Ato 2 - Segredos Notáveis

Athia era uma pólis muito movimentada, especialmente na parte sul, onde Camila estava. O comércio de barro, peixes, frutas e verduras era gigantesco, vez que a maior parte dos agricultores ficava ao sul da cidade. Então, se alguém queria algo fresco para o almoço ou o jantar, era ali que iria encontrar. O burburinho da feira era vibrante e o aroma de condimentos se espalhava pelo ar. A quantidade de escravos de famílias notáveis no local era enorme e era ali que eles tinham algum descanso. Podiam demorar-se quanto tempo desejassem nas feiras sulistas, desde que trouxessem os melhores produtos para a casa. Havia até leilões de javalis gigantescos partidos ao meio.

Monte estava num dos leilões, parado entre os outros concorrentes, o carrinho de mão que empurrava já estava cheio dos vegetais e frutas mais apreciados por sua senhora e, quando ele arrematou o javali, a compra do dia estava completa. Havia troco em suas mãos. A tentação era grande, mas roubar de um senhor notável era um crime muito grave, então ele jamais ficava com as moedas restantes que tinham o rosto dos cônsules nelas... porém não era proibido que ele rentabilizasse aquele dinheiro. Contanto que ninguém descobrisse.

Seguiu para seu local favorito, uma região atrás de uma das edificações da feira onde se realizavam jogos de azar. A álea não era ato proibido em Athia, portanto jogar era algo comum e, para alguns, era realmente um negócio. Especialmente para os donos das bancas de apostas.

- Venham, venham! - gritava um homem de uma barraca, da qual Monte se aproximou. Era a barraca com o jogo favorito do escravo. - Qual seu nome, estranho? - disse o homem da banca.

- Monte.

- Monte! És escravo?

- Sim, sou.

- Meus pêsames.

Ambos riram. E Monte começou a jogar. Era um jogo simples, no qual havia três potes de barro onde se escondia uma pequena esfera dentro de um deles. Misturavam-se os potes virados de cabeça para baixo e o jogador deveria adivinhar em qual pote a bolinha estava, após serem embaralhados. O homem da banca era veloz, entretanto os olhos de Monte eram atentos. Quase nunca errava. O jogo de hoje havia lhe rendido o dobro do dinheiro da semana passada, então seus senhores receberiam o troco deles e Monte ficaria com sua parte. Ele estava guardando para uma ocasião especial.

Voltando para a mansão da família Viola, entrou pela porta dos fundos e colocou o carrinho de mão com as compras na cozinha.

- Aqui está, Monta - disse Monte, olhando para a cozinheira da família.

Ela era como ele: Negra, olhos escuros e cabelos lisos muito pretos. Era sua mãe.

- Porque não me chama de mãe, pirralho? - disse ela, a um homem de quase dois metros de altura.

- Não sou mais pirralho. Vou cuidar dos jardins. Nos vemos depois. Ah, aqui está o troco dos Viola.

- Ah, sim. Hoje você conseguiu bons preços.

- Sempre consigo. Até mais! - e sorriu com os dentes brancos, seguindo para o jardim.

Ser escravo da família Viola, os peles-de-bronze, não era de todo ruim. O nobre Vinícius e sua esposa, Martha, viviam contentes perante as famílias de notáveis - até certo ponto - e sem herdeiros. Não se conseguia explicar por qual motivo a senhora Viola não conseguia ter filhos, mas com certeza a culpa era dela. Em Gaia, a culpa de qualquer coisa sempre era da mulher. E a coisa piorou naquela família notável.

Depois da morte do pai, que liderara uma sangrenta batalha numa das guerras entre Pantinus e Athia, Martha vivia doente, fraca na cama, nunca conseguira engravidar e agora era que não tinha mesmo chance alguma. Vinícius pensava em adotar um de seus favoritos ou filhos de clientes da família. Havia muitos jovens que queriam ser filhos de Vinícius e Martha. Viola era uma família extremamente respeitada por entre os notáveis da pólis. Athia era grande, tinha várias famílias de notáveis, porém era óbvio que existia uma colossal diferença entre elas, e a família Viola estava rente ao topo, era uma das melhores e mais ricas, uma das que mais fazia pela cidade e pelo povo.

