1 – Deixe seu recado na caixa postal

           Por ser uma de muitas praias turísticas do litoral norte, as Emanuelas não seria, exatamente, uma das mais destacadas em um panfleto turístico. Sua curta extensão a colocaria, talvez, em terceiro ou quarto lugar entre as mais conhecidas, independentemente de suas águas ostentarem o mesmo azul penetrante, refletir o mesmo poente dourado e aquecer a pele de turistas europeus endinheirados com a mesma intensidade que suas vizinhas mais famosas. A meia dúzia de barezinhos à beira-mar, sempre ávidos por visitantes, serviam seus coquetéis ao som de música tranquila e petiscos proibitivamente caros ansiosos em indicar a maioria das pousadas próximas como forma de demonstrar boa vontade aos clientes e também estreitar o relacionamento com os donos das hospedarias.

           A maioria das pousadas.

           Havia, porém, uma que raramente era mencionada, exceto para atiçar a curiosidade dos mexeriqueiros. Instalada um quarteirão distante da praia, mas ainda assim com uma vista esplendorosa para a imensidão turquesa do atlântico, a Bombordo era frequentemente ignorada pelos turistas e omitida pelos jangadeiros, entre outras razões por culpa de rumores estranhos sobre alguns clientes sofrendo terror noturno e o caso supostamente abafado de um acidente que teria terminado em uma criança afogada na caixa d’água.

           Apesar das fofocas, a pousada seguia nas páginas de turismo, nos panfletos publicitários e no número 12 da Oliveria Júnior, ostentando sua fachada azul-piscina e sua placa de fibra de vidro. Nos últimos tempos, porém, poucos paravam mais que dois minutos diante do portão, e menos ainda entravam, por mais seduzidos que estivessem dados os preços convidativos. Dentro, ocasionalmente, havia o pessoal da terceirizada que mantinha os reparos em ordem e a dona, raramente vista à luz do dia. 

           Mercedes Muñoz descia as escadas do prédio principal caminhando com cuidado através da escuridão. O breu que se estendia à frente, cortado apenas pelos estreitos intervalos entre as luminárias, não lhe seria um mistério apenas três semanas atrás, antes que toda aquela insanidade começasse. O que antes era apenas um incômodo alimentado por algumas lendas urbanas havia se convertido, primeiro, em tragédia, depois em depressão e por fim em loucura.

           Instruída, herdeira de uma pequena fortuna e conhecedora de alguns poucos mistérios do mundo, Mercedes encarava os rumores sobre sua pousada assombrada com bom humor e as aparições esporádicas que perambulavam por alguns dos quartos ou eventualmente pelos corredores com respeito e dignidade. Como de costume em qualquer empreendimento hoteleiro, mantinha um registro rígido de seus hóspedes e assim conseguia prevenir-se contra qualquer rosto desconhecido que eventualmente solicitasse serviço de quarto, mergulhasse na piscina às três da madrugada ou esvaziasse uma garrafa da adega trancada. Ócios do ofício. Em geral, o melhor tratamento a ser dado nessas situações era agir com total normalidade – e como raramente os hóspedes, vivos ou não, interagiam entre si, o único ponto em comum com o qual podiam se relacionar era ela própria ou o gerente que, bem remunerado e devidamente advertido, retribuía com naturalidade a quem quer que reivindicasse a chave de um quarto ou uma troca de menu do jantar.

           Naturalmente, manter um empreendimento notavelmente assombrado por quase uma década não a poupava de certos inconvenientes. Às vezes, um cliente vivo e um cliente morto solicitavam o mesmo quarto. Nessas situações, muito jogo de cintura era necessário para conciliar os interesses conflitantes. Em geral, os fantasmas, indistinguíveis de seres humanos vivos exceto pelo fato de sumirem por dias ou de aparecerem nos locais mais improváveis, só precisavam de um pouco de atenção antes de irem-se para onde quer que fossem fazer o que quer que mortos faziam quando não estavam sob os olhos dos vivos.

           Outras vezes, clientes tinham sonhos angustiantes com estranhos lhes observando enquanto dormiam, e durante algumas semanas a piscina da pousada fora fechada por causa da aparição recorrente de um sujeito que só surgia entre às seis e às dez da noite apenas para poder baixar o calção de banho diante de tantos hóspedes quanto pudesse. Um outro insistia em provar toda a comida que era preparada antes que fosse servida nos jantares, obrigando o gerente a convencer os cozinheiros de que ele era, de fato, um chef contratado para atestar a qualidade das refeições preparadas, e que havia sido demitido dois meses depois quando finalmente deixara de dar as caras na cozinha.

