Capítulo III

O dia estava abafado. O calor era tamanho que, depois do almoço, Pedro me ligou convidando-me para irmos a um popular ribeirão da cidade. Convidamos mais dois amigos, que convidaram não sei quantas pessoas. Uma dessas convidadas era Tânia.

Ao chegarmos, notamos que o local estava tão lotado, que não havia vaga para estacionar. Resolvemos ir para outro ribeirão muito pouco frequentado, talvez porque ficasse muito longe. Aquele imenso rio e aquele mundo verde a perder de vista era tudo o que precisávamos. Depois de nadar por alguns minutos, Pedro se sentou em uma pedra para admirar a paisagem. Não demorou muito para o imprevisto acontecer:

— Posso me sentar contigo? — perguntou Tânia para Pedro.

Por saber de quem se tratava, meu primo queria ter dito não, mas como as pessoas estão em constante evolução, respondeu:

— Fique à vontade.

Ao se sentar, a moça passou uma das mãos em seus longos cabelos, em seguida, passou umas de suas mãos sobre o ombro do rapaz. Pedro contou até cinco, evitando assim, falar o que ninguém gostaria de ouvir. As inúmeras tentativas dela o aborreciam. Não sei se depois de tantas respostas negativas ela fazia aquilo para o aborrecê-lo ou se pensava que estava apenas insistindo no que queria. Tânia era completamente apaixonada por Pedro, e essa paixão já durava muitas primaveras. 

— Pedrinho, seja sincero, me acha feia?

— Você sabe perfeitamente que não — respondeu o rapaz grosseiramente.

— Diga-me o que tenho de errado, que juro que mudarei.

— Tânia, suas qualidades são maiores que seus defeitos.

— Se não me acha feia, se tenho qualidades, por que não me dá uma oportunidade?

— Muitos homens desejam você de diversas maneiras, alguns desejariam ficar com você, outros desejariam namorar você, e existem aqueles que desejariam levá-la ao altar. A gente se conhece há muitos anos...

— Você sempre me diz as mesmas coisas, que nos conhecemos há muitos anos, blá, blá, blá, mas não me dá uma oportunidade...

— Posso concluir? — perguntou Pedro, explodindo de raiva.

— Desculpe-me, conclua.

— Nenhum ser humano é igual ao outro. Se lhe desse a chance que você tanto me cobra, estaria te levando a um mar de decepções. Não é a nossa amizade de anos que me impede de lhe dar a oportunidade que tanto deseja. O motivo é que sou daqueles que, para ficar com alguém, tem que existir química, aquela atração...

— Só me dê uma oportunidade e tudo irá mudar, é tudo que te peço.

— Tânia, sinceramente eu não posso. Não adianta seu coração bater feliz e o meu bater infeliz. Irá lhe faltar amor, carinho, atenção e, em pouco tempo, suas decepções começarão a vir à tona e causarão cicatrizes que nem sei se o tempo poderá cicatrizar. Estou passando por um período que nem eu sei o que quero pra mim...

— Não pode falar do que não sabe, não pode ler o futuro — respondeu Tânia altamente nervosa.

— Estou vivendo dias horríveis, por favor, preciso de paz.

— Estou começando a tomar nojo de você — disse a garota, saindo do local.

A vida é mesmo estranha, enquanto Tânia sabia o que queria, Pedro não tinha noção. Ambos tinham a mesma idade, porém Tânia era madura, e Pedro ainda era verdolengo. Ela queria viver o amor, ele tinha plena consciência que não conheceria mais o amor e falava o que vinha à tona, sem pensar, sem saber as consequências das palavras ditas. O clima entre os dois ficou estranho durante toda a tarde. Eram vinte anos de amizade. Ao cair da noite, pegamos o caminho de volta, paramos em uma lanchonete, juntamos as mesas e nos sentamos.

— Vou ao banheiro — falou Tânia.

Às vezes saímos para nos divertir na tentativa de nos deparamos com um grão de paz, mas tudo que encontramos é um vasto caminhão de perturbações. Aglomerações de pessoas e algumas palavras ainda faziam mal à Pedro.

