Capítulo V

Na manhã seguinte, Pedro recebeu alta médica do hospital, eu e minha tia fomos buscá-lo. Era como se alguns quilos das centenas que haviam estado em suas costas o tivessem deixado.

— Bom dia, querido, tudo bem? — perguntou minha tia, abraçando-o.

— Bom dia, estou bem, e a senhora? — respondeu, enquanto retribuía aquele terno abraço materno.

— Sabendo da sua alta, estou bem melhor.

— Bom dia, Ricardo, tudo bem?

— Bom dia, primo! Tudo bem, e contigo?

— Estou bem melhor, graças a vocês.

— Bom ouvir isso. Fiquei responsável em levar os objetos que vai precisar.

— Obrigado, primo! Sempre serei grato pela sua ajuda. 

Após assinar uns documentos e receber um pequeno número de receitas médicas, Pedro foi orientado a voltar no décimo quarto dia e foi liberado. Caminhava aos pulos, apoiando-se em meus ombros e nos de minha tia até o estacionamento do hospital. Paramos brevemente na farmácia para comprarmos o que havia sido receitado. Em pouco tempo, chegamos à casa de minha tia. Assim que ela destrancou o portão e a porta, tirei Pedro do carro e o carreguei até o seu quarto.

— Obrigado, primo! Vamos tomar um café? 

— Uma xícara de café sempre é bem-vinda.

Depois de terminarmos o café, agradeci minha tia e disse:

— Tenho que ir trabalhar, amanhã trarei as muletas e o objeto para deixar sua perna para cima, em repouso. Se precisar de qualquer coisa, me ligue.

— Mais uma vez, obrigado pela ajuda, primo.

— Sei que faria o mesmo por mim — falei abraçando meu primo.

Minha tia me acompanhou até o portão e ficamos por alguns minutos papeando, ao retornar, ela entrou no quarto do rapaz, sentou-se ao seu lado e perguntou: 

— Pedro, gostaria da sua real sinceridade, está mesmo se sentindo bem?

— Estou bem. Por que é tão difícil acreditar no que digo?

— É visível que nem você mesmo tem mais conhecimento do que deseja para sua vida. Se não está sendo sincero consigo mesmo, não estará sendo sincero comigo.

— Mãe, sinceramente eu não sei o que está acontecendo. É como se eu estivesse errando com todos e todos me esmagando, mesmo sem saberem como estou me sentindo.

— Você é a única pessoa que pode dar respostas às suas próprias perguntas.

— Meu pensamento pede algo que foge do controle, tenho que começar do zero.

— Começar do zero vai lhe fazer muito bem. Isso aqui não faz com que se recorde da Maria Fernanda? — perguntou minha tia, apontando para o porta-retrato que permanecia no criado-mudo.

— Mãe, não é que não queira me lembrar dela, só quero ter um controle sobre isso.

— Existem dois tipos de história, aquela que já existe e nos enterramos nela para fugirmos da realidade; e aquela que escrevemos à procura de dias melhores. Pessoas fracassadas perdem o bom da vida. A escolha é sua.

— Estou completamente perdido, preciso de um tempo para saber o que realmente necessito, que buraco é esse que está dentro de mim...

— Filho, não quero parecer enxerida, sou sua mãe e me preocupo com você.

— Eu sei.

— Você sempre gostou de conversar, principalmente com seus melhores amigos. Tem que colocar o que está preso aí dentro para fora.

— Estou colocando aos poucos, é uma situação complicada. 

— Irei preparar o almoço. Mais tarde conversamos um pouco mais — falou minha tia, enquanto beijava sua testa.

Em poucos minutos, Pedro recebeu a visita do agente de seguro que lhe prometeu que, em poucos dias, receberia um carro novo. No decorrer do dia os vizinhos visitaram. Pedro nem sabia o quanto aquelas pessoas gostavam dele, sentiu-se realizado, feliz.

No início da noite, seu corpo pedia desesperadamente por um banho. Sabia que não seria fácil, mas precisava urgentemente de um banho. Cobriu o gesso com um saco de lixo, colocou um banquinho dentro do box e ajeitou a perna em cima; dessa forma, consegui tomar seu desejado banho. Vestiu o pijama, lanchou e foi se deitar conforme as recomendações médicas. O sono estava batendo à sua porta, havia uma luta dentro de si, precisava ser forte. Depois da guerra contra o sono por quase uma hora e meia, entrou no bate papo e não encontrou Lis. Resistiu por mais meia hora até ser nocauteado pelo sono.

Às seis horas da manhã, Pedro acordou com o celular tocando, olhou no visor e o número era desconhecido:

— Alô.

— Sabe quem está falando?

— Perfeitamente, o que deseja?

— Antigamente era mais educado. O que houve, a perna quebrada o fez perder sua postura?

