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"meu amor inventado, ainda assim tanto demoras"  (Valter Hugo Mãe)

O Marquês das Flores entrou na sala principal do casarão da família Cortês acompanhado por um dos criados – o que ele considerava desnecessário, afinal já conhecia a casa dos Cortês como conhecia sua própria casa. Na verdade, se arriscava a dizer que conhecia a casa dos Cortês mais do que a sua própria casa.

Ao alcançar o sofá verde musgo, o Marquês sorriu com simpatia para o homem que o conduzia em sinal de agradecimento, e sentou no móvel de uma forma desleixada sem quaisquer modos que remetesse ao título que possuía... Era assim que era desde sempre.

No entanto, foi o seu característico jeito desleixado que - apesar da fama que o cercava desde a sua juventude - o fazia ser, em alguma medida, querido pelas pessoas. O seu carisma era tamanho que era inevitável que as pessoas não se sentissem atraídas; atraiu, inclusive, a atenção de Elsa, uma das filhas do seu amigo, Leôncio Cortês.

Como em todas as vezes em que o Marquês estivera ali, Elsa observava, sem piscar, todos os seus passos. Viu o exato momento em que uma criada o servia com o licor de café, produzido com os grãos de uma das plantações da sua família e feito pela cozinheira do casarão – que o homem adorava.

Era um verdadeiro deleite para a jovem assistir aquela cena, afinal ela conseguia ver as gotas de suor que escorriam pela testa do Marquês, via também a forma com que ele passava os cabelos para trás tentando evitar aquele reflexo o calor – clima tão natural da região! -, mas, sua coisa favorita de ver era a maneira com que a testa dele franzia enquanto saboreava a bebida e como ele sorria... Sim, como ele sorria quando dizia como aquela bebida era fabulosa!

Elsa não conseguiu evitar de sorrir junto com ele, e percebeu que não se cansada de admirá-lo! Mas, também pudera... Não se culpava, afinal nunca imaginou, em toda a sua vida, que pudesse conhecer um Marquês, e a nobreza sempre tinha esse efeito sobre os reles mortais: os de fazê-los sonhar!

E Elsa Cortês, que já tinha por natureza um estado onírico, se via agora completamente perdida em seus pensamentos e em seus desejos secretos. A sua imaginação fluía de forma tão livre que, quando se deu conta, o livro que segurava escorregou por suas mãos e foi parar no piso amadeirado. Bum! O impacto foi tamanho que chamou a atenção de todos que estavam ali.

– Elsa...! - a sua mãe a repreendeu logo após espetar o dedo na agulha que usava para bordar as toalhas que doaria para a Igreja ainda aquele mês – Você precisa ser mais atenta!

O coração de Elsa saltou do peito ao ouvir o tom de voz da mãe, e os seus grandes olhos castanho-claros ficaram maiores do que já eram, evidenciando o seu temor filial. E, por esse motivo, somado ao fato de que sabia que a mãe odiava a inércia humana, Elsa engoliu seco e, logo após, reagiu balbuciando o seu popular “me desculpe”.

– Você está bem, senhorita Cortês?

A voz do Marquês ecoou com preocupação e com um certo grau de doçura, enquanto ele se apressava em caminhar na direção das mulheres para apanhar o livro que ainda estava no chão. Ao apanhar, o homem olhou a capa do livro e sorriu; depois, o entregou a Elsa, que permanecia em silêncio e com os olhos baixos, mas, dessa vez, sorrindo.

- Elsa...! - a mãe a repreendeu mais uma vez, com fervor na voz. Tinha obtido sucesso na educação de suas outras filha, mas Elsa parecia nunca se recordar de tudo o que ela ensinara. Sentia-se uma incompetente quando se tratava da educação daquela sua filha. Ela reforçou: – O Marquês das Flores lhe fez uma pergunta!

- M-me desculpe... - ela se apressou em dizer, mas, as palavras tropeçaram por sua língua, e uma mecha que não estava bem segura em sua trança se soltou pelo seu rosto. Reunindo alguma coragem para encarar o Marquês, ela ergueu os olhos e disse: – Eu estou bem! Muito bem, Marquês! Obrigada por perguntar!

