Capítulo IV

— Desculpe atrapalhar a conversa de vocês, hora do almoço — falou a enfermeira da casa de repouso.

— E o que teremos de bom para hoje? — perguntou dona Maria.

— Sopa de legumes — respondeu a enfermeira.

A enfermeira Samanta era muito criticada na casa de repouso, não pelos funcionários, mas pelos demais pacientes. Ela tinha um carinho especial pelo Senhor Pedro e pela Dona Luciana. Ela sempre os ajudava em suas alimentações, principalmente ao Senhor Pedro que vivia em um quarto separado dos demais. Diariamente ela os levava para passearem pelo jardim coberto, onde existia mais de seiscentas espécies de rosas que eram vendidas para manter a casa de repouso, um lugar gratuito para os idosos. A enfermeira cuidava deles como se fosse uma filha cuidando de seus pais, e isso deixava a muitos de cabelos em pé, principalmente, o Senhor Baltazar. Ao término do almoço, a maioria foi se deitar, menos Dona Luciana que, ao chegar no quarto do Senhor Pedro, ouviu a conversa entre ele e a enfermeira:

— Está tudo bem?

— Eu não sei — respondeu ele, assustado.

— Venha ouvir o conto que Ricardo está contando para nossos amigos — pediu Samantha.

— Não quero. 

— Boa tarde, filha, como ele está? — perguntou Dona Luciana, ao entrar no quarto.

— Não está em um bom dia — respondeu a enfermeira.

— Pelo visto, não tocou nas palavras cruzadas, não tentou decorar os poemas que tanto ama. Seu primo em breve dará continuação à história. Sabemos que não gosta de multidões, mas venha nos fazer companhia. Sua presença é agradabilíssima!

— Melhor não — respondeu senhor Pedro.

— Vim lhe servir seu almoço. Como recompensa, o senhor vai ouvir a história que Ricardo está contando sentado ao meu lado — falou Dona Luciana.

O Senhor Pedro, em seus dias mais tranquilos, obedecia à enfermeira, mas em seus dias mais difíceis, somente acreditava nas palavras de Dona Luciana. Levá-lo para ouvir a história contada por Ricardo era quase impossível, menos para Dona Luciana. Os demais idosos nem faziam muita questão de sua presença, pois ele sofria de uma doença neurodegenerativa progressiva, o Alzheimer, e, às vezes, tratava os companheiros friamente. A regra criada pelos próprios idosos era de uma hora e meia para descansarem. Depois de terminar o almoço, o senhor Pedro, na companhia da enfermeira, entrou no banheiro e, por alguns instantes, ficou de frente para o espelho, com um pensamento que o incomodava. A enfermeira abriu a gaveta e pegou a pasta de dentes do senhor. Ajudou-o a escovar os dentes e, em seguida, o senhor pegou a toalha e passou sobre o rosto. Caminhou ao lado de Samantha pensativo, até chegar ao corredor do quarto onde dona Luciana o aguardava. Ao chegarem no salão, foram abordados pelo senhor Baltazar:

— Podemos saber por que Luciana e Pedro recebem tantos confortos da enfermeira Samanta? 

— Não! Não podem — respondeu bravamente dona Luciana.

— Vamos voltar ao que interessa — falou Ricardo.

— Estou com a tarde livre, e vou ouvir a história na companhia de Senhor Pedro e de Dona Luciana — falou a enfermeira.

— Seja bem-vindo, Pedro — falou Ricardo.

Caras e bocas foram feitas e, antes que alguém pudesse dizer uma palavra, Dona Luciana pediu:

— Ricardo, por favor, continue.

***

Dias e noites, Pedro ficou deitado na cama com a perna para cima em total repouso, só se levantava para ir ao banheiro e fazer suas refeições. Começou a ler alguns livros que estavam, havia anos, em sua gaveta. O problema era que tanto repouso acabou lhe causando insônia. A noite inteira, passava assistindo filmes. Em uma dessas noites, resolveu entrar novamente naquela sala de bate papo e, por incrível que pareça, o nome Lis estava presente. Não tinha certeza se era a mesma pessoa com quem havia conversado dias antes, mas tentou:

— Boa noite, Lis! Tudo bem?

— Boa noite, Pedro Paulo! Estou bem, e você?

— Estou indo.

Novamente teclaram por horas. Um papo saudável. O estilo de conversa continuava afetuoso e delicado e esse detalhe fez com que Pedro se sentisse apaziguado. Era como se eles se conhecessem havia muitos anos, pois ela também se sentia tranquila para lhe contar detalhes sobre sua cidade, seu amor pelos exercícios físicos e seu refinado gosto por vinhos, principalmente em dias frios. A flor não deixava suas dúvidas passarem em branco. Quando Pedro usou a expressão momentos marcantes, ela logo perguntou:

— Momentos marcantes? Explique-me.

— Vou lhe dar um exemplo. Se você fosse minha namorada e se, por algum motivo, nosso namoro acabasse, eu guardaria os momentos marcantes, os momentos mais inesquecíveis que tivemos. A vida é complicada demais para ficarmos pensando negativo, criando inimigos que já nos proporcionaram momentos agradáveis. No entanto, isso vai depender de como e por que o nosso namoro terminou.

— E se sua namorada o traísse? Mesmo assim guardaria bons momentos?

— Como acabei de digitar, isso vai depender de como e por que o nosso namoro terminou.

A flor queria explicações para todas as suas frases, como se estivesse testando o rapaz. Porém ele não tirava as razões dela: estavam em um mundo virtual, nunca se sabe quem realmente está por trás das telas.

— Fale-me um pouco mais sobre você, ou melhor, escreva-me um pouco mais sobre sua pessoa — digitou Lis.

— O que gostaria de saber? Pergunte-me.

— Quais foram os motivos que o levaram ao término do seu namoro?

— Quando se vive um incomensurável amor, cedemos facilmente às exigências da pessoa amada, pois tudo o que mais desejamos é permanecer ao seu lado. Entretanto, existem os contras. Conforme o tempo vai passando e os arranca-rabos aumentando, a afeição vai esfriando, e aquela visão que tínhamos da pessoa começa a mudar o percurso. Depois de anos de namoro, ela começou a me dizer que era a pessoa certa no tempo errado. Fiquei confuso e confesso que meu coração ficou despedaçado. O erro dela foi não ter me amado da mesma forma que eu a amei.

— E como você reagiu depois do término do namoro?

— Alguns meses depois do término, comecei a entender os motivos dela. Certa vez, ela me falou uma frase que me fez entender que tinha algo errado entre nós.

— Posso saber o que ela lhe disse? 

— “Se você realmente me quer, jogo tudo para o alto e vou morar com você”. Ela queria que eu fizesse a escolha, sendo que a escolha teria que ser feita por ela. Como ela implorou para que eu fizesse a escolha, respondi que precisava de um tempo para pensar.

— Se você era louco pela sua ex e se ela realmente o amava, por que não optou em permanecer ao lado dela?

— Porque a escolha não devia ter que partir da minha pessoa e sim, dela. Durante todo o tempo, ela ficou em cima do muro esperando uma resposta da minha parte. Ao perceber que ela não tomaria uma atitude, decidi tomar por ela. Por mais que eu tivesse encontrado minha cara metade, por mais que a tivesse amado, construído sonhos e estivesse vendo o mundo com outros olhos, permanecia com os pés no chão. Quando mais precisei de seus carinhos e sua atenção, ela simplesmente se aquietou. Tinha aprendido a viver, havia tropeçado e caído diversas vezes, mas em todas elas me levantei. Existem momentos que temos que acreditar em nós, acreditar em cada passo dado, ter mais compreensão e entendimento, além de nos amarmos mais, tratar melhor a nossa pessoa, planejar um futuro dos sonhos enquanto nos damos prioridades exclusivas — digitou, como quem reafirmava para si aquele compromisso.

— Tem caroço nesse angu. Ainda pensa nela?

— Muito.

— Talvez isso não seja amor da sua parte.

Conforme o bate-papo fluía, as horas iam passando. A cada minuto, a conversa lhes permitia serem mais diretos. Junto à curiosidade, vinha o cansaço; e a despedida logo foi iniciada:

— Lis, o cansaço está batendo em minha porta.

—Também estou cansada, boa noite, bons sonhos.

— Boa noite, bom descanso e bons sonhos para você também. Só mais uma pergunta, conversaremos amanhã?

— Pode ter certeza que sim.

Desligou o notebook, colocou-o na mesinha do lado e caiu na cama. Pedro não dormiu de imediato, ficou preso em um pensamento que nem ele mesmo conseguia definir. Estava completamente perdido, e encontrar o caminho, a cada dia se tornava mais e mais complicado.

***

— Desculpe-me atrapalhar... Perdido..., encontrar caminho..., como assim? — perguntou o Senhor Baltazar.

— Se não prestar atenção, não entenderá a história, Senhor Baltazar — rebateu Samantha.

— Posso continuar? — perguntou Ricardo.

— Continue — pediu Samantha.

***

Na manhã seguinte, após uma longa conversa na sala do psicólogo e da psiquiatra que proibiram Pedro de conduzir automóveis, de beber bebidas alcoólicas e de parar de tomar seus remédios por pensar estar curado, o rapaz voltou para o quarto, onde eu estava o esperando. Conversamos por horas, e era visível que ele estava fora de si. Mas nem ele mesmo era capaz de diagnosticar o que sentia, o que queria, o que o tiraria daquele empecilho. Ao cair da noite, o gostoso silêncio no hospital fez Pedro procurar por sua companhia.

— Boa noite, Pedro, tudo bem?

— Boa noite, Lis, estou bem e você?

— Graças a Deus, tudo bem. Como foi o seu dia? — perguntou a majestosa, outro apelido dado a Lis por Pedro.

— De um tempo para cá, meus dias têm sido estranhos. Sabe quando você quer algo, mas não sabe o que é?

— Sinceramente, não sei. Quando queremos algo, sabemos perfeitamente o que é.

— Essa é a pior parte, ninguém consegue me entender. Para muitos, já estou louco.

— Como quer algo e não sabe o que é?

— Não sei, parece que estou caminhando em um túnel e estou muito longe da saída. Que tal paramos de digitar e ligar nossa webcam? Acredito que a conversa seria melhor.

— Do jeito que estou, iria assustar você.

— Sem problema.

— Desculpe-me — respondeu a moça. Lis era calma, sábia, gentil e justa. Ela estimulava Pedro, tinha um poder único. Ao mesmo tempo, era misteriosa, aventureira, destemida e ainda era amável.

— Quer descansar?

— Ainda não. O que você fez hoje? — insistiu ela. 

— Nada, a não ser pensar. Estou me acostumando a permanecer sozinho. A verdade é que o ser humano se cobra muito e se doa pouco. 

— A vida de solteiro é aleatória. No decorrer da semana, você vai se sentir sozinho; nos finais de semana, irá se sentir abastecido.

— A sociedade é tomada por seres humanos sem vínculos efetivos, corroídos pela insegurança, livres de compromissos, que se relacionam de forma frágil e insegura em um mundo onde enxergamos os outros e a nós mesmos como uma espécie de mercadoria. 

— Hoje as relações não são feitas para durarem, são estruturadas obedecendo a princípios consumistas — avaliou Lis, elevando a análise a um patamar mais amplo.

— Hoje, a qualidade perde lugar para a quantidade.

— Ela mexe tanto assim com você? 

— Minha cabeça parece uma bomba pronta para explodir a qualquer momento.

— Descanse, boa noite, beijos e se cuida.

— O que houve? Escrevi algo que a ofendeu? 

— Não! Está machucando a si mesmo, e eu não quero ter participação nisso.

— Sinceramente não entendi — escreveu Pedro confuso.

— Não posso passar desse limite, você terá que descobrir.

— Somente mais uma pergunta.

— Faça-me.

— Irei a encontrar novamente?

— Todos os astros revelam que sim.

— Boa noite, bons sonhos e obrigado pela companhia. Perdoe-me por não estar bem.

— Fique tranquilo, boa noite, bons sonhos e se cuide.

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