— Não foi minha perna quebrada o motivo de perder minha postura, mas o que o mundo vem me mostrando diariamente. Principalmente de pessoas que só falam mal dos outros pelas costas, pois não têm coragem de dizer olhando nos olhos.

— Não me diga que o playboyzinho ficou chateado com isso?

— Tenha certeza absoluta que não, Tânia. Existem pessoas que saem de nossas vidas e deixam suas marcas, e existem aquelas que saem como se nunca tivessem entrado. É assim que vejo sua passagem em minha vida.

— Você é um cara vaidoso, presunçoso. Acha mesmo que o mundo gira em torno de si?

— Quero que se foda o que você pensa de mim, não lhe devo porra nenhuma.

— Quando se é uma boa pessoa, não perdemos as...

— Vai pra casa do caralho, me deixa em paz.

Desligou o celular. Ele sempre tentava não ser grosseiro, mas não aguentava mais segurar. Na vida, poucas pessoas irão retribuir os favores concedidos a elas e, naquele momento, os olhos e o coração de Pedro estava dentro de um túnel, e a luz ainda não havia surgido. Com isso, ele foi cometendo erros, riscando vários nomes de sua mente, destruindo amizades de anos, de pessoas confiáveis, tudo por causa de uma simples briga. Não demorou muito, para que eu aparecesse com os objetos que Pedro precisava.

— Pedro, bom dia, trouxe o que precisava...

— Primo, estou de saco cheio, essas porras que se dizem amigos estão mais para amigos do demônio do que para amigos de seres humanos.

— Primo, lidar com você está sendo difícil e isso demonstra que quem está contigo nesse momento são as pessoas que realmente o amam. Você se fechou para o mundo dando espaço para a sua arrogância. Se continuar dessa forma, vai acabar sozinho.

— Não esperava ouvir isso de você.

— O que faz uma amizade se tornar verdadeira são as verdades ditas. Se falei algo que não gostou, talvez seja para o seu bem, pense nisso. Tenho que ir, bom dia, se cuida.

Pedro passou a manhã inteira pensando no que eu havia dito, mas não conseguiu repostas para o que queria. À tarde, começou a ler um livro e se aventurar na história inspirada por um escritor totalmente desconhecido. Procurou, no livro, alguma forma de entrar em contato para elogiar sua escrita, porém não encontrou. Buscou pelo nome nas redes sociais; por incrível que pareça, não teve sucesso. Ficou sem entender o motivo de um escritor ter relatado tão perfeitamente uma obra e, ainda assim, viver no anonimato.

O calor da noite era intenso, os ventiladores conseguiam manter ventos frescos por alguns minutos. Pedro sabia que não seria boa ideia se ficasse no seu quarto, levou o notebook para a sala, ligou os ventiladores e ficou sentado no sofá, com a perna engessada em cima do assento. Colocou algumas canções para tocar e se sentiu em outro ambiente envolto por excepcionais melodias. Fechou os olhos, e parecia que sua alma percorria a Via Láctea, todo aquele momento mágico fez o sono dar os primeiros passos. Entrou no bate papo ouvindo músicas. Logo, Lis apareceu.

— Boa noite, mocinha! Está chateada comigo?

— Boa noite, Pedro! Não tenho motivos para estar chateada com você.

— Ontem você não apareceu, fiquei com a pulga atrás da orelha.

— Não tenho o costume de entrar todos os dias.

— Nem eu, mas depois que comecei a teclar com você, tudo passou a ser novo.

— Amei as palavras. Gostaria de saber o que está pensando nesse momento.

— Se ainda gostaria de conversar pela webcam. 

— Será uma honra.

Ao ligar a webcam, Pedro teve a primeira visão da flor de lis. Ficou impressionado com o que viu. Por alguns instantes, apenas a observou, e percebeu que ela fazia o mesmo. Nem ele nem ela imaginavam o que um ou outro pensava, mas ambos logo voltaram à realidade, e o rapaz comentou:

— Educada, conversa bem e ainda é linda.

— Não queira conhecer meus defeitos... — falou Lis aos risos.

— São tantos assim?

— Como disse, não queira conhecer.

— Então, atrás desse modelo de princesa pode morar uma leoa?

— Não julgue as pessoas pela sua aparência, pode errar consigo mesmo.

— Então estou errando em te elogiar? 

— Quanto melhor me conhecer, mais verdadeiros serão seus elogios.

O que impressionou Pedro não foi apenas a beleza de Lis, mas sua maturidade, seus conhecimentos e sua persistência. Tudo o que faltava ao rapaz, Lis tinha de sobra.

— Diga-me, você realmente não tem namorado? — perguntou ele, desconfiado.

— Estou sendo sincera, não acredita?

— Difícil de acreditar.

— Por quê?

— Vejo que você é bem misteriosa.

