Capítulo II

Um incandescente verão, no final de 2009 e início de 2010, dominou a cidade do Rio de Janeiro e o interior. Considero, com total convicção, que tal ano foi uns dos mais quentes dos últimos cem anos. Faltavam apenas três dias para a virada do ano, quando fomos visitar a cidade de Angra dos Reis com amigos e familiares. Pretendíamos que o novo ano sucedesse de dias melhores, de bem-querer e de serenidade para todos. Permanecia satisfatoriamente admirando as curiosidades na praia e conversando com Pedro, analisando em que fração da sua vida ele havia sido capaz de autorizar tantas páginas em branco e, concentrado nesse objetivo, assegurou-me que lutaria para que isso não se repetisse nunca mais.

A animada noite do dia 31 de dezembro estava formidável. As homenagens, a combustão de fogos de artifício à beira-mar e o sorriso das pessoas ocasionaram uma noite magnífica. A meia-noite despertou ternura em todos que visitavam o litoral, confiávamos em um ano efetivamente renovado e diferenciado de todos os demais. Os comes e bebes circulavam em meio à família e aos amigos, precisávamos festejar e orar por dias melhores. Por volta das duas e meia da madrugada, uma parte das pessoas partiu para descansar, e o restante permaneceu conversando. Eu e Pedro continuamos no grupo dos proseadores; ele precisava se adaptar novamente ao mundo. Além dessa particularidade, pretendíamos apreciar o primeiro aparecimento do sol naquele ano.

O arrastado bate-papo gerou exageradas gargalhadas, com recordações que, para muitos, já estavam falecidas, o que levava o restrito grupo a uma alegria pouco vista. Enquanto isso, um inesperado temporal caiu, levou outros para a cama, em busca de um sono reconfortante ao som do agradável barulho do aguaceiro. Eu, Pedro e minha tia permanecemos tagarelando e, quando percebemos que o relógio já marcava seis horas, efetuamos os preparativos da refeição matinal. Ao ligarmos a televisão, a primeira trágica notícia estava em todos os canais: na Baía da Ilha Grande, sessenta mil toneladas de pedras, plantas e terra de uma encosta foram conduzidas pelas potentes águas. No caminho desse desmoronamento fatal, encontravam-se sete imóveis e uma pousada sobrecarregada de hóspedes. Em seguida, o jornal divulgou mais uma sequência de matérias macabras. Na cidade de Cuzco, no Peru, as chuvaradas exageradas provocaram um dilúvio e um verdadeiro estrago pela cidade. A terceira notícia abalou Pedro completamente: prédios centenários e casas haviam sido destruídos e carregados pela força das enxurradas no município histórico de São Luiz do Paraitinga, a duzentos quilômetros da Baía da Ilha Grande. A força da natureza fazia as primeiras vítimas do ano. Custou-me aceitar que aquelas cenas fluíssem em plena virada de ano. As notícias nos deixaram chochados.

Pedro decidiu descansar, na esperança de retornar à órbita depois dos trágicos eventos. Ao acordar, por volta das quinze horas, observei que o chuvisqueiro prosseguia, e a maior parte das pessoas que estavam na morada permaneciam de olho nos telejornais. Pedro me chamou, descrevendo que começou a sentir uma sensação de carência. Não sei esclarecer detalhadamente o efeito ou os motivos desse sentimento. Estávamos em uma casa abarrotada de pessoas, e era como se apenas ele estivesse presente. No desenrolar da conversa, pedi para que fosse para o banho, na tentativa de ele acordar inteiramente. Porém o banho não surtiu efeitos, mal conseguiu se alimentar, o apetite parecia ter sido arrastado por uma enxurrada. Permaneci impossibilitado de efetuar comentários a respeito do assunto aos familiares e, novamente, Pedro foi para seu quarto, na confiança de acordar renovado. Essa péssima sensação o dominou completamente. Sem sono, permaneceu rolando de um lado para o outro; a sensação de vazio amadurecia naturalmente. Ocorria um combate dentro dele, cujos efeitos foram sentidos até certa hora da madrugada, quando a calmaria resolveu tomar conta do ambiente.

Ao raiar do dia, acordei analisando que o conflito interno que ele enfrentava havia cessado tão intensamente, que os roncos de apetite que vinham de sua barriga pareciam sirenes. Levantei-me da cama e caminhei até o banheiro para o protocolo de limpeza da minha fisionomia. Mudei de roupas, organizei minha mala e caminhei até a padaria em busca de alimentos para o bom desjejum.

Logo cedo, a temperatura dava seus primeiros indícios de que o dia seria excelente para as praias. Eu e Pedro precisaríamos retornar para casa e, em breve, para o trabalho. Dia 5 de janeiro estava próximo. Como Pedro estava escrevendo um livro, queria ter um tempo para se dedicar a ele e, com isso, conseguir esquecer os problemas que o atormentavam. Na padaria, percebi que o assunto daquele momento era a tragédia ocorrida na Baía da Ilha Grande. Outra particularidade que observei, é como as pessoas não se cumprimentavam mais com o famoso “bom dia”. O que via eram apenas cabeças empinadas que seguiam em linha reta. Ao chegar em casa, preparei o café e esperei pelos demais, que não demoraram muito para se levantar. Já vestido para a longa jornada, falei aos meus parentes e amigos:

— Como sabem, hoje, eu e Pedro retornaremos para casa. Quero agradecer a todos vocês pelos dias que ficamos juntos, por todo o carinho e dedicação, pelo que aprendemos e pelo que ensinamos também. Espero que 2010 seja o ano de nossas vidas! Só tenho a agradecer a todos. Obrigado, de coração.