— Dê uma oportunidade à garota, olhe o estado dela — articulou Paula.

— Também acho que deveria dar uma chance a ela. Quem sabe com o tempo, comece a gostar dela, vivemos em um mundo cheio de mistério — tagarelou Douglas.

— Pedro, estenda suas mãos e retire Tânia do fundo do poço — comentou Pâmela.

Por mais que eu sinalizasse para eles pararem de falar sobre Tânia, eles continuaram falando. Sabia o momento por que Pedro estava passando, e foi exatamente quando eles passaram a conhecer o sistema nervoso do rapaz. Pedro se levantou da mesa enfurecido e rasgou o verbo sem dó e sem piedade, colocando tudo para fora:

— Como a vida é mesmo misteriosa! Todos aqui sabemos que o Arthur é louco pela Paula. E o que ela faz? Tira vantagem disso; pede para o garoto fazer mil coisas; pede para o coitado comprar bolsas, perfumes, produtos de beleza e outros detalhes com o dinheiro dele. Como dizem: o amor é cego. Douglas é tratado feito um cachorrinho por Pâmela, toda vez que ela o chama, o coitado vem abanando o rabinho, faz o otário levá-la em boates, barzinhos e fica com outros caras e, no final da festa, o babaca ainda acaba pagando a conta. Quem são vocês para me dar lição de moral? Não me meto na vida de vocês na área de amor nem dou palpites. Conseguiram acabar com o meu dia.

Pedro entrou no carro e foi embora, deixando seus caronas na lanchonete. Estava com a cabeça ardente de tanto ouvir lição de moral de pessoas que, em sua opinião, não tinham nada para apresentar. Pedro, O Lobo Em Pele de Cordeiro. Seria essa a próxima novela das nove na boca da galera? Sinceramente, isso não o atingia, já tinha seus problemas para tentar resolver.

Sabe quando você olha ao seu redor e percebe que algo não está te fazendo bem? Foi o que aconteceu com Pedro. Percebeu que precisava mudar de amigos, de ambiente, tomar novos rumos. E essa escolha não teria volta.

Ao chegar em casa, liguei para ele, a conversa foi longa:

— Pedro, o que está acontecendo contigo?

— Eu não sei, mano, minha cabeça está confusa, não sei o que está acontecendo comigo — respondeu Pedro com a voz cansada.

— A coisa ficou feia na lanchonete...

— Nem eu sei o que quero pra mim, queria apenas tomar conhecimento real sobre essa paranoia, mas ninguém me entende.

— Dê tempo ao tempo, o tempo é o melhor remédio. Acredite, a revolta não leva ninguém a lugar nenhum.

Na segunda-feira, a rotina de trabalho se reiniciou, não podíamos levar nossos problemas pessoais para o trabalho, da mesma forma que ninguém queria levar seus problemas do trabalho para dentro de casa. O cansaço que sentíamos resolveu tirar férias, e isso nos deixou contentes. Tanto, que Pedro começou a tomar somente os medicamentos. Todos os trabalhadores do meu setor estavam em contagem regressiva para o carnaval, motivados com a proximidade da festa mais aguardada no país. Uns falavam sobre os locais onde iriam passar o carnaval, outros contavam quais fantasias usariam e, assim, os dias passaram rapidamente até a chegada da quinta-feira, quando começou o recesso. Na sexta-feira, às sete horas da manhã, eu e Pedro pegamos a estrada.

O primeiro dia do desfile seria no domingo, mas queríamos aproveitar o tempo livre para curtir a vida. Aquele fim de semana foi maravilhoso: surfamos, jogamos futebol, futevôlei, degustamos vários pratos típicos de frutos do mar e ainda pudemos assistir aos dois dias do maravilhoso carnaval na Marquês de Sapucaí. Momentos prazerosos assim, geralmente pedimos que não passem tão prontamente, mas são esses os que seguem mais rápido e, na quarta-feira, voltamos para casa. Sentíamo-nos renovados, com mais disposição, mais desejos e muita alegria.