Só depois que a repostas saiu de sua boca foi que Elsa percebeu que tinha sido demasiadamente animada em sua fala. A verdade é que os comandos que vinham da mãe sempre a atormentavam, e ela ficava desnorteada quando tinha que medir qual era a medida correta para a reação que esperavam dela.

Envergonhada, ela engoliu seco e o sorriso que carregava nos lábios foi minguando como uma lua no céu que se esconde por detrás das nuvens. Ao perceber que o Marquês segurava o riso nos lábios, o sentimento piorou - por um instante, ela se sentisse tola, ridícula... Se pudesse, morreria ali mesmo!

Mas, logo depois, ela se sentiu pior: sentiu-se julgada, pois sabia, mesmo sem olhar para a mãe, que ela a observava com aquele olhar feroz de estranheza, como se fosse Elsa uma espécie rara da natureza.

Ester, a bem-quista senhora Cortês, tinha sido uma das maiores referência em beleza, elegância e de comportamento; não à toa foi disputada por muitos, mas apenas Leôncio Cortês levou o seu coração e o seu dote, afinal junto com ele vinha uma vida boa e de prestígio. Por isso, e também por todo o seu jogo de cintura social, ela ocupava local de destaque entre as senhoras da cidade de Novesperança.

Neste aspecto em especial, Elsa sentia-se distante da mãe, afinal ela nunca fora referência nem beleza nem em comportamentos adequados na comunidade em que estava inserida. Na verdade, ela sempre tinha sido considerada, especialmente por sua família, como uma estranha; por isso, a sua mãe sempre dizia que ela vivia com a cabeça nas nuvens...

Como se lesse os pensamentos da filha, Ester voltou o olhar para o Marquês e, com um sorriso no rosto, disse com certo pesar:

- Mil perdões, Marquês! Elsa vive com a cabeça nas nuvens... - pausou e, com agressividade, continuou: - Ou melhor, vive com a cara enfiada nesses livros! - ela indicou o livro com o queixo e balançou a cabeça em sinal negativo – Por mim, ela dedicaria mais tempo ao bordado, ao canto, aos estudos religiosos... Coisas realmente importantes para uma dama que precisa se casar, mas, Leôncio insiste em deixá-la desperdiçar o tempo com essas bobeiras...

Elsa quis revirar os olhos, afinal odiava quando a sua mãe falava aquelas coisas! A leitura, os romances, as palavras, a arte... Tudo isso era tão importante quanto qualquer outra atividade para as "moças casadeiras", e, bem, Elsa pensava que se ser casada significava ter que se tornar tão fútil quanto a sua irmã mais velha, bem, ela preferia morrer solteira mesmo!

No entanto, respeitava a sua mãe demais para ter aquela discussão com ela, ou talvez, ela evitasse a discussão porque sabia que era inútil - Ester não mudaria de ideia sobre aquilo. Por isso, Elsa apenas fechou os olhos e os manteve assim, até que ouviu o Marquês intervir:

- Bem, senhora Cortês, não quero contradizê-la, mas, creio que seja acertada a decisão do meu amigo Leôncio. - ele esboçou um sorriso que, quem quer que o visse, jamais pensaria que ele estava se opondo ao que quer que fosse que a senhora Cortês dissera. Ester sorriu ao ouvi-lo. O Marquês não tinha modos, mas a sua desenvoltura na fala era encantadora. - A leitura é muito importante, senhora Cortês. - ele disse - A leitura, ou a ausência dela, molda o caráter de um homem. - ele pausou e, como quem comete um grave erro, acrescentou – Ou de uma mulher. - ele sorriu, e continuou: - Se quer a minha opinião, tenho certeza que isso tornará a senhorita Cortês muito mais interessante do que muitas damas bobas que existem por aí nos bailes.

Com os olhos baixos, Elsa deu um sorriso de canto de boca ao concluir que, além de charmoso e simpático, o Marquês defendia ideias esclarecedoras para uns e estarrecedoras para outros. Olhando de soslaio para a matriarca da família, Elsa percebeu que, apesar do sorriso que a mãe tinha, ela olhava para o Marquês com a mesma estranheza que olhava para o ela e para o seu pai – Ester estava estarrecida com a fala do Marquês. O olhar, no entanto, foi um lampejo... Durou tão pouco tempo que, talvez, o pobre Marquês sequer tivesse percebido que estava sendo julgado.

