Capítulo 01

Montelite

As luzes bicolores dançavam sobre o lago Athena. Corvos sobrevoavam o céu em círculos, emitindo sons estranhos às vezes parecendo tentar travar uma luta aérea. Havia muita neve nos campos de Montelite. Tratava-se de um reino calmo e congelante O inverno lá é rigoroso demais.

O lago é uma península do rio Athena que abrange os arredores das florestas de um pequeno vilarejo que encontra-se no reino de Montelite. Nele as nuvens espelham-se de forma mútua assemelhando-se à esboços ou rabiscos de uma criança. O céu deste lugar mágico abriga desenhos de guerreiros, bruxas...basta apenas alguém observar suas nuvens com atenção.

No reflexo do lago também havia o par de olhos azulados de Alana. Ela observa atenta seu rosto e seu cabelo escuro movimentar-se com a ventania que rondava por ali.

-Queria um espelho como o da rainha – murmura para si.

Uma fada da floresta pousa em seu ombro, tímida e parecendo sentir receio de uma aproximação.

Alana vira devagar e encara com o canto do olho a minúscula criatura cintilante.

-Olá Miguy

O ser encosta então um dos quase despercebíveis dedos em sua bochecha

-Ah, Miguy.Precisa tomar cuidado. Tão inofensiva assim qualquer um te esmaga com uma unha.

A fada movimenta-se um pouco dançando balé nos ombros de Alana. Ela parece pouco se importar com o aviso que a amiga humana acaba de lhe oferecer. Bem, era mais um bom conselho do que um aviso.

Não tarda muito para que o aparente sossego à beira da água congelante se esvaia. Logo elas escutam gritos não muito longe dali. Imediatamente Miguy puxa os cabelos da moça como se quisesse avisar que era melhor sair de onde estavam.

Alana levanta às pressas indo em direção do seu chalé no vilarejo. Pessoas cortavam lenha com seus machados de ferro, outras preparavam carne de lebre para comerem no jantar.

-Papai!

O pai dela logo para de escovar o pêlo do cavalo nos estábulos.

-O que é Alana? Não percebe que estou ocupado?

- Papai cadê a mamãe e meus irmãos?

O senhor Forgari logo bufa e põe no chão a escova.

-Sua mãe está se lamentando lá dentro. Alonso eu mandei trazer água do rio para o almoço e Alexander está no chiqueiro, brincando com os porcos.

- O que minha mãe tem, pai?

Seu pai observa o cavalo mais uma vez, querendo parecer muito atarefado, com uma expressão carrancuda, a cicatriz abaixo do olho direito se sobressalta.

-Ela só não me obedeceu mais uma vez.

Ela o observa enquanto diz

-Você bateu nela de novo?

- Foi pouca coisa Alana. Não me aborreça.

- Você é um patife! – esbraveja chorando até tomar uma bofetada no rosto.

-Isso é para que aprenda a me respeitar!- responde ao insulto da filha – Agora vá para dentro, ande logo!

É difícil imaginar a cena de um pai batendo na face da filha, mas era o que acontecia sempre que Alana tentava defender a mãe doente.

Ela entra em casa e vê a mãe no canto de uma das mesas da cozinha. Um roxo próximo ao olho distorce a imagem de seu rosto, ela segura discretamente um dos dentes que lhe fora arrancado na mão.

-Mãe pegue os meninos e vamos sair deste lugar.

Como já se era de imaginar, a mãe de Alana ( assim como a maioria das mulheres da época) prezava muito a aparência de uma família unida. Não queria ser mal falada e tida como uma vadia que abandonou o marido, justo ele que lhe dá de comer.

-Mas mãe ele arrancou um de seus dentes!

- Quero que cale a boca e finja que isto nunca aconteceu, Alana. Eu estou bem.

-Claro, estou vendo o quão bem está- retruca

 A mãe a olha com repreensão, então Alana mesmo indignada resolve se calar.

Talvez ela devesse acender uma lamparina para livrar-se da escuridão que lentamente ia se apoderando da casa inteira. A questão era que os gritos que escutara à minutos atrás a estavam deixando intrigada. O vento sul soprava nas janelas velhas fazendo-as rangerem. 

Parece que logo uma tempestade viria.