No sábado, uma pessoa muito querida faria aniversário, e nós não poderíamos faltar. O clima com o grupo, por parte de Pedro, ganhou milhares de contos; um bom escritor agradeceria às histórias que, no mínimo, renderiam uns vinte livros. Ele não se incomodava com as versões contadas: sua vida havia ganhado novas proporções. Estava caminhando em solo diferente ao deles em sua visão. Em qualquer lugar que estivesse, ainda que fisicamente rodeado por amigos, Pedro sentia uma terrível sensação de vazio. Geralmente, não existe ajuda médica para a tristeza. O rapaz sentia sua mente e seu corpo gritarem por ajuda, mas que tipo de ajuda? Aquela sensação de fraqueza o estava corroendo. Por mais que estivesse tomando seus remédios, algo havia alterado, principalmente, o seu humor. Precisava ser consultado para que seus sintomas fossem descobertos.

Ele gargalhava em nossa presença, demonstrava seu sorriso na parte externa, pois, na parte interna, existia um desânimo enorme. Na opinião dos familiares, ele estava curado daquele mal, mas logo os sintomas retornaram. Os remédios amenizavam, mas não tinham resolvido o problema. E justamente nesse sábado, os sintomas retornaram em uma escala maior. Parecia que havia um monstro dentro de Pedro.

O rapaz saiu correndo da festa sem falar com ninguém e entrou em seu carro sem saber para onde iria. Pegou a Dutra em alta velocidade e, em certo trecho, atravessou os guard rails e foi parar dentro do rio que cortava a cidade. O carro bateu fortemente na água, e o airbag foi acionado protegendo-o do pior. Ele sentia tantas dores, que não conseguia movimentar seus braços e pernas e, na realidade, nem se esforçou. A explosão de dores em sua cabeça logo o desacordou; quando abriu os olhos novamente, percebeu o céu estrelado. Ao seu redor, havia barulhos de sirene, médicos e enfermeiros. Sentiu que lhe aplicavam alguma coisa e, logo, perdeu a consciência novamente.

Ao acordar pela segunda vez, não tinha ciência de onde estava. Olhou para os lados e percebeu que parecia ser um hospital. Minha tia estava ajoelhada, rezando para a sua sobrevivência. Aquela cena o transportou para o passado, quando a tinha observado chorar, inúmeras vezes, pelos erros causados pelo meu tio.

— Mãe, a senhora está bem?

Ela se levantou e o abraçou enquanto falava com os olhos cheios de lágrimas:

— Como uma mãe poderia estar bem vendo o filho que tanto ama cometer atrocidades contra a própria vida? Estou envergonhada de mim mesma.

— Isso não vai mais acontecer! Tem minha promessa — respondeu Pedro com o coração apertado.

— Por que fez isso?

— Queria que a vida mudasse do dia para a noite e dei alguns dias a mim mesmo. Como nada mudou, optei por me matar jogando o carro dentro do rio. Já não tenho motivos para viver.

— Eu e o restante da sua família não somos um motivo?

Pedro não respondeu com palavras, não conseguiu segurar as lágrimas, e seus olhos vermelhos foram a resposta para a pergunta dela.

— Resposta dada.

— Mãe, como vim parar aqui?

— Logo que se jogou no rio, um homem que estava atrás de você parou o veículo, pulou e o retirou do automóvel. Ele lutou pela sua vida, fez massagem cardíaca e até respiração boca a boca. Quando você tossiu e colocou para fora a água que estava dentro de você, ele ligou para o serviço de emergência da Dutra e deu sua localização.

— E quem é essa pessoa? Gostaria de agradecê-lo.  

— Essa é a parte complicada. Quando a ambulância chegou, não tinha mais ninguém lá.

— Sério? — perguntou Pedro assustado.

— Um estranho lutou pela sua vida, fez o possível e o impossível para mantê-lo vivo, podemos afirmar que ele fez um milagre. Valorize mais a sua vida. Da próxima vez, pode não encontrar um anjo.

— Mãe, eu vou mudar. Quando algo se quebra, se os pedaços forem grandes o bastante, dá para consertar.

— Um dia tudo acaba. Pra que esperar que tudo isso aconteça? Acha que tudo vai correr conforme planejamos? Tem que amadurecer, não é mais um moleque. 

