Capítulo 1

A sala estava escura com apenas um ponto de iluminação direcionado ao painel fixo na parede sobre o qual eram exibidas imagens vindas de um projetor preso numa armação fixada no teto. A turma estava em silêncio, não por respeito, não por interesse, mas porque a maioria estava entediada com a aula e acabavam se ocupando com rabiscos nos cadernos e mensagens nas redes sociais.

Cadeiras rangendo, bocas mascando chicletes, lápis e canetas girando e batendo contra o apoio de mão, zíperes fechando e abrindo, bocejos e pigarros se uniam numa sinfonia matinal preguiçosa e desestimulante embalada pela voz calma e sonora do professor de “Interação Oceano-atmosfera e mudanças climáticas”.

— A Lua tem se afastado da Terra nos últimos anos sem que saibamos o real motivo desse afastamento gradativo — disse o professor caminhando calmamente pelo tablado segurando um ‘laser’ na mão direita, enquanto a esquerda estava no bolso da calça marrom.

Os cabelos grisalhos bagunçados e óculos fundo de garrafa remendados com fita isolante preta, não eram parte de uma estética pessoal, mas sim resultado da falta de tempo de colocar essas coisas em ordem. Ubirajara esteve ocupado nos últimos dois anos. Tudo o que fizera, foi ler, reler e escrever artigos sobre o fenômeno que ele originalmente chamou de “Afastamento lunar”. A teoria criada pelo professor dizia que na última década a Lua se afastou nove milímetros da Terra. Segundo ele esse processo é gradativo e lento, e que logo começará a causar impactos sobre o planeta. Verdadeiras catástrofes nos esperam, segundo o especialista em fenômenos estruturais do planeta Terra.

— Embora o motivo desse afastamento ainda seja um mistério, podemos dizer que não é algo novo e sim um fenômeno que tem ocorrido há séculos ou milênios sem que nos déssemos conta. É certo dizer que nenhum acontecimento é desprovido de consequências, afinal como disse Newton, toda ação tem uma reação. Posso dizer seguramente que muitos dos eventos catastróficos que vemos ao redor do globo estão diretamente relacionados ao afastamento lunar. — Olhou para a turma vagando em pensamentos fúteis e assoprando bolas de chiclete, arrumou os óculos com o indicador e prosseguiu. — Para a próxima aula, quero que me entreguem um escrito teorizando as possíveis catástrofes que ocorrerão nos próximos dez anos por consequência desse fenômeno estudado por nós nesse último semestre.

O apito sonoro indicou o final da aula. Os alunos se levantam rapidamente arrumando suas coisas em suas mochilas e saíram apressadamente; exceto uma.

Kuanna, a aluna mais aplicada da sala aproximou-se lentamente do tablado, carregando seus livros pressionados contra o peito. Com seu sorriso encantador ela cumprimentou o professor, envergonhado e confuso, tentando esconder a secreta paixão que nutria pela moça.

— Professor?! — especulou ela esticando o pescoço para frente a fim de olhá-lo nos olhos.

Ubirajara de costas para a garota arrumava sua maleta. Pigarreou e virou-se lentamente com um sorriso tímido cravado no rosto.

— Bo... Bom dia, Kuanna! Gostou da aula de hoje? — Tirou a maleta de cima da mesa e a segurou na frente do corpo.

— Sim, muito. Tenho algo a lhe dizer.

— E o que seria? — perguntou o professor com certa animação, imaginando que a garota já teria algo formulado sobre o trabalho que acabara de pedir.

— Você foi escolhido!

— O quê? Como assim? — indagou Ubirajara franzindo o cenho.

Bip bip bip bip bip bip bip bip bip bip

O alarme cessou quando o rádio relógio foi atirado ao chão por uma mão trêmula e desgovernada. Ubirajara abriu os olhos e encarou o teto cinza, com reboco estufado e manchado de amarelo. Ele sentou-se na cama e olhou para a janela, o dia raiara, porém, o sol não viera com ele. O tempo estava nublado e cinza com uma brisa gélida entrando pela fresta da janela que deixara à noite. Coçou os olhos e respirou fundo.

— O mesmo sonho, de novo — disse para si mesmo.

Tocou o chão gelado com as pontas dos pés e os recolheu por alguns segundos. Calçou seus chinelos, levantou-se devagar, e dirigiu-se ao banheiro para escovar os dentes. Abriu o armário e guiado pelo instinto e memória muscular, pegou sua escova. Mas quando a olhou, algo estava diferente. Não era mais um objeto de plástico com cerdas e sim um pedaço de bambu fino e seco, com penas coloridas e sementes amarradas numa das extremidades. Largou o objeto repentinamente e quando este tocou o chão, pode ouvir um som de guizo.