Logo cedo, Vinícius recebia seus clientes, ladeado por vários escravos, e ouvia seus pedidos, seus requerimentos. Alguns pediam por sementes, outros apenas aproveitavam o café da manhã ofertado pela família e ainda outros pediam trocas de favores significativos. O dia-a-dia de Vinícius era agradável, ele gostava de receber seus clientes em sua mansão, mas o que mais lhe faltava era um herdeiro. Isso era sabido e havia centenas de candidatos querendo ser o herdeiro adotivo da família Viola. Naquela manhã, particularmente, havia aparecido uma quantidade maior de senadores oferecendo filhos mais novos para serem adotados pela família Viola. Vinícius reparou este fato, mas não entendeu exatamente o motivo pelo qual a quantidade de pretendentes aumentava.

Enquanto isso, nos aposentos da Sra. Viola, Monte entrou pela porta, vagarosamente para não acordá-la, e encaminhou-se para limpar o chão e arrumar o quarto. Trocou as rosas murchas por cravos frescos, flores que ele sempre lhe trazia após cuidar dos jardins. Colocou-as em um vaso dourado ao lado da cama de Martha, que abriu os olhos devagar ao notar o movimento do homem em seu quarto. Ela o abraçou apertado.

- Monte...

- Senhora... Eis suas flores. Belas como a senhora, com pétalas macias como a pele da senhora...

Beijaram-se apaixonadamente. Ela observou as flores.

- Eu as colhi agora mesmo, nos jardins.

- São lindas, obrigada por me trazer flores todos os dias - ela suspirou de amor. - Por favor, deite-se comigo novamente. Tranque a porta ou os outros escravos podem nos ouvir...

Obedecendo às ordens, que já não eram mais ordens, Monte trancou a porta e deitou-se ao lado de Martha. As luxuosas roupas de cama eram as únicas onde o escravo havia se deitado, e deliciava-se com o toque macio dos tecidos. Suas mãos, carcomidas pelo trabalho pesado, passavam pelo rosto macio, bronzeado e liso de Martha, percorrendo suas clavículas e indo até o ventre de sua amada senhora.

- Você precisa passar logo uma noite com ele, ou então ele desconfiará. As pessoas já estão comentando que você está grávida, minha senhora.

- Já falei para não me chamar de minha senhora, Monte.

- Sim, senhora.

Ela riu. Espreguiçando-se, seus seios ergueram-se na altura dos olhos dele, que começou a lambê-los de forma delicada. Ela riu novamente e o beijou.

- Eu sabia o tempo todo que o problema era com ele. Eu precisava era de um homem de verdade na minha cama pra me fazer engravidar. Obrigada por este presente, Monte. Era tudo o que eu precisava.

- Não se preocupe, minha senhora, estou aqui para servi-la - disse.

Riram-se e fizeram amor durante a manhã inteira, enquanto Vinícius Viola cuidava dos negócios da família. Ele estava observando uma pequena moça ao lado de um rapaz jovial, tomando café da manhã. Eram da vergonhosa família Domenicus. Ou pelo menos era o que ele considerava. Ser diretor de uma escola onde escravos dos Rubis anteriormente eram diretores era a maior vergonha que alguém poderia ter. Ele precisava retirá-los dali imediatamente.

Levantou-se de sua cadeira que parecia um pedestal de mármore e deslizou pelo salão principal da casa, onde era recebida a clientela.

- Senhor e Senhora Domenicus, como é bom vê-los em minha residência.

- Ah, muito prazer, Damiana - ela reverenciou.

"Filhos de Damião" - pensou.

- Damião II, senhor - ele reverenciou.

"Tem a mesma cara de débil mental do pai" - pensou Vinícius.

- Espero que esteja sendo do seu agrado este café da manhã que ofereço aos meus clientes. Posso me sentar com os senhores?

- Seria um grande prazer, Senador Vinícius - respondeu o segundo filho de Damião.

Vinícius puxou as vestes e assentou-se entre o rapaz e a senhorita que ali estavam.

- Em que posso lhes ajudar nesta agradável manhã?

A moça serviu-se de uvas enquanto o rapaz bebeu um gole de vinho. A escrava, sempre atrás de Vinícius, encheu o copo de vinho para seu senhor.

- Estou sabendo que andas procurando um filho para adotar, já que sua esposa tem estado doente.

Damiana deu uma risadinha, que logo abafou. Vinícius não entendeu o motivo do riso. Talvez fosse louca, como o restante da família.

