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"Desejo o teu incêndio queimando a minha alma" (Maria Teresa Horta)

Já havia um tempo que Martim não era mais um garoto. Tinha crescido no físico, e, à força, tinha amadurecido em sua postura, mas, naquele momento, estava se sentindo como um garoto. Pensava isso, pois sabia que os sentimentos que nutria por Elsa eram sentimentos errados. Ele sabia bem disso... E era o fato de reconhecer o erro que fazia com que ele se sentisse mal diante de toda aquela situação.

“A ignorância é, realmente, uma bênção”, foi o que ele pensou quando olhou para Elsa. A jovem era filha de um dos seus melhores amigos. Muito mais do que isso, Elsa era filha de um dos homens mais íntegros que conhecera. No entanto, nada de tudo isso fazia com que a vontade de querer estar ali, perto dela, ouvindo-a falar sobre o que quer que fosse diminuísse...  Ele sorriu encantado pela jovem, que estava no mundo das nuvens, deitada realizando uma leitura.

A verdade é que Martim afastava de si a culpa pelos seus sentimentos. Quando percebia que o seu coração estava a bater mais forte ao ver Elsa sorrindo, ele culpava Leôncio. Sim, Leôncio; afinal, era por culpa dos atrasos do amigo que ele gastava o tempo em companhia de Elsa – ora na sala de visitas do casarão Cortês, ora acompanhando-a em suas caminhadas pelos jardins. Foi assim que Martim confirmou o quão graciosa era a jovem - além de ser inteligente, divertida, espirituosa, falante e dona da fantástica habilidade de fazê-lo se sentir

estranhamente vivo.

- Estranhamente vivo.

Martim sussurrou para si enquanto mudava o foco do olhar para admirar o rio que corria à sua frente. Quando percebeu que o pensamento tinha se transformado em palavras, o homem sacudiu a cabeça em sinal negativo - como se despertasse de um sonho - e pediu a Deus que ninguém o tivesse escutado. No entanto, percebeu que, ainda deitada, Elsa o olhava com curiosidade – ele sabia que ela tinha escutado. Por sorte, a jovem apenas ficou em silêncio, mas não tardou a enfiar a cara no livro que segurava. Martim suspirou aliviado e agradecido por isso, afinal as caminhadas fizeram com que ele descobrisse que Elsa também poderia ser bem insistente quando queria.

Na verdade, o incômodo que a sua expressão lhe gerava é porque ele sabia que seria estranho - até mesmo para Elsa - saber que ele não era o homem feliz que todos pensavam. Sabia que a sua mania de sempre estar sorrindo fazia com que todos pensassem o contrário, mas, a verdade era que, desde que se casara com Patrícia, Martim não sabia o que era estar verdadeiramente vivo. O comportamento silencioso de sua esposa era uma constante e, quando ela falava, não parecia estar aberta a um diálogo – eram coisas mínimas.

Apesar de ser um homem experiente, foi no casamento que aprendeu sobre a dureza que o silêncio carrega; foi lá que descobriu o que era viver em uma guerra sem qualquer ataque; mas, acima de tudo, foi no casamento que Martim descobriu o que é ser um perdedor – o silêncio que vinha de Patrícia o esmagava e sugava o que quer que houvesse de vivo dentro dele. Por isso, em nome da sobrevivência da sua alma – ou do que restara dela – ele preferia passar boa parte do tempo fora da casa em que conviviam; agora, em especial, em qualquer lugar em que Elsa estivesse, já que a presença dela o fazia lembrar que a vida ainda existia em cores.

- Parece que o senhor Marquês não ouviu absolutamente nada do que você disse, querido. - Ester falou num tom debochado. Martim olhou-a, depois olhou para Cortês, piscou algumas vezes e sorriu sem saber o que dizer, afinal ela estava certa: ele não tinha ouvido sequer uma palavra do que o amigo falara. – Com certeza tinha assuntos mais interessantes para pensar do que suas aventuras de caçador nessa região... - ela pausou e, depois, sussurrou no ouvido do marido: - Ou você está perdendo o encanto, meu querido. - a mulher abanou o leque sem olhar para o marido com um sorriso de satisfação e um ar de vitoriosa.