- Bem... - Ester disse sem querer continuar aquela discussão sem pé nem cabeça. – Se o senhor acredita nisso, quem sou eu para refutar? - ela finalizou voltando a atenção para o bordado que fazia, fruto de uma promessa pela saúde de sua filha mais nova. Depois, olhou novamente para o homem. – Por favor, senhor Marquês, não se preocupe quanto à nossa presença aqui, creio que Cortês chegará em breve e não precisará nos aturar por muito mais tempo.

- Ah, não diga isso, por favor, senhora Cortês! Me sinto ofendido... - ele disse dando enquanto retornava para o sofá – Acredite: é sempre um prazer para mim estar na companhia de duas damas tão distintas.

O homem era tão galante em seu trato com as pessoas que foi inevitável para duas mulheres não se derreterem com aquele comentário. O Marquês das Flores tinha esse poder: o de fazer com que as pessoas se sentissem especiais, únicas aos olhos dele – conquistara muitas mulheres assim, exceto uma.

Apesar do pedido do Marquês, não demorou para que silêncio reinasse novamente entre os três: Ester perdida nos caminhos que a sua agulha deveria percorrer e Elsa, ora perdida nas palavras, ora na visão do homem sentando ao sofá verde musgo, degustando, agora, os biscoitos amanteigados .

Perdida em seu mundo de ilusões, Elsa se forçava a retornar a realidade a todo o instante, afinal, o Marquês nunca a olhou para além das gentilezas diárias e, mesmo se a olhasse, ela sabia que ele era um homem casado - aquilo não era uma coisa possível no mundo real!

De ímpeto, o mesmo criado que acompanhara o Marquês, entrou na sala principal anunciando a chegada da senhora Bragança, amiga de longas datas de Ester, que fazia questão de ir visitá-la todas as quartas-feiras - o dia que Elsa mais odiava por ter que aguentar todas as barbaridades e futilidades que saiam da boca daquela mulher.

A chegada da mulher fez com que Elsa tivesse um acesso de espirros por conta do rastro do perfume francês que ela usava. Ao ver a distinta senhora, o Marquês das Flores não tardou em se levantar para cumprimentá-la com a mesma doçura e cortesia que fizera com as outras duas mulheres assim que tinha chegado; logo depois, as duas senhoras se abraçaram e seguiram, sem convidar Elsa, para a sala privativa.

O Marquês observou a cena com certa inquietação, mas percebeu que Elsa sequer deu atenção às mulheres que se afastavam – ela apenas se manteve presa ao livro que tinha em mãos -, o que o fazia crer que, mesmo se ela tivesse sido convidada, a jovem recusaria o convite.

O Marquês das Flores tinha sido apresentado a Leôncio Cortês há poucos meses por conta de negócios: o Marquês comprara parte de uma terra que pertencia à família de Ester, pois o tinha intenção de aumentar as suas propriedades e ter uma participação no comércio dos cafezais. No entanto, a personalidade extrovertida de ambos fez com, dos negócios, surgisse uma amizade.

Pelo tempo que passara na casa do amigo, o Marquês pôde analisar a curiosa família que ele tinha, e, sem dúvidas, era Elsa a mais intrigante das três filhas do casal Cortês - intrigante, é claro, num bom sentido! Isto porque Matilda, a mais velha, era uma cópia da mãe, se enquadrando em tudo que todos os homens buscavam em uma mulher para casar e em tudo o que a sociedade dizia que deveria ser uma mulher para casar - não à toa, a jovem tinha conseguido um dos melhores casamentos de Novesperança, o que fazia a filha ser motivo de orgulho para Ester. Francisca era a mais jovem e ainda não tinha debutado, mas, era de se observar que seria tão linda mulher quanto era criança. Já Elsa era Elsa... Ela tinha aqueles cabelos castanhos claríssimos, que pareciam estar sempre bagunçados após um cochilo, ela vivia andando por aí de cabeça baixa – ou numa tentativa de desviar o olhar dos outros ou presa aos livros.