- Com certeza, beleza o senhor tem, Sr. Damião, mas o que lhe faz pensar que eu poderia adotá-lo como herdeiro dos notáveis Viola?

- Pois se não o fizer logo... - ele abaixou a voz - Sua esposa terá um filho de um de seus escravos.

O tom de pele bronzeado de Vinícius ficou rubro. No mesmo tom baixo, disse:

- Como ousa!? Blasfêmia!

A garota riu e meio pedaço de uva escapou de dentro de sua boca. Ela sugou a fruta e abaixou a cabeça sobre a mesa, não aguentando de tanto rir silenciosamente.

- É o que se diz nas casas de banho que, aliás, o senhor não anda frequentando, o que está rebaixando bastante o requinte da família Viola.

- Sabe, rapaz, mesmo que isso seja verdade, eu recebi propostas muito melhores que a sua. Porque eu aceitaria logo um filho de Damião?

- Porque eu sou um grande estudioso de ciências e está claro para mim que o senhor é infértil e não a pobre Martha... - provocou. - Parece que só eu notei isso... e não quer que eu saia falando o fato pelos cantos, quer? Sabe, as pessoas podem começar a comentar ainda mais...

Vinícius estava furioso, entretanto não podia demonstrar aquilo no salão de sua própria casa, apinhado de clientes. Demorou um pouco para passar sua raiva. Ele não queria cair em desgraça. Assumir um filho que não era seu talvez seria a melhor saída para comprovar que seus órgãos estavam em pleno funcionamento. Seria melhor do que adotar um Domenicus. Não, ele não aceitaria aquilo de maneira nenhuma, tinha um nome a zelar.

- Afinal de contas, meu irmão mais velho terá que ser diretor do Centro de Estudos e isso nos é motivo de muita chacota. Minha ascensão à família Viola seria motivo de trazer novamente o bom nome de minha família. Caso nasça menino, tudo ocorreria bem, exceto que em sua morte seus bens seriam geridos por um filho que não és teu, mas um rebento de um escravo. Acaso nasça uma menina, o senhor continuaria não tendo herdeiros homens. Há uma chance de cinquenta por cento. O senhor vai querer desperdiçá-la?

Vinícius pensou por alguns instantes e arrebitou o nariz. Já havia decidido, porém disse:

- Apenas pela sua ousadia e coragem de vir aqui falar esse monte de mentiras, vou pensar em sua proposta. Me dê dois dias para pensar, sim?

- Claro, Senador Vinícius. Afinal de contas, seremos pai e filho, certo? Para quê a pressa?

- Aproveitem do nosso café da manhã ofertado, sejam breves. Com sua licença, tenho negócios a tratar.

O homem se retirou, irritado. Os irmãos entreolharam-se, sorrindo.

- Ele vai aceitar - disse Damiana, comendo mais uma uva de um cacho que estava na mesa.

- Garanto - disse Damião II, sorvendo mais um gole do vinho, que estava particularmente delicioso agora.

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Naquela noite, uma grande festa iria ser oferecida pela família Santoro. Todos os notáveis estavam convidados, mesmo aqueles que ainda queriam ter sua ascensão aos realmente notáveis. Ninguém sabia ao certo o motivo da festa, mas era comum aos Senadores darem festas à toa de vez em quando. Murmúrios haviam, é claro. Uns diziam que Santoro iria se candidatar a cônsul e outros ainda diziam que era uma festa para prometer em casamento sua filha, Camila Santoro, a Claudius I Marconi. Mas certo era uma coisa: em quase todas as festas, quando todos estavam animados com a bebida e a música, o anfitrião costumava ler seu testamento e seus clientes ficavam muito atentos àquilo. Cada um queria saber a parte que lhe caberia, o que significava que o anfitrião lhes dava a consideração necessária, em vida.

Nos belos jardins da casa Santoro, durante toda a tarde, escravos montaram tendas, carregaram mesas de mármore, serviram as melhores frutas e a melhor comida que estava disponível em sua despensa. Os divãs foram colocados em locais propositais, com nomes das famílias que ali deitar-se-iam durante a festa.

- Como estou? - disse Camilo, sorrindo, em uma veste branca, olhando-se no espelho velho e enrugado, mas era o de melhor qualidade que se conseguia encontrar em Gaia.