Recebi abraços e pedidos de atenção como: “vão com cuidado”; “consciência no trânsito hoje, a estrada vai estar perigosa” e “Deus esteja com vocês”.

— Não quer ficar mais uns dias? — perguntou minha tia a Pedro.

— Não posso, tenho que ter um tempinho para mergulhar profundamente em minhas escritas. Quem sabe esse desafio seja a minha melhora.

— Espero que sim. Quando chegar, ligue para nos avisar que chegaram bem.

— Pode deixar, fiquem com Deus! — falou o rapaz, dando um beijo na testa de sua mãe.

— Que Deus os guie — respondeu minha tia nos abraçando.

O tráfego realmente não agradava aos motoristas, principalmente à minha pessoa. Embora os incontáveis carros na estrada e as quilométricas filas de engarrafamento nos deixassem desapontados, não existia outro recurso a não ser aguardar. Nas diversas paradas que o trânsito nos proporcionou pudemos observar belas paisagens e, ao mesmo tempo, refletir que, aos poucos, estávamos acabando com a natureza e que, em um futuro não tão distante, as consequências seriam graves.

Para tentar afastar as tragédias que rondavam sua mente, Pedro ligou o som e começou a cantarolar. Esse era um método que sempre utilizávamos para esquecer os problemas que tentavam nos azucrinar. O congestionamento tornava o local um mar de amargura e mal-estar. É um daqueles momentos em que a paciência não deve nos abandonar. Depois de uma hora parado, alguns carros de maior potência começaram a ultrapassar os de menor força desrespeitando leis e desconsiderando a vida de outras pessoas que poderiam sofrer o impacto causado por um acidente. Graças a Deus, apesar dos problemas do engarrafamento, tudo correu bem. Deixei Pedro na residência de sua mãe. A primeira coisa que fiz foi ligar para nossos parentes informando que havíamos chegado bem. Depois de uma ducha e de um bom lanche, Pedro voltou a escrever.

Durante os dias que esteve em casa, o rapaz pegou firme na construção do seu livro, parava apenas para comer e, às vezes, para o descanso mental. Parecia que os medicamentos estavam fazendo efeito. Enviou uma escrita para diversas editoras enquanto escrevia um novo romance. Como tudo o que é bom dura pouco, na manhã do dia 5, retornamos ao trabalho. O ambiente na empresa estava agradável, era visível a felicidade estampada nos rostos dos funcionários. No decorrer dos dias, frequentamos bares para que a rotina não se abrigasse em nossas vidas, Pedro fez totalmente o contrário. Iniciou uma vida progressista, trabalhava durante o dia e escrevia durante boa parte da noite, mesmo sabendo o tamanho das sequelas que poderiam ser geradas. Os dias foram se passando até que, no dia 21 de janeiro, às dezoito horas, minha mãe e minha tia chegaram em casa. A sensação foi incrível! Abraçamo-nos carinhosamente tentando matar a saudade.

— Deixe-me ver como você está! Tem se alimentando direito? — perguntou minha tia.

— Mãe, pode ficar despreocupada, estou me alimentando bem. Me dá um abraço!

— Como andam as coisas?

— Estão ótimas. O trabalho está indo bem, as amizades estão boas, não tenho do que reclamar.

— Você é um rapaz bonito, tem um bom emprego, se continuar nessa vida, não verei meus netos. — Ainda que usando um tom de ironia, minha tia sabia como dizer as coisas certas.

— Estou aguardando a mulher certa, aquela que queira viver ao meu lado nos momentos de alegria e de tristeza, na saúde e na doença. Não quero apenas te dar um neto. Desejo que você e sua nora sejam unha e carne, dessa forma seremos felizes.

— Vou esperar deitada, porque sentada também cansa — falou ela, aos risos.

— Mãe, me abraça, tô com saudade. 

— Tem ligado as televisões? — perguntou, depois de lhe dar um longo abraço.

— Estou sem tempo para noticiários.

— Se continuar assim, logo, logo nós estaremos sem televisor — articulou ela novamente aos risos, ligando a TV.

Recordo-me que o carnaval aconteceria no mês de fevereiro, e como forma de amortecer nosso cansaço físico e o mental, convidei meu primo para que fôssemos nos divertir de forma diferente. A ideia era assistir ao admirável desfile na Marquês de Sapucaí.

Compramos os ingressos e, na rotina do dia a dia, esperávamos a data marcada para viajarmos. O fim de semana deu as caras. Os funcionários da empresa adoravam a chegada da sexta-feira, o sextou, conhecido como dia da alegria, de acalmar os ânimos e de se poder dormir um pouco mais no sábado e no domingo.

