O Passado Assombra

Depois de liberar os guardas, o palácio parecia estar mais vazio que o normal, fiquei andando com Sebastian, levei-o até o corredor das artes, e sorri ao notar que dois desenhos meus estavam pendurados lá como minha mãe disse que faria. 

Fomos ao jardim, não tinha nada de surpreendente, pelo menos não pra mim… Mas já que Sebastian estava curioso, não vi motivos para negar, mostrei a ele um dos meus lugares favoritos, um pequeno balanço que estava na posição exata para o jardim de tulipas que meu pai mandou fazer quando eu nasci, as tulipas eram coloridas e parecia estar brilhando com a luz do sol, tornava tudo ainda mais bonito. 

— Tulipas são as suas favoritas? — Questionou Sebastian atraindo minha atenção 

— Que? Não… 

— Como não? Pude ouvir daqui seu coração disparando quando as viu 

— Devo chamar um médico? — Fiz uma pausa tentando conter um sorriso — Está ouvindo coisas, coitado 

— Muito engraçadinha, vai me contar a história daquele jardim?

— Meu pai mandou fazer quando nasci — Faço uma pausa e aponto uma das janelas que estavam dentro do nosso campo de visão — Aquele é meu quarto, meu pai quis garantir que eu teria uma vista um pouco mágica.

—Então foi assim que surgiu seu amor pelas flores? 

— Podemos dizer que sim

— Pra mim está óbvio que tulipas são as favoritas — reviro os olhos e acabo rindo 

— Tudo bem… elas são sim 

Passamos mais algum tempo ali até que um dos guardas nos avisou que a mesa já estava posta, o tempo estava passando muito rápido e não sei dizer se isso era bom ou ruim. Seguimos quase em total silêncio. 

Assim que entramos meus pais já estavam sentados em seus respectivos lugares, após um breve cumprimento nos sentamos também. Meu pai estava mais calado que o normal e minha mãe parecia tão perdida em seus pensamentos que talvez nem soubesse onde estava, agindo literalmente no automático. 

Imagino que toda a situação de Cox, nossos planos estejam tomando conta de suas mentes, fervendo seus sentimentos, mas esse silêncio e a tensão definitivamente não é normal.

Assim que acabamos de comer meu pai disse que estaria me aguardando no gabinete em seguida saiu sendo seguido pela minha mãe, assim que a porta se fechou olhei para Sebastian que estava tão perdido quanto eu. 

— Desculpe por isso… Eu… eu realmente não sei o que está acontecendo 

— Algum assunto sério, acredito eu. Mas não se preocupe Clari, estarei aqui caso precise. 

— Obrigada — Disse sorrindo 

— Vai logo, está inquieta — Ele faz uma pausa enquanto se levanta — Estarei te aguardando no jardim, se precisar mande me chamar 

Apenas assenti com a cabeça e seguimos juntos por um curto tempo, em seguida fui sozinha até o gabinete, estranhei a falta de guardas na porta, a mesma já estava aberta quando cheguei, me aproximei lentamente, ao ver meus pais lá dentro confesso que suspirei aliviada.

— Onde estão todos os guardas? — Falei enquanto entrava e fechava a porta — Por qual motivo a porta estava aberta? 

— Seu pai os dispensou, preferimos estar sozinhos — Minha mãe disse atraindo meu olhar 

— Sente-se Clarisse, tenho algo a lhe contar. 

Apenas confirmei com a cabeça e me sentei na poltrona de frente aos dois. 

— Clarisse, precisamos te contar uma coisa, mas antes de explicar preciso contar uma história. A muito tempo atrás eu estava noivo da atual rainha de Raqsar, Elisa, estávamos juntos a um pouco mais de seis anos —  Ele fez uma pausa tão longa que me deixou um pouco impaciente — Tudo estava saindo bem, nos casaríamos no mês seguinte, até que depois de uma das festas no palácio acabamos exagerando no vinho e dormimos juntos naquela noite.

— Não sei se estou entendendo — Na verdade eu estava começando a entender onde esse assunto chegaria, mas não quis acreditar

— Fomos descobertos, seu avô ficou extremamente bravo, disse que mancharia a reputação da família e do reino se eu me casasse com uma mulher que já não era mais pura, então ele cancelou meu casamento com Elisa. Porém para não perder o acordo que iria fortalecer nossos exércitos, ele me obrigou a casar com a filha de um grande General, Anne —  Meu pai fez outra pausa e foi a primeira vez que ele me olhou nos olhos — Sua mãe e eu mesmo insatisfeitos nos casamos no  mesmo dia.

— Usaram-nos como uma tinta para assinar um contrato qualquer — Pela primeira vez ouvi a voz de minha mãe — Estávamos insatisfeitos, infelizes, mas estava feito e não poderia ser desfeito. 