Ele sorriu ao fazer o quadro mental da jovem enquanto a observava ler, até que ela ergueu os olhos e os seus olhares se cruzaram. No momento, o Marquês alargou o sorriso para ela esperando alguma reação, mas, Elsa apenas se apressou em abaixar os olhos - o que fez com que o homem tivesse certeza de que não era o forte dela encarar as pessoas, e que talvez fosse este o motivo de a jovem ainda não ter conseguido um casamento.

- É o seu livro favorito do senhor Alexandre Dumas, senhorita Cortês?

Ao ouvir a voz dele, Elsa sentiu o coração gelar, mesmo sabendo que estavam em lados opostos da sala. Estava tão emocionada em ter a atenção do Marquês que, sequer, conseguiu respondê-lo. Ela sempre sonhara com o dia em que o Marquês a notasse - sempre desejara aquilo -, mas nunca tinha se preparado para o caso de seus pensamentos se tornarem realidade. Diante do silêncio de Elsa, o homem sorriu e, em tom jocoso, disse:

- Você realmente anda nas nuvens, não é, senhorita?

Se sentindo uma boba, Elsa sorriu do comentário feito pelo Marquês enquanto as suas bochechas coravam. Ela riu daquilo com graça, pois não sentiu na fala do Marquês um tom repreensivo, a mensagem chegou até ela como uma simples observação, um comentário cheio de doçura e sem qualquer maldade ou julgamentos.

Sabendo que deveria aproveitar a atenção que recebia do Marquês, Elsa fechou o livro e passou a encarar o tapete vermelho que estava no centro da sala - só queria erguer os olhos quando soubesse o que dizer. O Marquês sorriu satisfeito, percebendo, por aquele gesto, que, de alguma forma, Elsa já não estava nas nuvens.

- Me desculpe. - foi o que ela conseguiu falar ainda sem encará-lo e acariciando a capa do livro, tentando apaziguar o seu nervosismo – É que eu não sou boa com isso.

- Com isso o quê, exatamente?

- Falar com as pessoas, Marquês.

O Marquês soltou um longo suspiro e, depois, levantou para caminhar até onde a jovem estava. Elsa falava por sussurros e ele não conseguia escutar bem; no entanto, a verdade é que o Marquês das Flores se aproximava porque ele queria conhecer mais sobre Elsa, a jovem que vivia nas nuvens.

Ela acompanhou a sombra do Marquês, que caminhava em sua direção, até que percebeu que ele estava parado em frente a ela. Ainda assim, ela não ergueu os olhos - continuou a encarar as botinas que ele usava:

- Então, precisamos trabalhar isso, senhorita! - ele disse com certa animação, e, depois de uma pausa, continuou: – Você lida com pessoas o tempo inteiro, durante toda a vida, sabe? Não é algo do qual se possa fugir. Lidar com pessoas não é algo que as pessoas gostem de fazer, mas, elas precisam fazer, você me entende?

Com os olhos ainda baixos, Elsa balançou a cabeça afirmando que entendera o que ele dissera. E era verdade. Ela não somente compreendia como tinha ciência daquilo há tempos - ela só não sabia o que fazer para mudar...

- Olhe para mim, Elsa!

O Marquês falou com firmeza, mas, a sua voz também carregava uma pontada de docilidade, e finalmente, Elsa o olhou; não pelo pedido feito, mas, pelo fato de ele ter chamado- a pelo primeiro nome – o que era bastante incomum para uma pessoa que não tinha nenhuma intimidade com ela ou com qualquer dama. O Marquês, no entanto, continuou a falar com

um sorriso, satisfeito por encarar os olhos dela:

- O seu nome é muito bonito.

Elsa sorriu de volta para o Marquês num gesto de agradecimento. E, de repente, percebeu que estava encantada com aquele sorriso, afinal, aquele homem já vinha frequentando a sua casa por um tempo, e ela nunca tinha o visto sorrir daquela forma. Por isso, ela não deixava de se perguntar se, por acaso, aquele sorriso queria dizer alguma coisa... Ela sabia que não teria uma resposta e, por saber disso, se perdeu no que viu naquele momento: as marcas de expressão que desenhavam a testa e ao redor dos lábios dele – o que imaginava ser frutos de seus infinitos sorrisos.