- Ficou muito bom, esta túnica de senador combina muito com você. Mas a de cônsul vai combinar mais, quando for eleito - respondeu Fidélia, que rolava na enorme cama, já pronta e bem vestida para a festa. Levantou-se, para pousar as mãos nos ombros de seu homem.

- Eu sei que não serei eleito, porém entrarei na competição para demonstrar que sou comprometido com a pólis.

- Eu não entendo quanto vale esse comprometimento com a pólis. O comprometimento com a cidade, com as coisas públicas, só faz com que nossos cofres esvaziem-se.

- Mas o que irei ganhar em troca de favores irá restituir tudo o que investimos na cidade, meu amor. Veja, estou falando como se eu já tivesse ganho - ele se culpou.

- Por mim tanto faz, o que eu mais quero é fazer o meu anúncio desta noite.

- Seu anúncio? - Camilo fica chocado.

- Sim. Mas será um segredo por enquanto.

- Tudo bem, doce Fidélia. Como preferir... Mas estou curioso.

- Eu sei. Mas logo saberá. Vou conferir Camila e a vestimenta dos escravos, com licença...

E com um beijo, Fidélia saiu do quarto com seu segredo seguindo-a.

- Como se já não bastasse o nervosismo pela candidatura, essa mulher ainda me arranja uma surpresa... Espero que não destrua a festa... - pensou alto, ajeitou uma pulseira dourada que usava no pulso esquerdo, que era passada de pai para filho, como símbolo de força. Beijou o totem de leão e virou-se em direção à festa.

Os Viola foram os primeiros a chegar. A esposa de Vinícius, Martha, colocou vestes roxas para disfarçar a barriga que começava a mostrar-se ao mundo, exceto ao mundo paralelo de Vinícius.

- Você está muito gorda - foi o que ele disse, dando de ombros ao ver a esposa nua, acidentalmente.

- É que não ando fazendo exercícios... - ela disse, em tom de flerte.

E, antes da festa, finalmente consumaram novamente o casamento.

"Pronto, agora posso falar que o filho é meu. Prova de minha virilidade." - pensou Vinícius, enquanto Martha pensava exatamente o mesmo, exceto a parte da virilidade.

- Martha, minha querida! - disse Fidélia, que estava esplendorosa com os cabelos trançados por sobre a cabeça e o restante solto, revelando os cachos negros muito bem cuidados.

- Como sempre, os Viola chegam primeiro - disse Vinícius, apertando fortemente as mãos de Camilo. - Senador!

- Senador Viola, é um prazer ter atendido ao nosso humilde convite - disse Camilo.

- Nossa, seu cabelo está maravilhoso, sua pele está tão jovial, Martha! - espetou Fidélia: já sabia da gravidez indevida de sua convidada e que grávidas ficavam com pele de melhor qualidade em comparação às que não estavam gestando.

- Estou me tratando com muitos óleos, sabe - ela disse. - E muito banho de sol nos jardins em minhas leituras de tempo livre. Não é fácil manter essa pele bronzeada.

- Aliás, Magnífica! - disse Fidélia, encaminhando Martha para os divãs da família Viola, que ficavam em um local particularmente mais perto dos anfitriões. - Vamos, conte-me. De qual oliva vem tal produto?

E foram conversando variedades.

- Fiquei sabendo que se candidatará a cônsul - disse Vinícius.

- Achei que pegaria todos de surpresa, mas não parece ser o caso - riu-se Camilo. - Mas ainda teremos outras surpresas esta noite. Por favor, sinta-se à vontade!

Martha estava tentando deitar-se no divã de modo a esconder um pouco a barriga da gravidez que já estava aparecendo: ainda precisava esperar o tempo de um ciclo para anunciar a Vinícius que finalmente sua semente germinara. Vinícius deitou-se perto, em outro divã separado para ele, logo ao lado do divã do novo candidato ao consulado. Os Viola ficaram deitados no divã, pensando cada um em suas vidas, enquanto os músicos contratados tocavam levemente a lira, a viola e tambores discretos. Rapidamente, escravos dos Santoro lhes serviram vinho, um prato de uvas e outros quitutes singelos, porém, de muito bom gosto.