- Senhora Cortês... - Martim disse em meio àquele sorriso que tinha força para derreter qualquer mulher. No momento, percebeu que Elsa segurava, com firmeza, o riso enquanto fingia estar concentrada na leitura de poesias. – Vejo que a senhora está tentando acabar com a amizade que tenho com o seu marido.

- Não se preocupe, Martim... Não se preocupe... - Leôncio disse entrando na conversa - Ester está com ciúmes! - ele exclamou batendo na barriga e sorrindo com satisfação. Era bom saber que, mesmo com as diferenças entre ele e Ester, e mesmo depois de tanto tempo, a mulher ainda sentia a necessidade da presença dele. – Na outra noite, ela me falou que gasto mais tempo com você do que com ela!

- Ora, mas, é a mais pura verdade, senhores... - Ester disse forçando um tom de indignação.

- Sou forçada a concordar com mamãe.

Elsa se manifestou sem tirar os olhos dos poemas. Ester arqueou as sobrancelhas e assentiu com a cabeça se sentindo uma vitoriosa, afinal até Elsa - que tanto amava o pai e sempre estava ao lado dele - concordava com ela.

- Obrigada, Elsa. - ela disse com doçura e voltou a encarar os senhores: – Como veem: se até a Elsa concorda comigo, eu não posso estar errada.

- Ora, senhoras, ora... - o Marquês sorriu ainda mais - Eu sou forçado a discordar de vocês. Eu jamais ousaria querer afastar o meu amigo do seu lar que ele tanto ama e, com  todo o respeito, pelo que conheço dele, tenho certeza que, se eu tentasse, minhas investidas seriam vãs.

Ester gargalhou alto ao escutar o Marquês, pois sabia que aquela era a mais pura verdade. Leôncio era dotado de uma espécie de espírito caseiro que jamais permitiria que ele afastasse do seu lar – era mais fácil que ela fizesse isso do que ele. Na cena, Martim percebeu que Elsa tirou os olhos do livro para observar a mãe gargalhando. Ele admirou os olhos castanho-claros da jovem admirando a elegante senhora e percebeu que eles estavam cheios de amor. Amor. Martim ficou admirado, afinal, mesmo com toda a rispidez que Ester tratava Elsa, a filha a amava e, de alguma forma, admirava quem ela era.

- A maior prova disso... - Martim continuou, tentando evitar que se perdesse na miragem de Elsa e dos seus encantos – É que aqui estou eu, em um piquenique com vocês, sendo que ele nunca foi na minha casa! Nunca foi visitar o Palacete! - ele disse como se estivesse machucado - Um verdadeiro disparate!

- Colocou um bom ponto na conversa, caro Marquês! - Ester exclamou intrigada, erguendo o corpo - Por que a senhora Marquesa não veio com o senhor?

Ester intensificou o tom de curiosidade em sua pergunta. Na verdade, ela queria saber porque a Marquesa nunca o acompanhava, mas ela achou que seria muito invasivo - apesar de a proximidade que ele tinha com sua família. Martim engoliu seco ao se dar conta de que ele mesmo tinha se colocado naquela situação. Notou que até mesmo Elsa ergueu os olhos para ele, curiosa, aguardando uma resposta e ele sentiu um arrepio percorrer a sua espinha. “Por que?”, Martim também se perguntou, não por não saber a resposta, mas, por tentar buscar algo que fosse socialmente compreensível e aceitável.

A verdade era que, de forma alguma, ele não queria a sua esposa envolvida no único espaço da sua vida que era colorido. Num suspiro, olhou para Elsa, que estava sendo arrastada, por Francisca, para a beira do rio. Martim sorriu acompanhando a cena com os olhos, e alargou o sorriso ao constatar que a jovem era um receptáculo da deusa Vida. No entanto, se pegou despertado pelo sentimento de que já havia se demorado muito em responder a pergunta que tinha sido feita; por isso, voltou-se para o casal Cortês:

- A Patrícia não gosta muito de atividades ao ar livre. - foi o que conseguiu pensar no último instante.