Após minutos sem conversar com a mãe, ela se dirige com preocupação:

-O pai disse que Alonso foi buscar água no rio. Eu estava perto do rio e não o vi.

Imediatamente a senhora Helena olha para a filha com pavor.

-Estava no rio? Fazendo o que?

- Refletindo

- Sabe que se aparecer grávida teu pai te mata.

-Mãe, a senhora não entendeu. Eu não estava com nenhum homem,estava só a beira do rio.

- Não deveria ir mais do que na horta- a mulher lhe respondeu, ríspida. – Não te quero mais perto do rio, entendeu?

Alana baixa a cabeça, pensativa. Aquilo com certeza à abalava, pois desde pequena sempre fora aventureira e com ânsia de descobrir novos horizontes. Agora que já havia completo 17 anos, achava justo ser um pouco mais livre.Mas não era saudável discutir com a mãe. Com o pai era como assinar um documento para ser espancada.

O irmão, Alonso entra pela porta lateral com dois baldes cheios de água nas mãos. Em suas costas está pendurado um balaio cheio de peixes frescos.

Alonso devia ter uns 15 anos, mas já era dono de músculos fortes de trabalhar com o pai fabricando espadas e machadinhas de guerra. O pai deles era ferreiro( não que isso justificasse suas grosserias). Alonso também possuía uma personalidade forte.

Depois que coloca os peixes sobre a mesa, olha para a irmã e para Alana.

-O que houve com o dente da mamãe? – se dirige para Alana com um olhar confuso.

-Foi o...

-Tempo- interrompeu a senhora Helena- Sua mãe está ficando velha, meu filho e está perdendo os dentes. O tempo não perdoa ninguém...

Alana observa como a mãe mente para encobrir quem a machucava. Sentia -se reprimida também, diante daquela desculpa esfarrapada que nem ela caíria, mas pensava que seria melhor deixar. Alana sabia que a o amor não deveria ser assim, sempre ouviu falar que era um sentimento doce apesar de ser capaz de destruir às vezes ( na maior parte delas).

Era certo que Alonso iria querer satisfações com o pai, de tal homem muito estúpido poderia sair uma tragédia.

Quando caiu a noite comeram um ensopado de peixes. O pequeno Alexander voltara do chiqueiro com cheiro de porcos e a senhora Helena teve de lavá-lo muito bem para que pudesse sentar-se junto aos outros na mesa.

Pareciam uma família que convivia em paz, como qualquer outra. Afonso Forgari comia em silêncio e não ousou trocar nenhuma palavra. Em meio ao silêncio, Alonso como era de se esperar não se controlou em tocar no assunto sobre a mãe.

-Sua esposa está precisando de cuidados papai- olhou para o homem, que teve um pequeno engasgo e soltou de volta com a mão um pedaço de peixe no prato.

- O que quer dizer?

- Mamãe perdeu um dente hoje. Obviamente seus 45 anos estão lhe pesando demais sobre as costas.

Afonso Forgari pigarreia e empurra a vasilha em que comia.

-Não posso fazer nada, eu trago comida para dentro desta casa. Ela cozinha e limpa tudo e cuida de vocês. Não posso largar minhas funções por conta dela ou todos aqui irão passar fome.

-Principalmente quando é você que a machuca não é? Ou pensa que sou idiota?- diz Alonso com o “branco dos olhos” em cor de sangue.

Fez-se um clima tenso agora. Senhora Helena trouxe mais para perto do corpo seu filho caçula.

- Eu exijo respeito, moleque.

- Pai está tudo bem – fala Alana- Afonso só está cansado e nervoso.

Por sorte e bem melhor de todos, Afonso Forgari sai da mesa com grosseria, fazendo “voarem” para o chão toda a sua comida recém feita. Alana sequer havia comido a metade, naquela noite fora dormir com fome. Mas seu pai não se importa com isso, afinal já acabara seu jantar.

Dormia tranquila certo ponto da noite, até ver através da janela clarões na floresta. Miguy, a fadinha que até então se escondera com medo do pai da moça, surge delicadamente no parapeito da janela um tanto corroída por cupins. Alana então abre o aposento para que a minúscula criatura brilhante possa entrar. Logo em seguida Miguy puxa as mechas mais longas do cabelo da jovem, querendo chamar-lhe a atenção como antes às margens do Athena.