Vários convites nos foram feitos para curtirmos a balada, porém estávamos abatidos. Pedro recusou todos os convites para a noitada, pois necessitava de repouso. Chegou em casa e permaneceu, por quinze minutos, embaixo do chuveiro. Seu cansaço mental produzia graves dores de cabeça, vivíamos sob enormes responsabilidades. Com o cansaço e a dor de cabeça o azucrinando, o rapaz vestiu seu pijama e se deitou para tentar dormir.

O bizarro é que, na vida, existem pequenos detalhes que não sabemos explicar, e o que Pedro procurava, nem ele mesmo sabia dizer o que era. Seu sono não batia à sua porta, e ele se esforçava, improvisando qualquer coisa na tentativa de encontrá-lo. Frustrado, levantou-se e se sentou na cadeira de frente para a mesa do computador. Por alguns minutos, permaneceu arquitetando o que inventar para buscar o bendito sono. Nenhuma resposta foi gerada em seu cansado pensamento. Forçou a mente ao limite até recordar que músicas ambientais costumavam causar sono. Não podia perder mais tempo: ligou o computador com um sorriso de ponta a ponta das orelhas, mas logo o sorriso desapareceu. Quando tocou a primeira música, sua dor de cabeça o lembrou de que ainda não havia ido embora. Foi como se alguém tivesse jogado um balde de água fria no rapaz. Não podia deixar o estresse o dominá-lo, só queria achar algo que o ajudasse a encontrar o seu sono.

Já que a música estava “proibida”, ficou por alguns minutos olhando para tela, tentando imaginar o que fazer. Sem um objetivo, resolveu clicar para fechar a tela e — por acidente ou por obra do destino — a seta do mouse não estava no local adequado; uma outra página se abriu, com propaganda de vários sites. Entre tantos, havia um de bate papo da nossa cidade.

Embora Pedro não estivesse com cabeça para conversa, mesmo contra sua própria vontade, acabou entrando no site. Por alguns minutos, analisou as pessoas e observou que quase todas se encontravam ocupadas. Menos uma. Para ter total certeza, foi conferir:

— Boa noite — escreveu.

— Boa noite! Tudo bem? — respondeu a moça.

— Estou bem, e você? 

— Graças a Deus, estou ótima! É a sua primeira vez no chat?

— Sim, dá para perceber?

— Sim, é visível. 

— Se consegue bons amigos aqui?

— Isso depende apenas de você. Depende do que vai plantar. A terra aqui é árdua.

— Não sei por onde começar. Me chamo Pedro... 

— O que deseja saber?

— Posso saber o seu nome?

— Me chamo Lis, é um prazer.

Ao ler a palavra, cujo significado é lírio, Pedro recordou que as três pétalas da Flor de Lis têm um significado. Não sabia qual era, nem resolveu mudar de assunto para descobrir.

— O prazer é todo meu. Quantos anos você tem?

— Tenho 24 anos, e você? — perguntou Lis.

— Tenho 25 anos. Fale-me um pouco sobre você.

— Sou artista plástica e quase uma psicóloga. Calma! Não ache que vou analisar você. Tenho, por regra, analisar apenas os meus pacientes. Sou bastante seletiva nas amizades; estado civil, solteira; sem filhos, embora pretenda ter; não fumo; às vezes bebo; adoro músicas alternativas, jazz, blues, latina, pop, MPB; também curto teatro, viagens, cinema, sapatos, academia, vinhos, degustações, compras e artes; amaria conhecer Teresópolis, Nova Friburgo, Petrópolis e Itaipava. Agora, Pedro, fale-me um pouco sobre você.

— Nasci em uma família humilde; meu pai era mecânico; minha mãe, dona de casa; conheci a vida cedo demais, mas isso não vem ao caso. Amo escrever; sou um escritor iniciante; adoro cozinhar, internet na hora certa, academia, futebol, natureza, política, caridade, arte marciais, astrologia. Solteiro, não tenho filhos, odeio cigarros e bebidas. Músicas MPB, mas curto outros estilos. Gosto de cinema, teatro não muito, viajar e o pouco que conheço sobre artes. Sou encarregado em uma empresa automobilística e estou tentando entrar no mundo literário.

— Um escritor e uma artista plástica. Que coincidência!

Ao longo do bate papo, cada um descobriu um pouco mais sobre o outro. Ambos eram sul-fluminenses, ela morava em Itatiaia e ele em Penedo, e a forma de cada um se divertir era totalmente diferente, assim como o gosto por filmes e músicas. Conversaram sobre o fim de seus romances. De um modo geral, a conversa foi agradável. Educada e bastante amigável, a presença virtual da moça causou um certo conforto no rapaz. Após algumas horas, Pedro notou que se encontrava recuperado da dor de cabeça e que o sono havia batido à sua porta. Lis também estava cansada, então se despediram. Agradeceram as horas conversadas e a boa companhia. Após o “boa noite, bom descanso” escrito por ela, Pedro saiu da sala de bate papo, desligou o computador e pulou em sua cama. O sono rapidamente chegou: estava tão cansado, que acordou ao meio-dia do sábado.

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