- Mais um motivo para nos apresentar o mais rápido possível! - Ester exclamou batendo palmas e quase dando um salto - Poderíamos fazer compras, ir ao alfaiate ou tomar chá enquanto vocês se divertem... Com os mosquitos.

-  Não seja rude, Ester! - Leôncio a reprimiu sabendo que era inútil aquele tom. A esposa nunca tinha sido do tipo domável.

- Desde quando ser sincera é ser rude?! - ela questionou com notável irritação pelo tom que o marido utilizava – O senhor se incomoda, Marquês, com o fato de eu odiar estar ao ar livre? - ela perguntou e, sem esperar a resposta de Martim, acrescentou: - Eu odeio o ar livre! Só venho porque Leôncio acha que essas bobagens são importantes para as meninas. - Martim abriu a boca para dizer que concordava com o amigo, mas, Ester se antecipou enquanto revirava os olhos: - Eu sei, eu sei que o senhor vai dizer que concorda com ele, não à toa vocês são amigos! Mas, é uma questão pessoal.

Martim alargou o sorriso diante da previsão da mulher, e, no meio do riso, disse:

- Não poderia concordar mais com a sua colocação, senhora Cortês.

- Parece que, finalmente, concordamos em algo, senhor Marquês.

Ester sorriu, tornando a movimentar o leque em uma dança com o vento. A senhora Cortês não era uma mulher fácil! Martim observou-a por alguns instantes e tentou identificar o que Elsa tanto admirava na mãe. Ester Cortês era, de fato, uma boa mulher, mas, era uma mulher tão boa quanto qualquer outra senhora da alta sociedade de Novesperança ou de qualquer outro lugar; daquelas que sempre buscava se manter no status, frequentando os melhores bailes, lutando pelos melhores casamentos e demonstrando a sua caridade doando dinheiro à Igreja aos domingos.

Martim voltou seus olhos ao rio, onde Elsa estava com Francisca, e sorriu vendo que podia enxergar a luz que saía da alma de Elsa; e ele pôde se sentir dominado por aquela luz, mas, ao mesmo tempo, sentiu que o seu coração se apertou, como se alguém o espremesse, e ele percebeu que aquilo era...“Arrependimento?” Martim estava arrependido? A questão era que, mesmo com todo o silêncio que emanava da sua esposa, Martim nunca soube ao certo o que sentia por ela, afinal achava Patrícia - mesmo de boca fechada – encantadora.

No entanto, naquele momento, ele parecia estar arrependido de ter casado com ela. Por Deus... Como era possível que a vida mudasse de tal forma em tão pouco tempo? Se ele tivesse conhecido Leôncio antes, se tivesse frequentado os mesmos bailes que Elsa ou se... Se não precisasse tanto do dote que vinha com o casamento com Patrícia, ele estaria, agora, vivendo uma vida de alegrias. Suspirou e, pela primeira vez em muito tempo, quis chorar.

De repente, ele se deu conta de que o que sentia por Elsa fazia com que ele relembrasse o lado bom da vida, mas também fazia com que se sentisse amargurado por suas escolhas - ele acompanhava, mas ela achou que seria muito invasivo - apesar de a proximidade que ele tinha com sua família. Martim engoliu seco ao se dar conta de que ele mesmo tinha se colocado naquela situação. Notou que até mesmo Elsa ergueu os olhos para ele, curiosa, aguardando uma resposta e ele sentiu um arrepio percorrer a sua espinha. “Por que?”, Martim também se perguntou, não por não saber a resposta, mas, por tentar buscar algo que fosse socialmente compreensível e aceitável.

A verdade era que, de forma alguma, ele não queria a sua esposa envolvida no único espaço da sua vida que era colorido. Num suspiro, olhou para Elsa, que estava sendo arrastada, por Francisca, para a beira do rio. Martim sorriu acompanhando a cena com os olhos, e alargou o sorriso ao constatar que a jovem era um receptáculo da deusa Vida. No entanto, se pegou despertado pelo sentimento de que já havia se demorado muito em responder a pergunta que tinha sido feita; por isso, voltou-se para o casal Cortês:

- A Patrícia não gosta muito de atividades ao ar livre. - foi o que conseguiu pensar no último instante.