           Alguns desses fantasmas eram muito mais antigos e muito mais permanentes. Podiam desaparecer por dias, semanas ou mesmo meses. Mas sempre voltavam – como o açougueiro sujo de sangue e entranhas de porco que perambulava madrugada adentro pelas redondezas do terreno – um tipo assustador, mas inofensivo, ou o jovem com olhos vidrados que oferecia uns “bagulhos diferenciados” a hóspedes estrangeiros e nunca aparecia nos locais e horários marcados. Esses nunca iam embora.

           Mercedes não se dava ao trabalho de registrar os mortos porque, enfim, eles sempre desapareciam. Mudavam. Eles iam, vinham e a pousada seguia em frente, com seu movimento regular. Graças a eles o local sempre parecia ocupado, independentemente de estarem em alta ou baixa temporada. A morte, tida como a única certeza imutável da vida, ali era fluida como a maré. Apenas a pousada permanecia. E parecia que nada mudaria.

           Até o incidente na caixa d’agua.

           Aquilo mudou tudo.

           Vendo muito pouco adiante de si, Mercedes seguia tateando pelo corredor, sem ter uma ideia certa de onde iria chegar nem qual a real extensão do corredor. Ontem mesmo ele mal tomava vinte ou trinta passos de quem quisesse cruzá-lo. Semana passada ela havia levado quarenta minutos para chegar à recepção, partindo exatamente de onde estava agora. De todas as bizarrices que se avolumaram no local, a pior, sem dúvida, era a desorientação geográfica. No começo as mudanças foram sutis. Um vaso fora do lugar. Dois degraus a mais em uma escada. Lentamente, os funcionários começaram a se confundir. “Senhora, deveria mesmo haver três banheiros na área da piscina? ” Ou “não encontro a porta para o terraço. Não, não, a porta sumiu. É isso mesmo. A escada termina em uma parede. ” Quando uma camareira ficou perdida três dias dentro de um banheiro, Mercedes entendeu que era hora de fechar as portas. Demitiu os funcionários, pagando a cada um deles suas indenizações. Eventualmente contratava serviços terceirizados para fazer pequenos reparos, limpeza e arrumação dos quartos, uma vez por mês. Os fantasmas não reclamavam. Não pareciam incomodados com acúmulo de folhas na piscina, com as mesas nunca postas na sala de jantar ou com os frigobares desligados e vazios nos quartos. 

           As luminárias passavam por ela, uma após a outra, em uma sequência interminável. Era possível ouvir o barulho de conversas no salão de festas e a cacofonia das campainhas da recepção anunciando as chamadas de clientes direto dos quartos. Em algum momento da caminhada vigorosa, escorregou em uma mancha úmida no assoalho e quase perdeu o equilíbrio. Olhou, na vã tentativa de ver no que pisara, mas mal conseguia divisar qualquer coisa abaixo da cintura. Retirou os sapatos e avançou. O calor da noite equatorial dava lugar a uma lufada de vento frio que lentamente se assentava, por igual, em todos os espaços do corredor. Mal sinal.

           O acidente com a menina havia sido uma tragédia, mas a tentativa de consertar fora ainda pior. Os fantasmas, que vinham sempre em menor frequência que os visitantes, agora lotavam o lugar. Ficavam pelos cantos, especialmente à noite, absortos em tarefas quaisquer. A maioria, porém, ainda era inofensiva. Eram incômodos, inconvenientes e desejosos de atenção, e faziam de tudo para consegui-la, inclusive aterrorizar. Quase todos eram incapazes de ver uns aos outros e, em geral, se lançavam sobre qualquer vivo nas redondezas como se dependessem destes para seu sustento.

           Não fosse a menina afogada, ou melhor, o que restara dela, vagando próximo à escadaria para o segundo andar e pelo terraço, Mercedes já teria deixado o lugar. Não havia mais hóspedes, as dívidas se avolumavam e o patrimônio se dilapidava. Dia após dia, porém, temia pela segurança do espírito evanescente da criança e tratava de mantê-la longe dos demais e fazer-lhe companhia enquanto trabalhava em consertar as coisas.

           Mas não poderia fazê-lo por muito mais tempo.

           A tarefa, penosa, tornou-se primeiro perigosa e em seguida insustentável com a chegada da Dama. A Dama não era um fantasma como os outros. Ela não parecia perdida, desorientada e sem senso da própria mortalidade. Era perspicaz, consciente e dada a atormentar os outros hóspedes guiando-lhes à percepção da própria condição e os levando ao tormento de seguirem existindo após a revelação de que estavam mortos e presos ali. Apenas depois de exaurir as pobres almas em sofrimento ela os destruía... ou os incorporava. Mercedes não entendia o suficiente do mundo dos mortos para saber o que os acontecia depois desse processo.