Camilo foi recepcionando um a um de seus convidados: Os De Luca, Domenicus, Marconi, Rubis e, por óbvio, os convidados mais especiais da noite que foram anunciados por trombetas: Petrônio Romano e Américo Farreri.

Os dois caminhavam lado a lado com suas pomposas vestes de consules, suas mulheres logo atrás deles. Os tecidos de melhor qualidade de Athia que adornavam os dois eram de cor azul royal com detalhes de vinhas, plumas e outros frutos redondos bordados. As sandálias eram douradas. As de Américo, como sempre, estavam mal amarradas. Ele deu um largo sorriso ao ver Camilo, que os recepcionou reverencialmente.

A festa estava animada, dançarinas foram contratadas e os músicos estavam tocando de forma genial, os escravos servindo a todos com muita maestria, muitas trocas de favores estavam sendo firmadas na surdina entre os senadores presentes, quando uma mulher desconhecida de cabelos e olhos castanhos adentrou na área da festa. Não havia muita pompa nos tecidos que guarneciam seu belo corpo, portanto acharam que ela não era convidada, mas, de repente, Camila largou Claudius falando sozinho e apareceu em sua túnica alaranjada, gritando animada por sua professora, Virgília, correndo até ela.

- Deixem-na entrar! Zuppa, deixe-a entrar! Venha, venha Virgília, quero lhe apresentar ao meu pai, o Senador Camilo Santoro!

- M-mas já? - disse Virgília, incomodada com sua presença ali. Ela simplesmente não se encaixava no visual dos cidadãos notáveis da cidade. Afinal, nem cidadã ela era... Era apenas uma professora.

- Sim, você chegou na hora certa. Meu pai fará um anúncio, minha mãe fará outro e eu farei o meu. Certo?

- C-certo - disse, e ficou de pé, pois não havia um divã separado para ela.

- Por favor, assente-se aqui ao lado do meu divã - puxou uma cadeira de uma escrava e colocou a professora em cima dela, como se fosse um objeto, pois Virgília não se movia um milímetro.

Ouviu-se um tilintar de uma taça e todos silenciaram-se. Camilo, o anfitrião, levantou-se de seu divã, seguido de sua esposa e sua filha, que ladearam o homem.

- Boa noite a todos - cumprimentou-os novamente. Alguns responderam. - Espero que estejam se sentindo à vontade em nosso belo jardim, iluminado por velas, local este que foi escolhido por minha bela esposa para fazermos esta festa.

Aplausos foram ouvidos e Fidélia curvou-se duas vezes, em agradecimento. Sorria belamente. Camilo continuou seu discurso:

- Então, como alguns aqui já sabem, venho trabalhando como senador por eras, assim como todo primogênito Santoro - ele segurou sua pulseira, em forma de agradecimento aos ancestrais. - Planejei várias competições para agradar ao povo. Gladiadores de toda parte vieram este ano participar dos duelos. Proporcionei recepções aos menos favorecidos, fornecendo o café da manhã e banhos a eles. Participei ativamente e pessoalmente da reciclagem e reorganização da biblioteca do Centro de Estudos Rubis e Domenicus, onde minha filha estuda. Não citarei tudo o que fiz pela pólis, pois sei que são conhecedores do meu trabalho. Mas quero fazer mais.

Ele sorriu largamente e continuou:

- Nos meus tempos de juventude, a ordem de minhas prioridades era a família, os ancestrais e, depois, a pólis. Mas com o tempo fui abrindo os olhos e percebi que a pólis é o início de tudo. O cordão umbilical que nos une. Sem a pólis, não há família. Sem a pólis, não há motivos além dos óbvios de respeito para com nossos ancestrais. Portanto, hoje, sou um homem diferente. As minhas prioridades mudaram. Agora antes da família e dos ancestrais, vem a pólis.

Ouviu-se aplausos iniciados pelos Viola. Camilo ficou um tanto rubro e sorriu. Após os aplausos, continuou:

- E, portanto, hoje quero anunciar oficialmente minha candidatura uma das duas vagas de cônsul que estarão abertas para eleições muito em breve, e conto com o apoio dos senhores na hora da votação.

Mais aplausos se ouviram.

- Agora, minha bela esposa tem uma surpresa para nós, da qual nem eu sei - ele faz um sorriso doce e a beija no rosto, pegando-a pelo pulso, trazendo-a com carinho um passo à frente.