- Mais um motivo para nos apresentar o mais rápido possível! - Ester exclamou batendo palmas e quase dando um salto - Poderíamos fazer compras, ir ao alfaiate ou tomar chá enquanto vocês se divertem... Com os mosquitos.

- Não seja rude, Ester! - Leôncio a reprimiu sabendo que era inútil aquele tom. A esposa nunca tinha sido do tipo domável.

- Desde quando ser sincera é ser rude?! - ela questionou com notável irritação pelo tom que o marido utilizava – O senhor se incomoda, Marquês, com o fato de eu odiar estar ao ar livre? - ela perguntou e, sem esperar a resposta de Martim, acrescentou: - Eu odeio o ar livre! Só venho porque Leôncio acha que essas bobagens são importantes para as meninas. - Martim abriu a boca para dizer que concordava com o amigo, mas, Ester se antecipou enquanto revirava os olhos: - Eu sei, eu sei que o senhor vai dizer que concorda com ele, não à toa vocês são amigos! Mas, é uma questão pessoal.

Martim alargou o sorriso diante da previsão da mulher, e, no meio do riso, disse:

- Não poderia concordar mais com a sua colocação, senhora Cortês.

- Parece que, finalmente, concordamos em algo, senhor Marquês.

Ester sorriu, tornando a movimentar o leque em uma dança com o vento. A senhora Cortês não era uma mulher fácil! Martim observou-a por alguns instantes e tentou identificar o que Elsa tanto admirava na mãe. Ester Cortês era, de fato, uma boa mulher, mas, era uma mulher tão boa quanto qualquer outra senhora da alta sociedade de Novesperançao ou de qualquer outro lugar; daquelas que sempre buscava se manter no status, frequentando os melhores bailes, lutando pelos melhores casamentos e demonstrando a sua caridade doando dinheiro à Igreja aos domingos.

Martim voltou seus olhos ao rio, onde Elsa estava com Francisca, e sorriu vendo que podia enxergar a luz que saía da alma de Elsa; e ele pôde se sentir dominado por aquela luz, mas, ao mesmo tempo, sentiu que o seu coração se apertou, como se alguém o espremesse, e ele percebeu que aquilo era... “Arrependimento?” Martim estava arrependido? A questão era que, mesmo com todo o silêncio que emanava da sua esposa, Martim nunca soube ao certo o que sentia por ela, afinal achava Patrícia - mesmo de boca fechada – encantadora.

No entanto, naquele momento, ele parecia estar arrependido de ter casado com ela. Por Deus... Como era possível que a vida mudasse de tal forma em tão pouco tempo? Se ele tivesse conhecido Leôncio antes, se tivesse frequentado os mesmos bailes que Elsa ou se... Se não precisasse tanto do dote que vinha com o casamento com Patrícia, ele estaria, agora,vivendo uma vida de alegrias. Suspirou e, pela primeira vez em muito tempo, quis chorar.

De repente, ele se deu conta de que o que sentia por Elsa fazia com que ele relembrasse o lado bom da vida, mas também fazia com que se sentisse amargurado por suas escolhas - ele não podia mais ficar ali! Não se permitiria sentir aquilo! Levantou-se e deixou que as palavras saíssem voluntariamente dos seus lábios, inventando uma história qualquer.

- Meu amigo Cortês. - ele sorriu para ser simpático, mas, também, para tentar evitar qualquer lágrima que ousasse querer escorrer pelos seus olhos por todo aquele turbilhão de sentimentos que carregava – Lembrei-me que tenho um compromisso inadiável em poucos minutos, e não poderei mais ficar entre vocês. Foi uma maravilha desfrutar essa tarde que tivemos juntos.

- Oh, que lástima, meu amigo! - Leôncio falou com sincero pesar apertando a mão de Martim - Ainda queria tentar pescar.