           O que antes era apenas uma pousada chique e próxima à praia se tornou um labirinto de lamentos ocupado por prisioneiros que não viam sentido em sua existência exceto praguejar contra a própria sorte e se ocupar do único passatempo disponível: ferir e martirizar seus semelhantes.

           O corredor terminara em uma bifurcação – algo impossível dada a simplicidade dos acessos à recepção. Escolheu qualquer direção e avançou, apertando o passo. Olhou para trás – algo que sabia ser muito perigoso – apenas para se certificar de que, se não estava perto da recepção, ao menos estava longe da escada para o terraço. O negrume se estendia em todas as direções. A menina estaria segura.

           Virou-se apenas para dar de cara com um sujeito tropegando, apertando o peito com as mãos, que cambaleou um pouco e encostou na parede, escorregando até o chão. De soslaio ela o reconheceu: o fantasma de um barista que atendia os hóspedes se passando por gerente da pousada desde a demissão do original. Não tinha certeza do nome dele, mas reconhecia a camisa social e as costeletas.

           Mercedes ignorou o homem e seguiu em frente. Por cruel que fosse, não podia ajudá-lo, de forma que, quando muito, ele seria um obstáculo a quem viesse atrás. Os gritos, gemidos e sussurros invadiram os corredores preenchendo todos os seus sentidos. Ela conhecia aquela sensação – como se todo o sofrimento tivesse substância e a engolfasse, quase como cair em um lago gelado de murmúrios e súplicas.

           Não resistiu e olhou para trás uma segunda vez. Um erro.

           As luminárias no final do corredor infinitamente extenso se apagavam e estouravam. A s lufadas de vento gelado se tornaram uma torrente, e desfizeram seu coque elegante em uma tempestade de cabelos emaranhados.

           – Não pode me assustar, feiticeiro! – Mercedes gritou. – Precisa de mim! Precisa que eu o liberte!

           O que quer que ela pretendesse com a ameaça, não surtiu efeito: a escuridão seguia avançando como gangrena se alastrando pelas paredes. No meio do negrume quase absoluto, uma forma feminina e sensual se deslocava rapidamente em sua direção.

           Mercedes livrou-se dos sapatos de salto e correu com os pés descalços para longe dela. Ainda ouviu os gritos de agonia do homem que deixara caído para trás. Jamais havia tornado a ver um fantasma que tivesse sido absorvido pela Dama. Não fazia ideia do aconteceria a um vivo que fosse tragado pelas trevas.

           O caminho seguia se estendendo, e ela tinha noção de que a Dama não a deixaria ver a porta a menos que estivesse exausta. Este era um de seus muitos jogos – manter a esperança de escape diante de suas vítimas e vê-las se debater para alcançar só para roubá-la no último instante. Por isso, acelerou. Cambaleou e gritou. Mas guardou um pouco de energia para o momento derradeiro.

           Suas esperanças foram recompensadas – já podia ver a porta que separava a ala dos empregados do saguão da pousada. O lustre no teto da recepção brilhava através do vidro dissipando a escuridão próxima. O choro inconformado da pestilência tenebrosa já lhe sussurrava ao pé da orelha quando, em um último assomo de energia, escapou por um triz das garras geladas da Dama e se jogou através da porta, caindo estatelada contra o tapete da recepção.

           Como um aquário macabro, a névoa poeirenta de rostos torturados e sombras dançantes deslizava pela superfície do vidro sem se atrever a atravessar. Mercedes respirava ofegante e taquicárdica sob a fixidez das órbitas esbranquiçadas dos condenados.

           Havia conseguido. Por muito pouco. Aliás, por menos, muito menos que da última vez. Precisava agir imediatamente ou corria sério risco de que sua próxima visita ao terraço pudesse ser a última.

           Enquanto se acalmava, as trevas recuavam por trás do vidro e a luz das luminárias tornava a ao seu lugar. Levantou-se do chão e imediatamente sentiu os cotovelos e os joelhos esfolados da queda. A fome, suprimida pelo medo, lhe atingia como um golpe no estômago. Era madrugada – mas quando deixara o terraço apenas havia começado a escurecer. Vagueara pelo corredor por horas, sem consciência do tempo que passara.

           Decidida a não adiar a solução nem mais um minuto sequer, dirigiu-se ao balcão da recepção, abriu o livro de hóspedes vazio e leu o número que anotara em um canto na capa interna. Tirou o telefone do gancho e esperou as mãos trêmulas se acalmarem. Digitou o número e esperou.

           A voz gravada respondeu:

           – Olá. Você ligou para Dona Esmeraldina Rezadeira. Quem fala é o neto dela, Daniel. No momento, não estamos em casa. Se você quiser deixar recado, aguarde o sinal e responderemos assim que pudermos.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo