em que isso era especialmente malvisto.

As coisas são um pouco diferentes agora, mais abertas, mas Liam tem lembranças terríveis dos abusos violentos que sofreu quando criança e ainda carrega as marcas do preconceito gravadas na pele. Não apenas a tatuagem, mas as cicatrizes. Por anos ele viveu à margem da Giostra, como um renegado, até que, por fim, saiu da Itália de uma vez e assumiu os cassinos da família Mantovani na Suíça.

Ele estava de volta agora. Dessa vez, Nero era a âncora que o seguraria na península. Os dois tinham montado um bom apartamento para viverem juntos, e o Conde de Sardenha — o tio que perseguiu Liam quando criança — dava sinais de arrependimento e de que queria recuperar o tempo perdido.

Mas, para mim, não tinha como recuperar o tempo perdido. Eu estava no fundo do poço, acostumado ao inferno…. E até o demônio temia a minha presença.

Viu? Não precisa — Liam repetiu tentando me convencer, e digamos que ele fica especialmente insuportável desse jeito. — Pode beber.

Desastres acontecem todas as vezes que bebo. — Rangi os dentes, lembrando dos últimos.

Que pena, aquela morena ali está olhando para você. — Liam apontou uma direção com o dedo e pegou sua long neck para beber.

Olhei por cima do ombro com curiosidade, mas acabei apenas revirando os olhos para a pessoa que estava encostada no balcão do bar.

Não é uma garota. — Peguei a garrafa de água novamente, dando um gole.

Liam deu uma gargalhada escrachada e Nero bateu o cigarro, derrubando as cinzas para fora da mesa.

Por que não? — Nero perguntou expulsando fumaça pelo canto da boca, torcendo os lábios. Falar com ele era como estar diante de um interrogatório, sua voz era imponente e seu olhar podia atravessar sua alma. Ali estava um homem que podia arrancar qualquer verdade de uma pessoa e por isso apenas bati a língua nos dentes, não querendo responder. — Você mesmo disse que está sem paciência para mulheres e teve aquele episódio das meias vermelhas no hotel.

Revirei os olhos e apenas exalei ar pela boca. Nero colocou o cigarro nos lábios, se apoiando com os cotovelos em cima da mesa; nem mesmo um sinal de emoções atravessou o seu rosto, continuou ali impassível, me analisando.

O episódio das meias vermelhas, vamos esquecer — exigi, o que fez Liam tampar a boca com uma das mãos e se engasgar com a gargalhada que se esforçou para segurar.

Eu confesso. Já saí com uma travesti. Foi sem querer, ela me lembrava alguém. Acho que foi algo no tom de seus olhos azuis e no ranger de dentes ao ser desafiada.

Você realmente devia se divertir — Nero insistiu, tragando.

A ponta iluminou-se acendendo seu rosto másculo e comprido, aumentando as sombras por baixo de sua sobrancelha escura como seus cabelos. O cheiro da fumaça chegou até minhas narinas.

Ele apenas não quer falar de Gia. — Liam cutucou o namorado com o cotovelo.

Nero passou o braço apoiando-o na cadeira de Liam, se aproximando de forma íntima. Algo que eles não fariam o tempo todo às vistas de qualquer um.

Gia é passado — assegurei, embora eu realmente não tivesse certeza.

Às vezes eu ficava pensando, criando hipóteses imaginárias na minha cabeça. Como teria sido? Será que eu estaria sentado na sala de uma grande casa contando histórias para o filho que falei para ela abortar? Eu tenho que ser mais cuidadoso, essa é a verdade.

Fui apaixonado por Gianna e isso me colocou nas piores situações. Corri muito atrás dela e, por vezes, pensei ter sido correspondido apenas para descobrir que ela estava brincando comigo, me fazendo de capacho. É claro que uma de nossas aventuras deu errado. Não usei a maldita camisinha, pensei que ela estava usando pílulas, mas a filha do Conde de Emiglia-Romana acabou ficando grávida. Ela é uma princesinha da Sociedade, eu sou um soldado sujo sem permissão para casar com ela. E eu nunca conseguiria pagar ao pai dela o montante necessário por aquele casamento. Quais seriam as opções reais? Fugir? Daria certo por um tempo, mas nunca mais poderíamos ter uma vida digna e normal. Dignidade é tudo no Carosello e eu tento manter a minha e a das pessoas que gosto intactas.

Depois de tudo, da dor de ter que abrir mão de um filho porque a garota com quem você quer se casar rejeita o seu padrão social na Família... Bem, você cria essa casca e eu estava dentro de um casulo à prova de balas agora. Gianna era passado, mas as marcas que ela deixou me acompanhariam para sempre em doses cavalares de arrependimento, desilusão e solidão.

É claro que é — Liam acusou, erguendo uma sobrancelha com sarcasmo, não me levando a sério. — E estamos no presente, você tinha que curtir mais o presente.