— Quem de nós é mais misterioso? 

— Acredito que poucas pessoas tiveram o privilégio de me conhecer inteiramente. Vivo em um mundo sem sintonia, sem saber o que realmente busco para minha pessoa. É como se a felicidade tivesse fechado as portas para mim. Eu sou o mais misterioso.

— Será que não é você mesmo que está fechando as portas para a felicidade? Já pensou nisso?

— Por que fecharia? Todos nós estamos em busca da felicidade. 

— Estar atrás é uma coisa, se entregar de corpo e alma por ela é outra coisa. 

— Talvez seja pela primeira opção que estou onde estou.

Aquela noite havia sido diferente das outras vezes, e não só por ter observado o belo sorriso dela em todas as frases engraçadas que foram ditas. Havia algo em seu jeito cuidadoso de dizer as palavras e em seus gestos carinhosos com as pessoas. Mesmo por trás de uma tela de computador, Pedro se sentia bem com a presença dela, era como uma espécie de combustível que ele necessitava e, a cada noite em que conversavam, ficavam mais íntimos. Eles tiveram uma semana de bons papos, pareciam vivenciar um romance virtual. Todas as noites, ele e Lis conversavam através da webcam, e em uma dessas noites, o calor estava exagerado, e ela estava deslumbrante, era muita beleza para uma só mulher.

— A primavera chegou — comentou o rapaz, encantado enquanto olhava para Lis.

— A primavera chegou? Não entendi.

— Desde que te conheci, venho observando sua beleza, suas belas palavras, e o que tem de melhor: seu encantador sorriso. Mas até ontem, essa rosa se encontrava fechada; hoje, tive o privilégio de presenciar suas ilustres pétalas abertas. Enfim, a primavera chegou para mim.

— Ainda estou sem entender — comentou Lis, à procura de uma resposta.

— Sempre bem arrumada; hoje vestindo roupas mais confortáveis.

— E se você me visse mal vestida, o que me diria?

— Só vendo para saber — respondeu rapidamente o rapaz, aos risos.

Depois de meses, mesmo não tendo conhecimento, Pedro demonstrou que sua porcentagem de convívio com as pessoas estava aumentando. De uma simples conversa semanal, começou uma amizade, e o elevador que eles utilizavam não parou, continuou a subir e foi deixando ambos bem mais à vontade. Pedro não estava pronto para outros romances, não queria entrar imediatamente em um relacionamento, havia acabado de sair de um que durou aproximadamente sete anos. Não adianta se envolver com outras pessoas quando o amor que sentimos pela anterior ainda se encontra presente. A fina flor tinha total noção que o coração de Pedro se encontrava fechado, estavam se apegando tanto, que nenhum deles sabia em qual andar o elevador poderia parar, tinham ciência que estavam vivendo em um mundo virtual. O que ele vinha sentindo por Lis não era amor à primeira vista, a presença dela era muito agradável, e suas palavras eram uma espécie de música para os ouvidos do rapaz. Era algo que ele necessitava, e Lis caiu de paraquedas no lugar certo.

O estranho da existência é que só aprendemos mais sobre a vida quando tropeçamos e caímos. No décimo quarto dia, deitado em sua cama, Pedro começou a refletir sobre as constantes ausências de pessoas em sua vida e percebeu que a cada momento lhe faltava alguma coisa. Sabemos que cada pessoa tem sua mentalidade, escolhem o que acham melhor para si, trilham seus caminhos fazendo cada um o seu destino, só que algumas pessoas demoram a entender isso. Pedro parou para pensar totalmente na vida, mas logo voltou à realidade com minha tia:

— Pedro, sabe muito bem que está proibido de dirigir — falou minha tia recordando os fatos.

— Sei perfeitamente.

— Você pegou o carro para deixá-lo jogado na garagem? 

— Mãe, a senhora sabe como amo carro...

— Não vou mais me meter em sua vida, estou cansada de tentar ajudá-lo e você fazendo sempre as mesmas artes. Hoje você tem consulta com o Doutor Anderson — falou minha tia saindo do quarto.

Como não podia dirigir, Pedro ligou para os poucos amigos que ainda lhe restavam e, na hora marcada, Ulisses o levou ao consultório. Os enfermeiros retiraram o gesso, fizeram algumas análises e, depois da checagem concluída, engessaram novamente. O médico pediu para que assinasse determinados documentos e lhe cedeu cópias dos originais. Havia duas semanas que Pedro não observava as ruas, então pediu para Ulisses dar um passeio pela cidade: precisava respirar novos ares. O estranho era que, por onde passavam, tudo parecia ser novo. Era como se ele tivesse acordado depois de muitos anos em coma e visse a cidade totalmente renovada.

— Ulisses, que tal fazermos um lanche em nossa lanchonete preferida?