- Espero que não se importe se eu chamá-la por ele.

Elsa despertou do seu encanto ao ouvir a voz do homem e alargou o sorriso que tinha nos lábios, enchendo o ambiente de luz. O Marquês perdeu a força para sustentar o sorriso ao notar quão encantador era o sorriso dela... Como dona daquele sorriso, Elsa tinha a obrigação de usá-lo por aí mais vezes - era um favor que ela fazia para o mundo! Ainda olhava, embasbacado, para os lábios da mulher quando viu eles se movimentarem e, dali, saírem as seguintes palavras:

- Me chame como quiser, Marquês.

O Marquês engoliu seco ao sentir um arrepio percorrer todo o seu corpo, e se maldisse internamente. Tinha certeza que, com a pureza da alma de Elsa, ela não sabia os efeitos que aquele sorriso seguido de uma frase como aquela poderiam causar em um homem - especialmente, em um homem como ele, famoso por... Bem, por todas as coisas que vivera no passado.

No meio do seu desejo, ele se perdeu nas palavras e sabia que precisava de uma forma de se recompor e dar continuidade com naturalidade à conversa que vinha tendo, afinal, ele era casado e ela era filha de um grande e querido amigo. Por sorte, Elsa continuou:

- Só, por favor, não diga que eu vivo nas nuvens, senhor Marquês!

Ele não tinha entendido o pedido dela - ainda estava preso nos desejos que Elsa despertara nele! -, mas, disse:

- Bem... Acho que, você, obrigatoriamente deve me chamar de Martim.

- Tudo bem. - ela sorriu - Martim. – ela disse e, depois de alguns instantes em silêncio, o provocou: - Martim é um nome muito bonito.

O homem sorriu com a fala perspicaz da jovem e, como num sussurro, disse:

- Eu sou forçado a concordar com você, Elsa. - ele olhou o colo dela, preenchido por algumas pintas amarronzadas. Notou que a mulher carregava um crucifixo de ouro no pescoço. Depois, ergueu os olhos para os dela: castanho-claros contornados por um círculo preto. Lindos. Tão lindos quanto os olhos da sua esposa. - Eu acho que você mentiu para mim. - Elsa olhou para Martim com curiosidade - Você não tem problemas em falar com as pessoas.

- Bem... - Elsa corou com a descoberta de Martim – Na verdade, eu só acho que as pessoas não têm muitas coisas interessantes para falar. Como o senhor mesmo disse, existem muitas pessoas bobas, e nem todos os homens são como o papai. - ela pausou – Ou como o senhor. - ele fuzilou-a com o olhar – Como você. - ela se corrigiu e sorriu. Martim também sorriu.

- Eu entendo. - ele disse – Tem quase um ano que me casei e, bem... - o corpo de Elsa se arrepiou ao lembrar que aquele homem era casado. Por um instante, tinha se esquecido deste detalhe. Um pecado. – Minha esposa é uma boa pessoa, aparentemente, mas... - ele foi tomado por aquele imenso vazio que sentia perto da sua esposa - Não temos muito o que falar um com o outro.

Martim não sabia o porquê de ter compartilhado aquilo com a jovem – no geral, era bem discreto com a sua vida. A vederdade é que ele sentia que alguma coisa precisava ser dita. Na verdade, ele percebeu que havia muitas coisas para falar com Elsa, sobre todas as coisas que faziam o mundo ser mundo, mas, começaram a ouvir passos fortes acompanhados da risada incomparável de Leôncio.

Ao ver Martim, o homem ligeiramente o abraçou e pediu mil desculpas pelo atraso – como sempre fazia, afinal sempre estava atrasado. Leôncio percebeu que Martim e Elsa estavam próximos, então, não pôde deixar de brincar:

- Esse homem estava lhe importunando, filha?

- De forma alguma, papai! É um verdadeiro cavalheiro. - ela sorriu com doçura entrando na brincadeira do pai. – Estava apenas lhe fazendo companhia enquanto o senhor não se apressava em chegar. Sabe que não deve deixar convidados esperando, não é?

