Capítulo 2

A música alta, os flashes coloridos e freneticamente pulsantes ditavam o ritmo em que os corpos deveriam se movimentar. O cheiro de fumaça química misturava-se ao odor de suor dos corpos dançantes. Cada movimento selava o destino do inevitável choque com outro corpo. Pele deslizava sobre pele por conta da camada escorregadia de suor que se formava sobre a cútis.

O ar era pesado e doce. As bocas abertas esperavam que outros lábios viessem aplacar a sede de beijo e os olhos fechados davam asas à imaginação guiada pelo prazer químico. Janaina abria os olhos esporadicamente, apenas para se guiar e não se perder da companheira. Seus braços e pernas se moviam instintivamente, sua cabeça chacoalhava de um lado para o outro fazendo seu cabelo suado chicotear o próprio rosto.

Aos poucos o volume diminuiu até que a música cessou e seu corpo parou junto. Ela abriu os olhos vagarosamente e eis que varreram a multidão em busca de Dakota. Seus olhares se cruzaram e ela sorriu. Moveu-se devagar abrindo caminho entre as pessoas no grande salão. Agarrou a mão da outra moça e aproximou os lábios do ouvido dela.

— Quer beber algo? — Na verdade havia sido quase uma súplica.

Dakota meneou com a cabeça afirmando que sim. As duas afastaram algumas pessoas usando os braços para empurrá-las para os lados e caminharam até o balcão, sentam-se nos banquinhos tripé e pegaram o catálogo. Dakota rapidamente colocou o dedo sobre uma palavra e declarou:

— Quero essa!

— Mas você nem olhou, nem ao menos sabe qual é — questionou Janaina, largando o catálogo sobre o balcão de vidro com diversas manchas líquidas.

— E daí? Quero essa e pronto!

Janaina observou a companheira e percebeu o olhar levemente estrábico por conta da grande quantidade de álcool que ela havia consumido, mas aquele era um dia especial, podiam comemorar, pois, no dia seguinte Dakota receberia a notícia que tanto esperou; a nota de sua dissertação de mestrado. Não era sempre que faziam loucuras dessa natureza, então decidiu que não bancaria a chata e fez o pedido de duas bebidas iguais.

— Vamos tomar só mais essa e vamos embora. Tudo bem? — impôs Janaina, olhando a fixamente.

— Por quê? A noite mal começou — redarguiu Dakota, apoiando os cotovelos sobre o balcão e encaixando o queixo nas mãos em forma de concha.

— É... Eu sei. Mas você já está bêbada e isso não vai ser bom para você. Amanhã é seu grande dia, lembra?

— Ai Janaina, às vezes você é um porre! Parece uma velha. Que saco! — reclamou a moça gesticulando uma das mãos.

O barman serviu as bebidas e discretamente colocou um lenço de papel com seu telefone anotado, bem debaixo de um dos copos.

Dakota pegou sua bebida e virou o copo com imensa ansiedade. Janaina, por outro lado tomou um gole e percebeu o lenço sobre o balcão. Sorriu, balançou a cabeça para os lados e discretamente jogou o guardanapo no lixo. Tomou o restante da bebida e colocou o copo sobre o balcão. Dakota levantou-se abruptamente e bateu o copo no balcão, porém, com força demais. O copo se quebrou e as lascas de vidro cortaram sua mão. O sangue rubro e quente brotou do fundo da carne e escorreu pela palma da mão aberta enquanto a garota apenas observava sem reação. Janaina apressadamente segurou sua mão e levara-a ao banheiro.

— Olha só o que você fez! Isso foi fundo. Temos que lavar — disse Janaina preocupada. Ligou a torneira e enfiou a mão da namorada na água.

— Ai! Para! — reclamou Dakota após sentir a água entrar em seu ferimento. — Estarei bem amanhã. Relaxa!

Janaina procurou no bolso algo que pudesse colocar sobre o corte e encontrou um adesivo próprio para curativos. Ela era um poço de desastres, sempre se cortava das formas mais imprevisíveis e por conta disso, sempre andava com alguns desses adesivos. Colocou-o sobre o corte e beijou suavemente a mão da garota.

— Pronto, vai sarar!

As duas se olharam profundamente e o momento regado com o silêncio fez com que seus lábios se aproximassem e se tocassem com suavidade, depois com vontade e por fim com um ardente desejo e paixão.