— Hoje, estou à sua disposição — respondeu o rapaz aos risos. 

— Ligue o som e não vamos perder mais tempo.

Ao entrarem na lanchonete, Ulisses foi fazer os pedidos. Pedro se sentou à mesa, observando as novidades que o cardápio apresentava. Ao levantar a cabeça, percebeu que uma moça o observava. Se não tivesse visto Lis pela webcam, teria jurado que aquela moça era a majestosa. Não demorou muito para a desconhecida se levantar e caminhar até a mesa em que o rapaz estava sentado:

— Desculpe-me pelo incômodo, queria ter certeza de que era mesmo o escritor do meu livro favorito!

— Posso saber o nome do seu livro favorito? 

— Vivendo & Aprendendo — respondeu a moça com um sorriso cativante. — Poderia me dar um autógrafo?

— Tem algum problema se esse autógrafo for escrito em um guardanapo?

— Não vejo problema, guardarei dentro do meu livro favorito. 

Pedro autografou o guardanapo e o entregou à sua fã, no exato momento em que Ulisses chegava com os pedidos.

— Muito obrigado! — agradeceu a desconhecida.

— Eu que tenho que lhe agradecer! 

Conforme apreciavam o pedido, Ulisses puxou um assunto muito citado entre os escritores:

— Pedro, posso te fazer uma pergunta?

— Fique à vontade!  

— Sei que trabalha, já publicou um livro. Gostaria de saber o que significa a literatura para você, prazer ou fama?

— Prazer! Esses dias li uma belíssima história de um escritor desconhecido. Busquei por detalhes que me levassem até ele, porém não tive sorte. Já fui em algumas Bienais e conheci vários escritores, trocamos livros, e li cada história que poderia, tranquilamente, virar filme. Mas aqui no Brasil, a literatura está muito abaixo dos padrões. 

— Então não escreve seus livros pensando na fama?

— Sinceramente, não; não sou um bom escritor, mas escrever está em meu DNA. Escrever me faz fugir da realidade, de lembranças doloridas e dos problemas do dia a dia. Escrever me faz viajar para qualquer lugar do mundo. 

— Fiquei sabendo o que aconteceu entre você e a turma.

— Quero que esse bando de babacas se exploda. Querem a todo custo jogar a Tânia em meus braços. Estou cansado disso.

— Vocês são amigos há muitos anos, uma simples briga não pode acabar com uma amizade de vinte anos. Tem algo nesse meio que não está batendo.

— Não está batendo? Não entendi o sentido — arriscou Pedro.

— Você sempre foi durão, nunca foi de ouvir conselhos nem de dar conselhos. Só que chega um momento na vida, em que precisamos parar de atravessar o semáforo amarelo e começar a parar no sinal vermelho. Analisar onde estamos, ter certeza de para onde queremos ir e começar uma nova jornada. Essa jornada não inclui novos amigos, novos lugares, pois pertinho de nós, existem pessoas pra quem devemos desculpas.

— Vou pensar nessas palavras, obrigado.

Depois que terminaram o lanche, um aperto de mão foi dado por parte de Pedro como agradecimento, Ulisses perguntou:

— Quer dar mais uma volta?

— Vou para casa descansar a perna e pensar no que me falou.

O pouco tempo que se ausentou do seu quarto acompanhado das palavras ditas pelo amigo fez com que Pedro desse um novo prazer a detalhes que nunca havia prestando atenção antes. Durante longos anos, passava por aquelas ruas diariamente, era como se tudo aquilo fosse invisível e, somente naquele momento teve a oportunidade de observar. Durante o trajeto, ficou pensando nas palavras da doutora e de como era possível passar por várias ruas e não contemplar pequenos detalhes. Vendo-o pensativo, Ulisses preferiu dar carta branca ao silêncio, e assim foram até chegarem à casa da minha tia:

— Ulisses, muito obrigado pela ajuda, te devo uma.

— Se precisar de algo, conte comigo!

— Obrigado pelos conselhos.

— Se conselhos fossem bons, não seriam gratuitos. Não busque por pessoas perfeitas, porque ninguém é perfeito. Busque por pessoas que lembrem de você em palavras trocadas, sorrisos divididos e no cuidado que têm por ti. Pense nisso.

— Vou pensar. Mais uma vez, muito obrigado.

Depois de analisar as ruas com os olhos da doutora, as vegetações que brotam no cimento crescem onde não deveriam e, com paciência e vontade exemplar, elas se erguem com dignidade, parecem inclassificáveis para a botânica, uma estranha beleza que enfeita os cantos mais cinzentos, uma metáfora da vida irrefreável, o rapaz partiu para uma boa ducha gelada, vestiu uma camiseta e uma bermuda, sentou-se no sofá e ficou vendo as reportagens. Como havia lanchado na rua, estava sem fome.

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