- Realmente, uma lástima, Marquês! Adoraríamos ter a sua companhia por mais um temp...

Ester estava prestes a complementar o sentimento do marido quando ouviram a voz de Elsa ressoar num grito. Não era um grito de medo ou de preocupação - era um grito de ódio. Em um único ato, todos olharam para o rio e viram o que tinha acabado de acontecer: Francisca, em sua ingenuidade pueril, tinha jogado lama nos cabelos da irmã que, agora, praticamente avançava para cima da mais jovem numa tentativa de, de alguma maneira irracional, se vingar.

Ester e Martim mal conseguiram ver quando Leôncio levantou e correu para tentar pôr ordem entre as duas – mesmo sabendo do nível de dificuldade que a tarefa exigia. Ester, por outro lado, permaneceu sentada abanando o leque.

- O senhor não tem filhos, não é? - ela perguntou sem olhar para Martim, que apenas meneou a cabeça em sinal negativo enquanto observava o amigo segurar Francisca com um braço e, com o outro, tentar manter Elsa longe da irmã. – Bem, quando tiver, vai ver que o que os filhos nos dão de maravilhas, nos dão de problemas. - na fala, ela o olhou e sorriu. Depois, sem ter a atenção de Martim, pausou e voltou os olhos para o rio. – Por sorte, Leôncio é meu marido. - Martim, finalmente, olhou-a, admirado por ouvir uma declaração como aquela saindo dos lábios dela. Viu que Ester tinha nos olhos uma doçura que ele nunca tinha visto antes - Ele consegue ajeitar tudo. Sempre foi bom nisso! Leva mais jeito com as meninas do que eu...

- Martim! - Leôncio gritou e a voz dele ecoou – Você se importaria de acompanhar Elsa até o casarão para que ela possa tomar um banho e não cometer um fratricídio?

Martim olhou para Elsa, que estava encolhida ao lado do pai, que segurava o seu braço. A jovem mantinha os olhos presos à água do rio e tinha o rosto sujo de lama, ele percebeu que o corpo dela estava tremendo. Martim soltou um riso que, por sorte, todos ali pensaram que era da fala de Leôncio, pois, o riso de Martim foi acompanhado por outros risos, mas a verdade é que o Marquês não poderia imaginar uma brincadeira maior vindo do destino: ele estava ali prestes a fugir de seus sentimentos de Elsa e, agora, teria que escoltá-la até o casarão. Deus estava brincando com ele – ele tinha certeza!

- Problema algum, meu amigo! Problema algum...

Acompanhado dos agradecimentos de Leôncio e de alguns protestos de Ester – afinal, não era correto deixar uma dama ser acompanhada por um cavalheiro que não fosse da família -, Elsa se encaminhou até o local onde antes estava e pegou o livro. Sem se importar com a presença do Marquês, ela saiu marchando na frente, emburrada e com o livro apertado contra o peito - imaginando que aquele poderia ser o pescoço de Francisca. Martim entendia o sentimento da jovem, afinal já tinha sido alvo desse mesmo sentimento por sua irmã tantas vezes antes; por isso, ele respeitou o momento e os dois caminharam em silêncio por meio das árvores.

Era impossível para o Marquês não perceber que aquele silêncio era diferente do que ele tinha com Patrícia – ele não se sentia sem alma -, no entanto, era estranho ver Elsa sem ter uma pergunta ou um comentário. Ainda assim, pela primeira vez depois de muito tempo, estar em silêncio foi confortante para Martim.

- “Estranhamente vivo.” - Elsa disse. Estava irritada com Francisca e sabia que não estava um poço de elegância para se dirigir ao Marquês, mas ficar em silêncio não era a sua especialidade. Ela olhou para o Marquês, mesmo sabendo que a lama que escorria do seu cabelo pelo rosto não a deixava nada atraente, mas, mais cedo, quando ouvira aquela expressão sendo sussurrada como um segredo, ela ficou intrigada. - Você falou isso mais cedo. - ela acrescentou para relembrá-lo, mesmo sabendo que não era necessário. Martim não a olhou. Sabia o que tinha dito. - Porque?