- Algumas de vocês também já sabem, pois são minhas amigas de infância e juventude. Enfim - ela olhou para o marido - sendo direta: Meu amor, eu estou grávida novamente.

Aplausos foram ouvidos e os dois se abraçaram intensamente, como se fosse o fim do mundo e aquele fosse o último abraço que poderiam dar. Camilo ergueu a esposa e sussurrou em seu ouvido:

- Não poderia me dar felicidade maior do que esta!

Os aplausos continuaram, mas quando Camilo ia finalizar os anúncios, Camila deu um passo à frente e imediatamente todos olharam para a garota.

- Agora, o último anúncio da noite... Por favor - a garota maneou com as mãos para que Virgília se levantasse.

Damião logo a reconheceu como ex professora da escola. Recusara-se a ir para a cama com ele, então a demitira. Julius Rubis deu um sorriso ao ver Virgília na festa ao lado de Camila, a menina maluca que provavelmente viraria uma sacerdotisa de tanto que rezava. Devia ter os joelhos esfolados de tanto orar. E ainda por cima, a professora estava usando o belo vestido que ele lhe comprara esta manhã, portanto ficou esperançoso, mas seu sorriso foi se esvaindo à medida que Camila falava. E, para uma criança, sua eloquência era muito precoce perante as outras crianças de sua idade. Camilo ficou horrorizado com aquilo e olhou para a esposa, que assentiu com a cabeça, indicando que deixasse Camila falar.

- Esta mulher todos os dias sofre a morte do marido em nossa última guerra contra Pantinus. Ele era um artesão, ela, uma professora e, com a aceitação de meu pai, a partir de agora será minha tutora, como a boa educação das famílias notáveis preconiza.

Teatralmente, Camilo conseguiu esconder sua fúria. Não podia pagar por uma tutora. Entretanto, para não se sair mal daquela saia justa, ele disse:

- Sim, é claro que permito se esta é sua vontade, minha filha, afinal sua mãe estará ocupada com o novo bebê chegando. A educação é muito importante para minha família e nossos ancestrais. Vamos, venha, querida, apresente-se - Camilo maneou com as mãos para que a professora desse mais um passo à frente e se apresentasse.

- Muito boa noite - ela disse, olhando amplamente todas as famílias de notáveis que deram sua desejada atenção a ela. Estava com um frio na barriga como se fosse o primeiro dia de aula. Normalmente estava acostumada a falar com crianças nobres e não com seus pais, portanto, ficou um segundo calada, tentando arranjar palavras para se expressar. - Me chamo Virgília de Pantinus e, por casamento, Virgília de Athia.

Alguns convidados pareceram ficar incomodados graças aos acontecimentos recentes da guerra que perderam para Pantinus.

- Sou ex escrava liberta, adotada por um senhor bondoso de Pantinus que me tinha como favorita, entretanto perdi meu nome quando me casei com Marcus de Athia, o artesão, que morreu na guerra e foi cremado pelos soldados inimigos. Jamais me considerei de Pantinus, ainda mais após isso.

O que ela estava fazendo? O que ela estava dizendo!? Jogando no lixo a honra da família Santoro por ser advinda de Pantinus?

- Eu sei que soa estranho, mas hoje me considero Virgília de Athia, a tutora de Camila da notável família Santoro, a quem darei todo meu conhecimento - neste momento ela olhou para Damião, que tentou estuprá-la - em troca de abrigo e alimento para uma viúva de guerra.

Camilo suspirou aliviado.

- Eu era professora no grande Centro de Estudos da cidade. Agora serei tutora de Camila e espero grandes atos dela, para enriquecer o nome da família Santoro. Agradeço a atenção de todos.

A professora deu um passo para trás e foi aplaudida fracamente.

- Então - disse Camilo, dando de ombros - agora vamos servir um delicioso banquete e espero que todos aproveitem!

Aplausos fortes se ouviram e parecia que a história da professora moribunda tinha sido esquecida por todos. Os escravos serviram os pratos quentes um a um aos notáveis e também arranjaram um divã para a nova tutora de Camila, atrás de sua pupila.

- Antes, gostaria de pedir a palavra - disse o Senador da família Marconi, Claudius. - Meu filho, Claudius I tem algo a dizer.