-Eu sei Miguy – ela entende os sinais da fada- Têm algo estranho acontecendo.

O coração de Alana estava calmo, mas disparou com força quando seus ouvidos alcançaram o barulho de patas de cavalo cavalgando muito rápido. Juntamente a isto, os clarões que ela vira tornaram-se mais próximos, só então que percebe se tratarem de tochas. Tochas que estavam sendo arremessadas nas casas vizinhas enquanto todos dormiam. Assimilando o que ocorre, ela se põe a gritar:

-Levantem! Estamos sendo atacados! Fogo!Fogo! Socorro!

Imediatamente todos saem de suas camas, a mãe, o pai e os irmãos. Há um ar de confusão, tanto que pessoas pegam fogo e esfaqueiam-se a si mesmas, entregando seus corpos semi- carbonizados ao suicídio. Isso não pioraria a situação? Nem sempre uma facada no próprio peito levava à morte imediatamente.

Uma tocha de fogo grego foi arremessada no quarto de Alana que em seguida já é alastrado pelas chamas.

Seu pai chega com os baldes de água, dentro deles o que sobrou que sua mãe não havia utilizado para a sopa.

-Pare!- Alana grita- Isso é fogo grego! É capaz de queimar embaixo d’água!

Logo virou as costas para o pai que não lhe deu ouvidos e continuou tentando conter as chamas. Restou para ela correr dali, antes apanha de debaixo da cama a espada que seu avô lhe dera .Miguy entra no bolso da sua camisola,de forma que seja possível enxergar somente um ponto luminoso acima do seu seio.

Sua mãe e os irmãos já haviam escapado quando conseguiu sair tossindo a fuligem da fumaça.

-Alana! Papai está lá dentro querendo te salvar! –fala seu irmãozinho pequeno segurando a mão da mãe.

O coração de Alana chega na garganta e volta para o peito. Seu corpo se arrepia inteiro ao ouvir a frase sair da boca do caçula.

-Alexander...você tem certeza?

- É verdade filha- responde a mãe no lugar do menino.

Quando se vira para voltar para dentro de casa e tentar ajudar o pai, tudo desmorona. O telhado de palha seca se espalha no ar contendo partículas de labaredas de fogo. Não era possível fazerem mais nada à respeito.

Alana se pôs de joelhos no chão,pensando no que acabara de acontecer. Naquele momento estava triste e confusa, somente conseguindo pensar no que acabara de testemunhar com seus olhos claros.

 Sua mãe,de olhos vidrados,com certeza assistindo um filme de terror dentro da própria mente, observa o chalé que se consome em chamas fervorosas. É de se compreender a ausência de lágrimas em sua face,já que seus dias eram violentos apanhando do marido agora morto. Alonso e Alexander mantém a mesma expressão da senhora Helena, porém ainda esperam que o pai esteja a salvo. Mas Alana sabia que não.

O restante da noite em que o sol ainda se escondia mantendo o reino em absoluta escuridão( a não ser pela presença de fadas e duendes que festejavam por ali ou vinham curiosos para saber do que se tratava o clarão quente da floresta). Alana e o que restou da família ficaram ali mesmo, perto de um celeiro que não estava destruído. O vento gelado e a neve parecia cortar a pele de seus rostos e mãos. Encontravam-se mal agasalhados,vestindo apenas as vestes de dormir. Desabrigados e sem cobertores.

As cavalarias do norte estavam mais uma vez em confronto com as cavalarias do sul. Montelite é um dos maiores reinos por trás da montanha da Foice. É possível observar no mapa. Sua localização, bem para o sul. Já Cléris, se trata de outro grande reino ao norte do lado oposto da montanha. Há séculos eram inimigos mortais por conta do sumiço de um tesouro qualquer e um assassinato de alguém importante da corte de Cléris.

Haviam assinado um tratado chamado Tratado de respeito entre as Coroas Norte e Sul, que empunhava uma ordem de que nenhum poderia invadir as terras um do outro. E assim foi durante 45 anos, sem ocorrer nenhum problema. Mas agora algo acontecera para estarem em conflito mais uma vez.

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