- Elsa... - ele riu e coçou o cabelo. Estava nervoso com aquela situação. Pensou que preferia o silêncio a tocar naquele assunto.– Você tem cada pergunta... - ele esperava que aquilo fosse o suficiente para freá-la.

- “Estranhamente vivo.” - Elsa repetiu e, olhando para o horizonte, continuou: - Como uma pessoa pode se sentir estranhamente viva? - era aquele tom de curiosidade e de empolgação pelo desconhecido que fazia com que Martim se encantasse cada vez mais.

- Quando a vida já não faz mais sentido para uma pessoa e essa pessoa encontra um alguém que a faz se lembrar de como é estar vivo, e, quando ela se lembra, há uma aura de estranheza na sensação . - ele respondeu sem pensar, contagiado pelo espírito falante de Elsa, que o olhou enquanto falava – Por isso, essa pessoa se sente estranhamente viva.

Elsa ficou em silêncio por alguns instantes, refletindo sobre a colocação do homem. Era, de fato, um pensamento muito profundo, mas, apenas uma coisa a intrigava:

- Você se sente estranhamente vivo?

De súbito, o homem parou de caminhar. Não esperava que Elsa fizesse aquela pergunta - na verdade, ele nem esperava estar ali com ela. Elsa parou junto com o Marquês e o encarou por alguns instantes, na espera de uma resposta. Por um instante, imaginou que tivesse dito algo errado, afinal era sempre assim... Ela sempre dizia ou fazia algo errado. Nervosa, ela passou uma mecha do seu cabelo para trás e percebeu como o cabelo estava duro feito pedra. Martim ergueu os olhos para ela e a viu lutar contra a mecha endurecida, o que fez com que tivesse vontade de sorrir – ela ficava linda mesmo coberta de lama.

O vento tocava a pele dela, que estava misturada com a lama do rio, e bagunçava os fios dos seus cabelos que não tinham sido domados pela dureza da lama, e Martim teve inveja do vento. A verdade é que Martim nunca foi bom resistindo a uma bela mulher, e ele já tinha resistindo por muito tempo àquela. Se sentindo fraco, ele se aproximou de Elsa, que, ao tê-lo tão próximo de si, sentiu o seu coração pular do peito.

Ela sabia que deveria fugir, sabia que não deveria ficar ali com o Marquês, mas, ela não conseguiu se mover nem mesmo um milímetro, e a verdade é que ela não queria, afinal o homem estava tão próximo que ela pôde sentir o cheiro dele – cheiro de fruta colhida no pé –, o que fez com que ela fechasseos olhos tentando salvar aquele cheiro em sua memória.

Ainda estava com os olhos fechados quando sentiu os dedos dele passarem por entre os seus cabelos, desmanchando o que restava do seu coque. Aquele era o último aviso que ela tinha de fugir, mas as suas pernas estavam fixas ali e a a sua vontade não era de ir, mas de ficar – por isso, foi o que ela fez. Martim deu alguns passos para trás e admirou-a com os cabelos soltos.

- Eu sempre quis te ver assim. - ele pausou e olhou para Elsa, com os olhos cheios de paixão. A jovem se sentiu zonza com aquela declaração e, também, com aquele olhar, o que fez com que o livro que segurava com firmeza, fosse parar ao chão. – Seus cabelos são mais bonitos do que eu imaginei.

Ele confessou com uma dose de admiração e, por um instante, Elsa achou que estivesse presa a um sonho. Queria se beliscar para ter certeza, mas, acreditou que tudo aquilo era real quando Martim tirou um lenço de um dos bolsos que compunha o fraque preto que usava e, de maneira dócil, o passou pelo seu rosto, limpando a lama que estava por ali.

- Me avise se machucar.