- Eu sei, eu sei... - ele disse batendo na barriga e respirou – Mas, a caça foi espetacular! Toda a demora foi recompensada!

- Fico feliz em saber disso, papai!

- Cortês, você vai precisar me contar tudo sobre essa caçada! - ele bateu nas costas do amigo - É o que mereço depois de esperar você por tanto tempo.

Martim exigiu, pois adorava ouvir as histórias do amigo mais velho, especialmente, as que envolviam de caça, uma arte que ele achava encantadora, apesar de não ter o menor talento. Leôncio sorriu, satisfeito, e disse:

- Claro, claro que sim! Faremos isso enquanto tomamos um licor!

A verdade era que Cortês adorava compartilhar as suas aventuras com quem quer que quisesse ouvi-las, pois, era um falastrão. Sentia falta de um filho para gastar o tempo com essa atividade.

- Bem, senhores – Elsa falou enquanto se levantava da poltrona – Vou deixá-los a sós.

- Vá, meu anjo.

Cortês beijou a testa da filha antes dela sair. Martim se admirou com a cena e pensou em quão parecido era com o tratamento que seu pai dava à sua irmã – ele a amava, mas ainda assim partiu o coração dela, e quase destruiu a família. Perdido nas lembranças da sua juventude – que somente acabara após a morte do pai -, Martim mal percebeu que Elsa estava prestes a seguir pelo corredor. Com algo ainda a ser dito, ele chamou a atenção da jovem:

- Senhorita, só mais uma coisa... - Elsa olhou-o com atenção percebendo como ele mudara o pronome de tratamento diante de seu pai. “O Marquês não é bobo...”, a jovem concluiu querendo sorrir diante da situação. Leôncio também parou, com curiosidade, para observar o que o amigo tinha a falar a sua filha. – Tudo o que falamos mais cedo, mostra como é importante pensar com atenção com quem desposará. Sei que, muitas vezes, queremos que essa busca acabe, pois, há pressão por todos os lados... - ele praticamente revirou os olhos - Mas, aproveite a busca e encontre alguém que seja compatível com a senhorita. - ele pausou – Encontre alguém que goste de viver... - ele rodou o dedo no ar – No mundo das nuvens. - e sorriu com doçura, e se recostando na poltrona continuou: – É uma das poucas companhias que você levará para a toda a vida.

Elsa demorou um tempo para assimilar o peso das palavras do Marquês - ninguém jamais tinha lhe dado aquela visão sobre o seu futuro marido, que ainda não existia! O problema era que, ouvir aquilo vindo de Martim, apenas reforçava os seus sentimentos de admiração e desejo. De soslaio, ela viu que o pai meneou a cabeça em sinal positivo, concordando com a fala de Martim; com isso, ela repetiu o gesto do pai e, fazendo uma pequena mesura, ela sussurrou "obrigada, senhor Marquês”.

Assim, Elsa se retirou para o quarto com um sorriso no rosto e o livro apertado contra o peito. Se sentia uma boba por estar se nutrindo todos aqueles sentimentos por conta de uma simples conversa que tivera com Martim, o Marquês das Flores. Tinha sido apenas uma conversa e ela era, realmente, uma boba... Mas, ela nunca estivera tão próxima dela, e o jeito que ele a olhara... O jeito que ele sorriu... Tudo a fazia repensar se aquele era o jeito de quem está a realizar uma gentileza.

Ela sabia que precisava afastar aquelas ideias da cabeça dela, afinal, ele era casado! "Se bem que ele poderia se desquitar...", ela pensou soltando um risinho. "Não seja boba, Elsa!", ela se repreendeu, da mesma forma que Ester fazia, ao jogar o corpo na cama; deitada, olhou para os arabescos que decoravam a cabeceira da cama. Ela sabia que tinha que afastar essas ideias da cabeça tonta que tinha, mas também sabia que depois daquele dia, seria difícil.

Por isso, ela fechou os olhos, e se permitiu sonhar, naquela tarde, com o Marquês das Flores, onde abusou de todas as palavras de amor perpetuadas nos livros para alimentar ainda mais os seus sonhos bobos.

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