Todos pararam o que estavam fazendo para prestar atenção. Claudius, com os cabelos castanhos e lisos dos Marconi, caminhou até Camila, pegou-a pela mão e abaixou-se, ficando sob um dos joelhos perante Camilo.

- Gostaria de manifestar minha intenção de me casar com Camila, Senador Santoro, assim que tivermos idade.

Camila arregalou os olhos de tal forma que ficaram enormes e o rosto completamente rubro. Ela fincou as unhas na mão de Claudius, seu melhor amigo. Como ele podia fazer isso com ela?

- Pois isto muito me agrada, Claudius I, e faço muito gosto.

- Então estarão casados, assim que tiverem idade - disse o Senador Claudius Marconi e mais aplausos foram ouvidos.

Todos continuaram jantando, a festa estava ficando cada vez mais animada, as fofocas estavam percorrendo de mansinho por entre os notáveis de Athia. Promessas de casamento eram muito apreciadas e tinham muitas consequências, especialmente o dote. Bens. Bens eram tudo o que girava na cabeça dos notáveis de Athia. Quanto mais terras, quanto mais escravos, quanto mais vinho, melhor se era.

Camila, agora acompanhada de Zuppa, sua escrava, e Virgília, sua tutora, puxou Claudius I pelo pulso e girou-o para que ele ficasse de frente para ela. Os olhos castanhos raivosos fitaram os claros céticos do garoto.

- Como você pôde? - disse Camila.

- Mais modos, se quiser ser minha esposa - respondeu, ríspido. - Ou você acha que eu queria isso?

- Como assim!? - agora Camila ficara encucada. - Não sou o bastante para vocês, Marconi?

- Não sei muito bem o que meu pai pretende, ele me disse isso agora, estou aborrecido assim como você, Camila - disse o garoto, ajeitando os cabelos amendoados para trás. - Vai demorar muito para termos idade para casar, estamos apenas prometidos, não espere muita coisa.

- Como assim "não espere muita coisa"?

- Você não sabe nem metade do que está acontecendo na pólis. Nossos dias estão contados. Algo grande e sério pode acontecer, poderemos morrer a qualquer momento, portanto não fique sonhando com vestidos ou festas de casamento. Meu pai está tentando resolver um problema muito sério e eu confio nele para isso. Gosto de você, Camila, e espero poder continuar sendo seu amigo.

- Amigos contam tudo um para o outro... - retrucou.

- E eu estou fazendo o quê, por acaso? Estou te contando o que sei. Ficaremos mais próximos ainda, agora que somos prometidos um do outro. - ele olhou para Zuppa e Virgília - Espero que vocês cuidem dela devidamente.

- Sim, senhor - disse Zuppa imediatamente, enquanto a professora apenas assentiu com a cabeça.

- Com licença, damas - disse Claudius I, e saiu pela tangente para iniciar seu jantar.

Outro escravo ofereceu um prato de jantar para Camila, mas ela estava com os olhos vidrados e apenas levantou a mão, recusando o alimento. Ele se curvou e saiu, seguindo com o prato para o próximo convidado. Vagarosamente, como se o mundo estivesse caindo sob seus pés à medida que andava, Camila caminhou até sua mãe.

- Mamãe, estou indisposta. Posso me retirar? - perguntou, com fineza.

- Claro minha filha - disse Fidélia, e lhe deu um beijo na bochecha. - Zuppa, por favor, leve-a até seus aposentos. Sra...?

- Pode me chamar de Virgília de Athia, minha senhora - disse Virgília, curvando-se.

- Não se curve jamais para mim, Sra. Virgília, considero de suma importância todos os educadores, que nunca deveriam se curvar a ninguém. Apenas me chame de Sra. Fidélia. Se desejar, pode aproveitar mais da festa e depois lhe mostro seus aposentos.

- Oh, muito obrigada, Sra. Fidélia. Irei apreciar um pouco mais do banquete dos Santoro, se não se importar.

- Oh, será um prazer. Afinal, acabas de chegar. Tome seu divã, que a senhora professora será bem servida.

- Obrigada - ela agradeceu e se separou de Camila, dando-lhe boa noite.

Sempre que Camila entrava pela porta do casarão com uma festa nos jardins ela tinha uma sensação esquisita. Era vazio demais, a luz das velas eram fúnebres e Zuppa ao seu lado sempre parecia mais amedrontadora do que o normal, branca como um fantasma. Camila caminhou pelos corredores e subiu uma pequena escada, indo para seus aposentos.