Meias vermelhas vendem em qualquer loja de lingerie — Nero provocou, com o mesmo tom de deboche. Ele parecia maníaco quando demonstrava bom humor, era mais assustador do que ser analisado.

Vocês dois são impossíveis. — Levantei-me da mesa de supetão. — Vou mijar — avisei para que não me seguissem.

Eles ficaram conversando. Pensei em dar a eles um momento a sós. Acredito que se ficassem distraídos um com o outro, eles me deixariam em paz e não falariam mais de Gianna. Ou das meias vermelhas. Onde é que eu estava com a cabeça?

Sou mais ou menos controlado, guardo meus sentimentos dentro de um baú e procuro não deixá-los vir à tona. Mas não sou um homem frio, pelo contrário, sou bem sangue quente.

Fui até o bar. Prendi os cabelos loiros e ondulados em um coque masculino e bati os dedos no balcão. O barman virou-se para mim.

Duas doses de tequila — pedi.

O homem se virou para preparar e eu fiquei olhando para o interior da casa, analisando todos os pontos. Em segundos eu já tinha decorado os pontos cegos das câmeras, gravado o nome da maioria dos funcionários e criado pelo menos três rotas de fuga. Passei a mão no rosto, que se dane. Eu realmente precisava relaxar.

As doses foram colocadas em pequenos copos na minha frente com um estalido seco no balcão. Uma porção de sal e um limão cortado em quatro vieram em um prato à parte. Coloquei o sal na boca, engoli as duas doses e mordi o limão, sentindo o amargo aplacar o queimar da garganta que o álcool deixou como rastro.

Mais duas. — Afastei-me do bar e fui para o banheiro, ainda querendo me demorar um pouco para voltar à mesa.

As portas eram vermelhas e não tinha placa separando gêneros. É raro, mas algumas boates são assim. Passei pelo corredor de luz laranja e adentrei o recinto com cheiro de urina e alvejante misturados. Estava vazio. Entrei em um box para usar o mictório. Esse é o problema de beber tanta água. Lavei as mãos e o rosto, duas meninas adentraram no recinto aos beijos, me olharam, riram e continuaram seus amassos indo para um box.

Eu ri sozinho. Aquela situação era familiar e trouxe memórias à tona que eu gostaria de deixar embaixo do travesseiro junto com minha pistola. Os flashes de memória surgiram deixando minha visão turva e fui transportado para outro lugar, escuro e frio, onde os cabelos eram castanhos, mas estavam vermelhos sujos de sangue. O hálito era de canela. Por que eu estava me lembrando disso agora? Enchi as mãos com água, lavei o rosto e sequei com as mãos, que depois bati nas calças jeans cinza escura. Comecei a ouvir os gemidos das garotas e saí do lugar.

Voltei para o bar e o bartender tinha servido as duas doses de tequila. Antes de voltar a beber, olhei para o celular. O silêncio de mensagens me matava, havia apenas uma mensagem do Consigliere querendo marcar uma reunião para dali a dois dias no sul da Itália. Não tinha nada a ver comigo, mas quando recebo um trabalho, não reclamo, apenas faço.

Engoli as duas doses que eu havia pedido da mesma forma que as primeiras e girei, me apoiando no bar com os cotovelos para trás. Olhei para aquela multidão dançando junta, sorrindo, curtindo o som e a noite. Eu não me sentia naquela vibração animada e alegre; por dentro, era só um homem destruído.

♜♜♜

Nos despedimos ao amanhecer com um aperto de mãos. Liam e Nero estavam aos beijos quentes no estacionamento e eu recusei o convite de ir com eles para o apartamento, para continuar a beber e conversar. Subi na moto e dirigi contra o vento gelado da manhã esperando que ao menos aquela sensação fizesse me sentir vivo.

Fui para o hotel. Eu passaria apenas a manhã ali e depois pegaria um avião para casa, juntaria a equipe, o equipamento e tudo o que fosse malditamente necessário para entrar de cabeça no serviço em Nápoles, mas, naquele momento, eu não queria pensar nisso, em nada disso. Só queria esquecer o cheiro do sangue, o gosto das lágrimas e aquelas lembranças que ficavam vindo à tona, carregando o peso dos meus erros.

Tirei a camiseta e o espelho largo na parede refletiu de volta para mim as marcas no meu corpo, a tatuagem do Carosello, me lembrando que eu devia sempre andar pelas regras. Passei as unhas coçando com força, como se eu pudesse arrancá-la de mim. Não, nunca ia sair.

Tirei o anel, coloquei em cima do criado-mudo, desci as calças e abri a gaveta, tirando a pistola preta que coloquei debaixo do travesseiro. Joguei o meu corpo cansado. Na cama, sozinho.

Mas nem sempre foi assim.

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