— Elisa voltou para casa — Meu pai voltou a falar — Uma desavença foi criada entre nossos reinos, mas seguimos a vida, não tínhamos opção nenhuma se não essa. Não demorou muito e seus dois avós morreram em um navio, foi quando Anne e eu assumimos o trono. Com o tempo nos tornamos amigos, um pouco mais de tempo passamos a nos amar verdadeiramente 

Meu pai faz outra pausa e olha para minha mão segurando sua mão, pela primeira vez que cheguei pude ver um sorriso em seus rostos, mas assim que voltaram seu olhar pra mim eu pude notar que toda essa história tava bem longe de acabar 

— Acho que três meses depois, recebemos uma carta de Elisa, que desesperada implorava que a recebessemos, dizia ser importante, caso de vida ou morte — Explicou minha mãe

— Avisei que ela poderia vir, para nossa surpresa Elisa chegou grávida — meu pai fez mais uma pausa e voltou a me olhar — Foi uma surpresa para todos, não sabíamos o que fazer.

— Eu já sabia de tudo que havia acontecido — Explicou minha mãe — De certa forma eu já me preparava caso isso acontecesse. Elisa era única herdeira e após os problemas com seu pai, lutava pelo direito de governar sozinha, sem ser obrigada a se casar, uma gravidez estragaria tudo e consequentemente Raqsar não teria herdeiros legítimos

— Nós demos abrigo a Elisa — Meu pai voltou a dizer enquanto segurava a mão da minha mãe — Nos propomos a ajudá-la, afinal era meu dever de pai da criança que ainda estava em seu ventre. Ela ficou conosco durante toda a gravidez, precisamos escondê-la, não seria aceito em nenhum lugar que uma rainha fosse mãe solteira, essa exposição colocaria em risco Sypro e Raqsar então ela passou a ficar mais tempo em seus aposentos, poucas pessoas tinham permissão para ter contato com ela

— Nos meses seguintes — Minha mãe disse sorrindo enquanto me olhava — Nos tornamos amigas, verdadeiramente amigas, passava os dias quase inteiros ao seu lado, e quando chegou a hora eu estava lá quando ela deu à luz a uma menininha linda que chamamos de Clarisse, por opção de Elisa— Ela completou sorrindo, nesse momento lágrimas já escorriam pelo meu rosto, nem se eu quisesse seria capaz de impedi-la— Elisa ficou encantada, mas não poderia por em risco dois reinos inteiros, por um erro de dois adolescentes, foi assim que nos três decidimos que manteríamos Elisa aqui até que ela se recuperasse e pudesse voltar a Raqsar 

— Eu…. É….. Vocês estão dizendo que fui adotada? — Minha voz já estava trêmula e saiu bem mais baixa do que eu gostaria 

— Você ficou conosco, nós já te amávamos e Elisa esteve sempre por perto enquanto você era um bebê— Meu pai afirmou fazendo uma pequena pausa em seguida— mas quando cresceu, havia uma similaridade entre vocês e por isso foi necessário o afastamento. Elisa acompanhou cada parte da sua história através de cartas.

— E por qual motivo estão me contando isso agora? — Questionei 

— Nosso plano correu bem — Meu pai continuou aparentemente ignorando minha pergunta — Elisa conseguiu o direito de governar sozinha, eu e sua mãe te amamos, foi a melhor coisa que nos aconteceu em todos esses anos. Não teria motivos para lhe contar tudo isso, em alguns anos Elisa daria um jeito de ter um novo herdeiro até que a peste assolou Raqsar.

— Elisa foi infectada? — Questionei mais uma vez e apenas minha mãe confirmou — Está viva? 

— Elisa está viva e nos enviou uma carta implorando que lhe contássemos a verdade — Minha mãe explicou e veio sentar ao meu lado — Implorou que deixássemos Raqsar ter uma chance de uma rainha, um novo reinado quando tudo isso acabasse. 

— Ela enviou uma carta para você — Meu pai explicou enquanto me passava um envelope lacrado — Estamos dando a Raqsar uma chance, mas você quem decide se quer ou não herdar Raqsar

— Por isso, pediram a presença de Sebastian? — Questionei mais uma vez enquanto analisava o envelope em minhas mãos

— É uma decisão importante, pode ser que precise de ajuda. — Minha mãe disse enquanto alisava meus cabelos

—Isso colocaria algum reino em risco? 

— Hoje não mais Clarisse — Meu pai disse sorrindo — Não se preocupe. 