Minha tia chorava tanto, que chegamos a pensar no pior. Nunca tinha visto ninguém chorar daquele jeito. Abracei-a e choramos juntos. Mas não chorei pela molecagem do meu primo, chorei pelo sofrimento dela. Pedro havia machucado muito mais a ela do que a si mesmo. Minha vontade, naquele momento, era de enchê-lo de porrada, de fazê-lo sentir a dor que minha tia sentia. A sorte dele é que eu não podia cometer mais uma loucura na família. Não queria me envergonhar. Aguentei aquela monstruosa dor em silêncio, até que o médico entrou no quarto e perguntou:

— Boa tarde, Pedro Paulo, como se sente?

— Me sinto péssimo, meu corpo parece que vai explodir com tantas dores.

— Médicos e enfermeiros fizeram uma longa bateria de exames em seu corpo e constataram um osso quebrado em sua perna direita e, em seguida, foi feito o devido engessamento — informou o médico objetivamente.

— Muito obrigado! 

— Por nada! 

O fim de tarde estava partindo e seus pensamentos estavam longe do hospital, até que uma doutora entrou no quarto e pesquisou:

— Pedro, está acordado?

— Sim! — respondeu o rapaz com uma voz desanimada.

— Boa tarde, sou a Doutora Camila, poderia me dizer seu nome completo?

— Pedro Paulo Avelar.

— Sabe me dizer o mês que estamos?

— Final de fevereiro — respondeu sem questionar.

— Já foi tratado de algum tipo de doença mental? 

— Não.

— Pedro, preciso que seja sincero comigo.

— Estou sendo.

— Está tendo qualquer pensamento suicida nesse momento?

— Não.

— Poderia me contar o que houve na noite passada? 

— Não sei, a única coisa que posso afirmar, é que sonhei com isso.

— Então havia sonhado com o ocorrido?

— Sim, doutora, estou predestinado a sofrer. Minha vida já era.

— Um jeito de redescobrir a vida, o povoamento e os cidadãos é procurar a perfeição mesmo onde ela não existe. Observar é ficar e não estar. Ou talvez, seja um estar de um jeito diferente. São como vegetações que aparecem no cimento, crescem onde não deveriam. Com calma e dedicação exemplar, elas se erguem com dignidade, parece reprovável para a botânica, uma estranha beleza que enfeita os cantos mais cinzentos, uma metáfora da vida irrefreável. Já pensou em ficar internado por um período em um tratamento psiquiátrico?

— Sim.

— Decida o que realmente quer, vou lhe dar o número do meu celular, pode me ligar a qualquer hora do dia ou da noite. 

— Doutora, muito obrigado. 

— Não precisa agradecer — respondeu com um sorriso enquanto deixava o quarto.

Sabemos que notícia ruim corre rápido e, na manhã do dia seguinte, vizinhos, amigos e alguns colegas foram visitar Pedro. Ficamos surpresos com a quantidade de pessoas que souberam do acontecimento em tão pouco tempo e, para completar, contaram-nos detalhes que não podíamos imaginar.

— E aí, meu amigo, tudo bem? — perguntou André. 

— Estou bem, e você? — respondeu Pedro. 

— Também estou bem! Sabe quais foram os comentários de Paula, Pâmela, Arthur e Douglas sobre o seu acidente?

— Não faço ideia.

— Que você teve o que mereceu, que Deus não perdeu seu precioso tempo e logo o castigou.

— Fico feliz com o ponto de vista deles. Se Deus não perdeu seu precioso tempo comigo e logo me puniu, é sinal que não terei que enfrentar o fogo ardente do inferno. Agradeça a eles por mim. 

— Pode deixar — respondeu André sorrindo.

Levei uma pequena mochila para o hospital, sabia o que faria bem ao rapaz, o que não deixaria que desanimasse.

— Sei que vai precisar disto — disse, assim que entrei no quarto.

— Parece que você lê pensamento, obrigado!

Dentro da mochila, estava seu notebook, o carregador, seus pendrives, o fone de ouvido e alguns livros.

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