- Zuppa, me deixe sozinha por alguns minutos? Vou fazer minhas preces. Pode ir até a senzala se desejar, apenas volte para vigiar meu sono.

- Sim, senhorita. Com licença... - disse Zuppa, curvando-se e deixando sua senhorinha sozinha.

Camila entrou no seu quarto, que era um recinto sem janelas que davam para o lado de fora da casa, apenas uma pequena fresta retangular vertical ao lado da porta proporcionava ventilação ao local. Pegou um incenso no pote que havia ao lado de uma vela, que estava sempre acesa à noite, e com o incenso ainda pegando fogo acendeu várias velas que revelaram um pequeno altar. Havia um leão esculpido em pedra, juntamente a um cetro com uma pedra redonda de jade em seu topo e, num cantinho, uma representação de uma Vênus, que geralmente usava como colar e lhe fora um presente de Claudius.

A garota se ajoelhou perante o altar de seus ancestrais, pegou a pequena Vênus e juntou as mãos, numa prece.

"Juno, por favor, não me deixe casar com Claudius." - recitou várias vezes, em pensamento.

Enquanto isso, a festa continuava e os convidados estavam cada vez mais bêbados quando Camilo chamou a atenção de todos para si, no meio do salão, batendo um talher fino em um cálice.

- Atenção! Atenção! Parem a música, atenção! - disse, sorrindo. A música parou e todos os que ainda não estavam dormindo desacordados pelo álcool derrubados sobre divãs prestaram atenção no anfitrião.

- Sabem o que é isso!? - ele ergueu um papiro enrolado. - Sabem!?

Uma alegria geral se espalhou e tomou conta do ambiente. Fidélia colocou as mãos na boca, sorrindo, comentando com a Sra. Viola algo em seu ouvido.

- Testamento! - alguém gritou.

- Leitura de testamento! - outro gritou.

De repente todos estavam batendo palmas compassadamente e sorrindo, dizendo em coro "leitura de testamento! Leitura de testamento!"

- Certo, certo! Irei ler meu testamento para o prazer de vocês! - ele abriu o papel que estava enrolado e um escravo rapidamente colocou um divã perto de seu senhor, que deitou-se com a taça de vinho numa mão e o testamento na outra. Todos ficaram num silêncio sepulcral, esperando serem mencionados no testamento de Camilo. Pôs-se a ler.

- “Primeiramente, gostaria de registrar meu epitáfio nos seguintes dizeres: 'Este homem amou a pátria e a família. Fez tudo por ambas, com o mesmo amor e maestria.' Em segundo lugar, deixo metade dos meus bens à minha esposa, Fidélia Santoro, em especial nossa mansão situada na parte norte de Athia, nosso centro familiar. Para minha filha, meu legado vivo e fiel, deixarei meu pingente de leão de ouro, para que cuide dos nossos ancestrais como foi ensinada a fazê-lo. Para Zuppa, minha escrava favorita, concedo a liberdade para fazer o que bem entender de sua vida, com um pedaço de terra que a mim pertence em Pantinus. Que lá crie raízes e fique, sua terra natal. Concedo também a liberdade aos meus escravos pessoais, apenas. Os demais serão patrimônio de Fidélia e Camila, divididos em partes iguais, não podendo elas escolherem nem todos os melhores e nem deixar os piores uma para a outra."

Ouviram-se risos neste instante. Os escravos entreolharam-se discretamente: somente Zuppa e outros poucos seriam libertos.

- "Quanto às minhas terras, minha fazenda principal que produz azeite será destinada à minha filha, Camila. O restante de minhas propriedades ao sul de Athia serão concedidas a meus melhores amigos e parceiros de vida: Vinícius Viola, Damião Domenicus, a Julius Rubis, a Petrônio De Rossi, a Américo Farreri..." - e disse mais meia dúzia de nomes de convidados presentes. - "Aos Marconi, deixo minhas terras de Majorin." - terminou de ler, enrolou o papiro e disse - então, vamos celebrar a vida enquanto podemos! Proponho um brinde à minha morte, que não chegará tão cedo que eu não possa apreciar as belezas deste mundo e nem tão tarde que me deixe experimentar da miséria deste mundo!

E todos brindaram, felizes.

Continua...

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