Passou alguns segundos observando o estranho objeto até que o recolheu do chão e aproximou-o do ouvido. Chacoalhou-o e ouviu novamente o som do guizo. Sorriu e aproximou o pequeno item dos olhos para avalia-lo melhor.

Mopa’u. Leu mentalmente as pequenas inscrições talhadas naquele estranho bastão. Colocou-o de lado e prosseguiu com sua higiene matinal, depois tomou seu café e partiu para mais um fatídico dia de trabalho, lecionando para jovens que não queriam aprender.

Após a aula Ubirajara observou a garota com traços indígenas descendo as escadas e rumando para a porta. Seu recorrente sonho lhe veio à mente, quis falar com ela, mas suas palavras morreram em sua boca semiaberta assim que ela passou pela porta e desapareceu no corredor.

O professor juntou-se aos seus colegas de trabalho na sala de descanso. Alguns tomavam café enquanto conversavam sobre assuntos diversos. O excêntrico Ubirajara apenas observava tudo sentado no sofá de canto, isolado dos demais. Viu o professor de história indígena adentrar a sala e no mesmo instante aquela estranha palavra lhe veio à mente; assim como o objeto no qual ela estava escrita. Levantou-se calmamente, serviu-se de um café e timidamente se aproximou da mesa onde estava o especialista em assuntos indígenas.

— Bom dia! — cumprimentou Ubirajara olhando os papéis que o professor segurava.

— Bom dia, Bira! — respondeu o homem chamando-o pelo apelido, arriscando uma abordagem mais intimista. — Tudo bem? Como está a turma esse semestre?

— Bem, estou bem. É... É isso, estou bem. — Tomou um gole do café e olhando o homem ao lado nos olhos, respondeu sua segunda questão.  — Como sempre, estão desinteressados. Não sei o que fazer.

— Dê tempo a eles. Vão se tocar quando precisarem — afirmou o homem organizando seus papéis numa pasta preta com saquinhos plásticos transparentes.

— Escuta... – iniciou Bira. — Eu tenho uma coisa para te perguntar. É sobre sua área.

— Pergunte! — ordenou o professor sorrindo, como se sentisse satisfação em poder sanar as dúvidas de alguém.

— Mopau... O que isso significa?

— Mopa’u! — repetiu o estudioso de assuntos indígenas. — Vem do léxico Guarani, talvez de um dialeto... É isso mesmo, dialeto Mbyá e quer dizer algo como ‘abrir passagem’. Onde leu isso?

— Sabe que nem sei — mentiu Ubirajara. — Só lembro que isso ficou na minha cabeça e pensei que era melhor perguntar para o especialista do Arnaldo. — Terminou a frase com um tapinha nas costas do colega de trabalho.

Os dois homens sorriram e terminaram o intervalo sem trocarem mais nenhuma palavra. As últimas aulas foram tão enfadonhas quanto as primeiras, por sorte pareceram passar mais depressa. Logo após elas, Ubirajara voltou para casa enfrentando o trânsito mortal da grande capital. Ao contrário do período matutino, à tarde o sol castigava os motoristas presos nos engarrafamentos.

Naquela tarde Ubirajara não tirou seu costumeiro cochilo vespertino. Pegou a estranha vareta enfeitada e sentou-se na varanda enquanto a observava.

O que será isso? Como veio parar aqui? De onde isso saiu? Diversas perguntas giravam em sua mente. O sol baixou por trás dos prédios e lançou sobre sua casa a sombra do entardecer. O professor levantou-se e caminhou até seu quarto. Colocou o item em cima do móvel ao lado da cama, fechou a janela e partiu para o banheiro intencionado a tomar um banho.

Após jantar e assistir ao seu programa de televisão favorito ele foi para a cama. A noite estava estranhamente quieta. O silêncio o incomodava de maneira sobrenatural. Nenhum gato miava, nenhum cão ladrava, nem mesmo um carro ou moto passava pela rua. Por mais que tenha demorado, acabou dormindo.

Despertou com um toque gélido sobre seu rosto. Olhando ao redor avistou perto de sua cama um vulto imóvel mesclando-se à escuridão. No escuro era difícil identificar quem seria, mas fosse quem fosse não era um convidado, já que Bira morava sozinho.

— Quem é você? O que está fazendo na minha casa? — gritou enquanto saltava da cama.

— Venho buscá-lo! — disse a voz em tom firme e sereno, com um timbre andrógino.

— Buscar-me? Quem é você, seu maluco?

O vulto moveu os braços e pisou forte no chão. Após o som oco, um clarão azulado cegou Ubirajara, instantaneamente o local foi tomado por uma mística fumaça que o fez tossir incontrolavelmente até desmaiar.

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