Ela apenas meneou a cabeça em sinal positivo e deixou que o homem tocasse seu rosto com uma delicadeza que ela nunca imaginou que ele teria. O que a sua mãe diria se ela se casasse com um Marquês? Ela sorriu pensando, mas sobreveio uma outra pergunta: O que a sua mãe pensaria se a visse com o Marquês? Ela sabia que precisava fugir dali, mas o lenço que Martim usava tinha um toque sedoso, e ela tinha a sensação de que o cheiro dele estava ficando impregnado em sua sua pele. Porque ela fugiria? Passaram alguns minutos, até que Martim se afastou e a encarou mais uma vez.

Elsa tinha o coração fora do peito, afinal nunca em toda a sua vida tinha vivido um momento. Nunca, nem um homem, ousou olhá-la daquela maneira. E nunca, em toda a sua vida, o seu corpo reagira daquela forma.

- Você não me respondeu. - ela disse com a voz trêmula, mas continuou, tentando simular que não estava nervosa. – Você se sente estranhamente vivo?

O Marquês era um homem vivido e Elsa não era uma boa atriz. Ele riu da tentativa dela em passar um ar mais firme, mas, ainda assim, achava louvável e encantador a tentativa – como tudo nela era. O homem voltou a se aproximar cada vez mais e mais e mais... Ele tocou os cabelos castanhos, sujos de lama, e sorriu ao sentir seus dedos também sujos; depois, olhou-a nos olhos.

- Sim, senhorita Cortês. - ele respondeu num sussurro que saía em meio ao seu sorriso – E esse é o nosso segredo: eu me sinto estranhamente vivo quando estou perto da senhorita. Quando a escuto falar sobre qualquer assunto, quando escuto a sua risada que parece uma sinfonia de tão bela, senhorita... Mas, eu nunca me senti tão estranhamente vivo quanto estou me sentido agora, ouvindo a sua respiração ofegante por termos os nossos corpos tão próximos. - ele segurou o queixo dela e olhou dentro dos seus olhos castanhos para ler a sua alma, e viu que ela a desejava tanto quanto ele. – Me desculpe por isso, Elsa.

De súbito, o Marquês agarrou-a pela cintura e beijou-a sentindo o hálito doce dela e o gosto de inocência que os lábios dela tinham. As suas mãos seguraram o rosto da mulher, ele não queria deixá-la escapar dos seus braços, e sabia que ela também não queria escapar dos braços dele já que ele sentiu quando as mãos dela se cruzaram em volta do seu pescoço e, ali, fizeram morada. Quando Martim afastou seus lábios dos dela, ouviu-a arfar.

- Me desculpe.

Martim repetiu, sem esconder que se sentia culpado, afinal sabia que não deveria ter beijado Elsa, pois ela era uma moça solteira e era de uma boa família, mas ele era casado. Além disso, ela era a filha de um dos melhores homens que ele conhecera, e aquele pequeno deslize poderia macular a reputação dela para sempre. Quando ele conseguiu reunir coragem e forças para olhá-la nos olhos viu que ela ainda não compreendia o que estava acontecendo e que o desejo ainda fazia morada ali.

O corpo de Martim tremeu com aquela constatação e, por um segundo, ele chegou a pensar em argumentos para evitar que o beijo se repetisse, mas, tudo foi em vão quando a própria Elsa puxou-o para si e o beijou. Isso mudava tudo. Martim sentiu, na carne, o desejo que sentia por aquela mulher se intensificar. Ele sabia que precisava tê-la para si! Quando se deu conta, seus lábios estavam percorrendo o pescoço dela – que tinha cheiro de terra, mas, também de essência de lavanda –, depois, suas mãos firmes apertaram o corpo dela contra o dele. Elsa soltou um longo suspiro quando sentiu seus seios fartos contra o tórax de Martim. Então, era aquilo que o amor fazia com os corpos humanos... Martim gemeu ao ouvi-la suspirar, afinal aquele som parecia um pedido de Elsa, um pedido para que ele ficasse.

- Elsa, Elsa... - ele falava o nome dela enquanto arfava de desejo. Todo o seu corpo a desejava como nunca desejou alguém antes e, então, ele parou. - Elsa... - a sua voz já não era de desejo. Era de culpa. - Não... - ele afastou-a - Não podemos.