Após alguns minutos, as garotas se encontravam do lado de fora da balada. Caminhavam solitárias pela calçada rumando para o local onde deixaram o carro. Dakota estava mais bêbada que de costume e apoiava-se em Janaina para manter o equilíbrio.

Depois de contornar a esquina Janaina avistou o SUV vermelho da companheira, parado ao lado de uma árvore de Ipê-rosa. O carro estava coberto por flores recém-caídas. A garota não se incomodava com aquilo, na verdade, pensava que as flores davam um charme extra ao veículo. Dakota não tinha condição alguma de dirigir. Então Janaina a colocou no banco do carona e a prendeu com o cinto de segurança. Assim que a garota foi acomodada no carro, caiu em sono profundo.

Janaina dirigiu calmamente por ruas  e avenidas completamente vazias ao som dos clássicos do rock transmitidos toda madrugada por uma determinada rádio local. A paisagem monótona a fazia relaxar e por vezes piscar demoradamente. O medo de sofrer um acidente fez seu coração acelerar. O nível de adrenalina aumentou e o sono passou. No entanto, Janaina viu à margem da estrada uma coisa que lhe chamou a atenção. Seus olhos fixaram na paisagem lateral, sua mente viajou para um mundo distante enquanto ela observava a grande árvore em chamas. Não era como um incêndio, a árvore estava tomada pelas chamas de maneira sobrenatural e inexplicável, como se o fogo fosse sua aura, seu perfume exalando, seu próprio brilho celestial, como se fogo e madeira fosse uma coisa só.

— Você foi escolhida! – Uma misteriosa voz ecoou em sua mente.

Ela passou tempo demais focada na árvore envolta em chamas e esqueceu-se da estrada, quando retomou sua atenção, percebera que era tarde demais. Inevitavelmente o carro chocou-se contra a mureta de proteção, girou sobre ela e desceu capotando pelo barranco até parar num charco aos pés da grande árvore seca. Janaina olhou para a companheira inconsciente, mas protegida pelo airbag e respirou aliviada.

Do lado de fora um par de pernas se aproximou da janela do carro sorrateiramente. A moça pendurada de cabeça para baixo procurou a trava do cinto, tentando se soltar antes que aquela pessoa chegasse perto demais. O desespero a tornou incapaz de realizar tal ação. O par de pés parou rente à porta.

O corpo se dobrou e se abaixou para observar o interior do veículo. Um rosto jovem e bonito de uma mulher indígena se revelou na penumbra. Ela estendeu a mão para dentro do carro e destravou o cinto de segurança. A mulher ajudou Janaina a sair do automóvel e a colocou sentada no chão, afastada do acidente. Retirou Dakota do veículo e a colocou deitada na relva com bastante delicadeza.

— Obrigada! — Janaina agradeceu tentando iniciar um diálogo. — Quem é você?

A mulher aproximou-se dela parecendo uma personagem de histórias em quadrinhos. Pele avermelhada, cabelos negros, lisos e compridos, olhos tão escuros como a noite, lábios carnudos cor de jambo, adornos artesanais enfeitando punhos, pescoço e tornozelos, e só vestindo uma saia curta feita com um tecido escuro. Abaixou-se próximo a ela e disse:

— Anahí é meu nome. Fui enviada para buscá-las.

— Buscar-nos? Do que está falando? Eu morri por acaso? Você é tipo um anjo? — perguntou Janaina meio confusa com a fala da mulher.

— Vocês foram escolhidas!

— Do que é que você está falando? — questionou Janaina levantando-se devagar, olhando em volta para tentar se localizar.

— Monã clama por ajuda! Não há tempo a perder, o mundo todo corre perigo. Vocês precisam abrir a passagem.

— Mas do que é que você está falando? — Janaina olhou para o carro capotado e sorriu. — Entendi. Eu estou sonhando. Devo ter batido a cabeça e estou delirando. Você é fruto da minha imaginação.

— Chame como quiser. Mas preciso levá-las agora. — Imediatamente a mulher gritou algumas palavras incompreensíveis para Janaina, bateu o pé no chão e tudo o que a outra moça enxergou foi um grande clarão alaranjado, e depois, tudo se apagou.

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