Capítulo 01 - Mecanismo de defesa

— Por que ela não fala, mãe?

— Crianças, precisamos conversar. 

Quando Alice entrou na nova casa foi bombardeada com perguntas pelo primo mais novo, algumas delas especialmente dolorosas. Sem sentir raiva, tristeza ou qualquer sentimento pelo menino, Alice pegou suas malas e rumou para o novo quarto, arrumando tudo automaticamente e sem prestar atenção nas diferenças daquela pequena casa para o seu lar na capital. Na verdade ela não sentia nada fazia um tempo, apenas um vazio e uma vontade constante de morrer. 

Nem os primos nem a tia entendiam o que Alice sentia, ou deixava de sentir, especialmente os primos, que enxergavam apenas outra criança para fazer companhia nas brincadeiras. Depois de tudo, porém, Alice seria incapaz de brincar como antes. 

O cérebro dela usou seu mecanismo de defesa, bloqueando qualquer emoção que ela pudesse vir a sentir. Ela não havia chorado a morte dos pais, e se uma pessoa morresse mutilada em sua frente ela não sentiria o mínimo de medo ou pena. 

Apesar de ter ações robóticas e não prestar atenção no mundo ao seu redor, presa em um vazio em que as palavras ditas não são ouvidas e os objetos e pessoas não são vistos, ela se pegou pensando constantemente em incêndios, raios e qualquer coisa que a pudessem matar. Os aviões não passavam constantemente pelo céu de Esperanza, mas quando passavam, Alice levava automaticamente as mãos aos ouvidos e fechava os olhos com força. Essa era a única ação que ela fazia além de olhar de forma perdida para pontos fixos e obedecer as ordens preocupadas de tia Rosário, como comer e lavar as mãos.

— Lembram que eu falei sobre o tio Fabián ter ido para o céu?

— Quando ele explodiu no céu?

Tia Rosário suspirou e pegou o pequeno Maurício no colo, apesar de ter apenas 5 anos ele tinha a língua afiada e a imaginação fértil, como o falecido pai. 

— A mamãe quis dizer que ele foi morar no céu, como o papai. 

Amélia se aproximou da mãe com a cadeira de rodas, ela tinha nove anos e teve tempo de conhecer o pai. Tia Rosário já havia sofrido muitas perdas.

— Entendi.

— A Alice está sofrendo muito, vamos deixar ela quietinha. No tempo dela ela vai melhorar. 

— Ela vai ficar aqui em casa pra sempre?

— Sim, querido. Ela vai ficar no quarto da mamãe.

— Nossa casa só tem dois quartos. Vamos ficar os três apertados no mesmo lugar? - Amélia perguntou com preocupação.

— Você se importa de dividir o quarto com ela?  

Como as conversas com crianças geralmente são, o assunto mudou em poucos minutos. Se seguiu uma pequena discussão sobre quem ficaria com os quartos. Foi decidido que Alice e Amélia ficariam no quarto maior, e tia Rosário e Maurício no menor. Após algumas orientações da mãe sobre como lidar com a nova moradora, Amélia guiou sua cadeira de rodas até o quarto, onde Alice permanecia sentada na cama olhando para o amontoado de coisas que ela jogou de qualquer jeito sobre a penteadeira. 

— Oi...

Alice não respondeu.

— Eu vi quando os homens trouxeram seus móveis. Sua penteadeira é muito bonita, eu sempre quis ter uma. 

Amélia se aproximou da penteadeira de Alice, infelizmente sua cadeira de rodas um pouco pequena para o seu tamanho não permitiu que ela se visse direito no espelho. Ela admirou cada desenho na madeira, cada detalhe. Se sentiu muito feliz por ter que dividir o quarto com Alice. 

— Eu vou dormir aqui com você, também vou trazer as minhas coisas. Sabia que esse quarto era da mamãe? Eu dormia no outro com o Maurício, mas eu vou ficar feliz em dormir com você agora. Nós vamos poder ser irmãs, pintar tudo de rosa, e não vai ter nenhum brinquedo espalhado pelo chão que atrapalhe minha cadeira. Vamos ser melhores amigas.

Amélia olhou para Alice com um pouco de expectativa, examinou o rosto dela com cuidado, esperando algum vestígio de sorriso após ela ter sugerido que seriam irmãs. Ela não foi capaz de responder, permaneceu imóvel encarando a parede suja do quarto. Os olhos azuis vidrados em um ponto fixo, o cabelo muito preto e liso caindo até a cintura e a pele branca sem qualquer sinal de cor. A roupa amassada e de uma cor muito feia, misturada ao contraste do branco da pele com o negro dos cabelos deram a Alice um ar um tanto fantasmagórico, o que fez Amélia estremecer com a ausência de respostas da garota à sua enxurrada de palavras.

— Depois conversamos sobre isso.

Rapidamente Amélia girou as rodas da cadeira e foi até a mãe, que desempacotava algumas poucas coisas de Alice que ainda faltavam.

— Não deu certo.

Tia Rosário tirou uma mecha de cabelo castanho do rosto da filha e sorriu. 

— Obrigada por tentar.

Ela tinha inocentemente pensado que a presença de outra criança e a promessa de uma amizade poderiam animar um pouco Alice, talvez até tirá-la do seu estupor. Mas essa tentativa não provocou nenhum estimulo da menina. 

— Eu tenho medo dela. 

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