Elsa se afastou dele. Primeiro, desapontada e confusa; mas, depois, como Eva no Paraíso ao perceber o que significava provar do fruto proibido, Elsa entendeu: Martim estava certo. Eles não podiam fazer aquilo.

- Me desculpe.

Foi a única coisa que ela conseguiu dizer se sentindo completamente constrangida com a situação na qual estava. Martim assentiu. Na verdade, não havia o que desculpar, já que a culpa de tudo aquilo tinha sido dele – ele assumiu. A culpa tinha sido apenas dele. Antes de prosseguir a caminhada até o casarão, eles se entreolharam. Estavam se esforçando para manter a normalidade, mas, a verdade é que ainda havia algo ali - uma pequena faísca que poderia se transformar em um incêndio.

Eles ficaram em silêncio por já não saberem o que fazer, deixando Martim com uma sensação de estranheza, e Elsa com uma sensação de angústia - ela odiava o silêncio! Por sorte, o silêncio  as inquietações serviram de combustível para que eles apressassem o passo e chegassem ao casarão com brevidade.

De maneira educada, por meio de uma mesura, Elsa agradeceu à Martim pela cortesia de acompanhá-la até ali. Estava prestes a entrar no casarão quando a voz rouca de Martim chamou o seu nome. Ela o olhou com atenção enquanto o homem se aproximava. O Marquês achou melhor estar perto, pois, sabia que o que iria falar não poderia chegar aos ouvidos das paredes:

- Senhorita... - ele disse com certa dor – Sei que foi tudo muito estranho e que tudo aconteceu da maneira errada, mas, mesmo sabendo disso, eu não me arrependo... - ele olhou para os lados para ver se alguém os observava, então, continuou: – Não me arrependo dos nossos beijos. - ele falou num sussurro e desejou beijá-la. Estava disposto a carregar o peso da culpa. Percebendo que Elsa não falaria nada, ele continuou: – A senhorita... Você, Elsa... - ele se corrigiu – Faz com que eu me sinta estranhamente vivo, e aquilo... - ele apontou na direção que tinham vindo – Aquilo me fez lembrar do que é, de fato, a vida. - ele sorriu. Elsa, por conseguinte, sorriu. Era inevitável não se contagiar com o sorriso de Martim. – Só não queria que acontecesse porque agora... Agora, mesmo sabendo que é errado... - ele apanhou a mão dela e beijou-a, com um sorriso nos lábios – Eu sempre vou querer mais, e eu espero que Deus me perdoe por isso.

A mulher não tinha a menor ideia de que resposta deveria dar, mas, pela primeira vez na vida, ela sabia que estaria tudo bem se não dissesse nada, então, ela apenas sorriu, levando a mão que Martim beijou ao seu coração. Sorriu porque estava apaixonada e porque era correspondida, mas, principalmente, sorriu porque ela queria mais daquilo, e esperava que Deus também a perdoasse, pois, sabia que aquilo era um pecado.

Novamente, Martim apanhou a mão dela e beijou-a, para guardar o delicioso cheiro que ela trazia na pele; ao soltá-la, acariciou a mão de Elsa de forma discreta, pensando em como era bom sentir a sua pele, mesmo que coberta de lama. Depois de acenar a cabeça, Martim deu as costas e foi embora do casarão.

Segurando a mão contra o coração, Elsa o assistiu partir cheia de alegria. Ao lembrar do beijo -ou melhor, dos beijos - ela sorriu. Sentiu o seu coração acelerar e fechou os olhos tentando acalmá-lo - não queria que o seu rubor denunciasse o seu pecado -, mas, ela não conseguiu: a sua mente revivia aquele momento e o seu corpo se incendiava. Ela abriu os olhos e mordeu o lábio inferior cheia de desejo; achou curioso que, mesmo sem a presença física de Martim, ela ainda se sentia daquela forma: flamejante. Ela precisava sentir aquele beijo novamente, e ela iria. Elsa suspirou e, com um sorriso bobo, concluiu: tudo aquilo é o que significava estar apaixonada. Agora ela entendia o que narravam os livros: amar era algo delicioso, mas, era, também, avassalador.

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