—Acho que preciso de um tempo, ler essa carta, conversar com Sebastian

— Quando estiver pronta, estamos à sua espera. — Minha mãe disse sorrindo e foi até meu pai que lhe envolveu em um abraço

Assim que sai do gabinete do meu pai, sentia meu corpo pesado, parecia estar carregando uma enorme bola de pedra nas costas, pedi que um dos guardas encontrasse Sebastian no jardim e avisasse que não nos veríamos mais hoje e que eu estaria em meus aposentos por algum tempo. 

Após isso segui até meu quarto, posso dizer que foi o tempo exato até que meu corpo cedesse à pressão e desabasse, confesso que se meu quarto fosse um pouco mais longe me encontrariam caída no corredor. Assim que fechei a porta, lágrimas teimosas tomaram conta de meus olhos e me forcei a seguir até a cama onde me permiti desabar.

                                  ***

Acordo e ao olhar pela janela, o céu já assumia um tom alaranjado, volto meu olhar para a carta que ainda lacrada parecia querer me devorar, tomo coragem para sair da cama e noto algumas coisas em cima da minha mesa, ao me aproximar é impossível conter um sorriso, pego primeiro uma flor com um bilhete amarrado em seu caule

Clari, 

Fui informado que estaria em seus aposentos pelo restante do dia, caso queira conversar estou a disposição. 

Mandei que preparassem alguns biscoitos, espero que goste.

Com carinho, Sebastian. 

Em seguida peguei a lata com os biscoitos e deveria ter pelo menos três tipos ali e isso me fez sorrir mais uma vez, pela primeira vez tudo parecia estar bem mais leve. Peguei os biscoitos e a carta e resolvi sair do quarto, um ar puro com certeza me faria bem nesse momento, segui pelos corredores evitando qualquer contato visual, qualquer coisa que fosse um convite para uma conversa.

Segui o mais rápido que pude até o jardim das tulipas e com cuidado me sentei entre elas, mentalmente eu implorava para que ninguém fosse até ali, ficar sozinha é a única coisa que eu realmente desejava, meu estômago se revirou então a primeira coisa que fiz foi pegar um dos biscoitos e confesso  que estavam deliciosos.

Ao abrir o envelope de Elisa, notei que havia muito mais do que uma simples cara, tinha no mínimo umas cinco, ela contou basicamente a mesma coisa que meus pais haviam contado, mas tinham tantos detalhes que eu não sou capaz de me lembrar de tudo, porém quase era possível sentir o seu amor, carinho e admiração por mim em cada uma das cartas, alguns trechos me marcaram. 

“Clarisse hoje deu os primeiros passos, como eu queria poder ver isso! Pequena Clarisse, se algum dia ler isso, saiba que estou com o coração em pedaços por estar distante, mas completamente feliz pelos pais que lhe dei.”

“Hoje Clarisse irá conhecer seu futuro marido, espero que elas possam se tornar amigos, que se amem e não casem apenas por um contrato maldito.”

“Anne me escreveu, Clarisse está contente e animada com seu novo amigo Sebastian, meu coração se enche de alegria com isso, espero um dia poder te abraçar Clarisse.” 

“Fiquei sabendo que Clarisse agora se mudará para Sounoe, Sebastian é um belo rapaz, pelo o que conheço posso garantir que vai cuidar e amar a minha pequena Clarisse.”

“Filha, gostaria de saber se tem algum apelido, como gosta que lhe chamem? Sua comida favorita, sua cor, roupa favoritas, qual seu cheiro, gostaria tanto de um abraço seu.”

Ao final dessas cartas me dei conta que na verdade tudo se tratava de folhas arrancadas de um diário, o que só comprova a versão de meus pais que Elisa me amou, acompanhou cada um de meus passos, nesse momento eu já não lutava para conter as lágrimas, certamente seria uma batalha perdida. 

Deixo tudo de lado e me deito entre as flores e fico observando o céu, em poucos minutos pude ver as primeiras estrelas brilhando, logo a lua entrou no meu campo de visão, a brisa fria fazia com que eu me arrepiasse de frio, mas não incomodava, estar ali me parecia muito mais seguro e agradável do que estar lá dentro, de certa forma parecia que todos me julgavam, nem sequer sabiam da história eu sei, mas o sentimento pesado que eu carregava me enchia de angústia e incertezas. 

Tudo que eu sabia sobre minha história, minha família e minha vida, agora me parecia uma grande mentira, ou pelo menos parte de tudo isso parecia nunca ter existido, um infinito de incertezas parecia ter caído sobre mim. 

Elisa me amou, me acompanhou, eu podia sentir isso em suas cartas, e me sinto culpada por não ter um mínimo de sentimentos por ela, eu poderia negar Raqsar? Ou seria essa a única coisa que eu poderia fazer para retribuir tanto amor reprimido e um abraço que não sei se terei a chance de dar...

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