Capítulo 0

                                                                     Capítulo 0

Usar uma identidade falsa não funciona, tente usar perfume

            Tarde da noite, o caís de entregas comerciais tinha pouco movimento. A cidade de Howlingtown era uma cidade costeira, e só havia duas praias, à esquerda (nordeste), e uma a direita (sudeste), e ao meio, leste, ficava o enorme Cais Barbatana de Ferro. Cheio da maior tecnologia submarina que se podia conseguir no sul do Território e sempre recebendo encomendas e exportações de além-mar, era um belo ponto turístico. Nas praias, o comércio consistia em comida marítima e turismo em alto mar, pois os tritões e sereias que viviam nos píeres faziam excursões submarinas que eram um encanto.

            Mas o jovem lobisomem Pedro não estava no Cais Barbatana de Ferro para admirar a arquitetura e infra-estrutura do lugar, por mais que ele achasse o local ser tão bem trabalhado. Não, para estar ali, às onze e quarenta da noite, morrendo de sono e entediado, quando podia estar dormindo, tinha de haver um bom motivo. Um ótimo motivo, na verdade. Matheus, seu contato no mundo comercial de produtos raros e quase inacessíveis, lhe conseguira mais coisas para sua loja. Artigos de magia que serviriam tanto a ele quanto ao seu trabalho. As prateleiras tinham de ser renovadas sempre, pois estava se saindo muito bem, e pensava em abrir um curso de magia e ensinar tudo o que já aprendera sozinho. Era arriscado e alguém poderia sair sem um olho, ou, na pior das hipóteses, com um terceiro ou quarto olho. Mas não custava tentar, só pelo prazer de se divertir fazendo algo para outras pessoas de forma despretensiosa.

            Seria arriscado se expor muito, de qualquer forma, devido aos eventos mais recentes que o deixaram marcado, mas pelo menos teria a chance de conhecer gente nova. Desde que saíra do Instituto Acadêmico Mãe Lua tivera pouco contato com os amigos. Samuel desaparecera no mundo e a última coisa que soubera do amigo é que ele havia ingressado no mundo dos guias turísticos; Igor tinha uma namorada e um ótimo trabalho (e Pedro se sentia feliz por ele, não sem antes sentir uma pitada de inveja); Heitor estava estudando muito para ser professor de combate e fazia um estágio numa academia, pelo que soubera. E Capivara agora era um lutador das ligas inferiores de artes marciais. Mas este último ainda estudava no Instituto, e dizia que havia dois novatos dividindo o dormitório com ele, e parecia que ambos eram fãs do lendário Lobo Negro Furioso. Era assim que Pedro era chamado, “O Lobo Negro Furioso”, uma alcunha que lhe caía muito bem. E em Howlingtown, o Dia da Fúria havia sido oficializado como feriado. Ironicamente, o dia era exatamente o mesmo da data de Yule: 25 de dezembro. Pedro jamais poderia esquecer-se daquele dia. Tanta coisa aconteceu, que na hora não sabia da data ou hora, não sabia de mais nada, e só mais tarde soube de tudo, os detalhes pertinentes decorrentes e as conseqüências de tudo o que fizera.

            A primeira grande festa do Dia da Fúria teria início no dia 20 de dezembro e terminaria na manhã do dia 25. Mal podia esperar para ver o quê fariam. Parecia muito promissor.

            Imerso em pensamentos, sequer notou o alto zumbido do grande drone de entregas, carregando várias caixas de aparência suspeita. Quando o objeto voador as deixou no chão delicadamente, uma pequena máquina de cartões de crédito saiu de um compartimento.

            Irritado, Pedro teclou alguns números no celular, e logo a ligação foi atendida.

– Eu já paguei com antecedência a entrega, seu bunda mole – Pedro disse, quando ouviu o primeiro “alô?” – É, é, eu fiz adiantado, não estranhou que o pagamento pela coisa toda estava levemente maior? Ah, não percebeu? Sei, manda o teu drone de volta e pode voltar a dormir. Obrigado, seu bundão – E desligou. Matheus parecia surpreso, provavelmente fora pego num momento “daqueles”, mas a Pedro pouco interessava.

            Assim que a ligação terminou, o drone recolheu a máquina de cartões e saiu voando por aí. Provavelmente para pegar outra entrega e levar a outro alguém. Quem sabe?

            O lobisomem aumentou seus músculos dos braços um pouco com uma transformação parcial, pegou todas as caixas e pôs num puxador de aço com rodas. Ele o mandaria de volta quando chegasse em casa, um apartamento confortável e charmoso que, pela localidade, o dava acesso a quase qualquer lugar da cidade. Era uma caminhada de quase duas horas, porém, e era cansativo, mas tinha a noite toda para andar. E pensar.

            Certamente essa encomenda seria a armadilha perfeita para ela finalmente confessar e parar de besteiras em sua loja.

            Certamente, era melhor do que simplesmente tolerar com um sorriso forçado no rosto. Um sorriso cansado que já não tinha a mesma força de antes.

                                                           ****

– Em que posso ajudar? – Pedro oferecia seu melhor sorriso de vendedor, sempre que um cliente entrava e deparava com ninguém menos se não o Lobo Negro Furioso de Howlingtown, sentado em uma cadeira de praia, os pés calçados em sandálias de couro apoiados em cima do balcão e a cara metida numa revista ou livro. Era quase cativante essa displicência com que tratava o trabalho, mas era seu próprio chefe, fazia o que queria, e ajudava a interagir com os clientes de forma mais descontraída.

            Tinha de ser assim, pois quando fechava a loja, sua personalidade voltava ao modus operandi de irritação, concentração, tédio, e a única criatura com quem convivia, o corvo Nevasca, recebia mais amor do que uma esposa jamais teria recebido. Esse pensamento sobre sua realidade atual deixava o lobisomem profundamente irritado, mas o que mais podia fazer, afinal?

            Muita coisa mudara para ele, e sentia-se vazio. Algo faltava, mas não queria pensar no quê, pois sabia muito bem o que era. O que queria, o que desejava. Certa vez, seu antigo professor de educação física, Gunnar Pé de Fogo lhe dissera “seu desejo é uma ordem”.

– Tá, beleza... Como se meu desejo de ter uma parceira fosse algo relevante a essa altura do campeonato – Praguejou alto para si mesmo, quando os clientes saíram com alguns talismãs de ferro e bem longe para não ouvirem suas reclamações constantes.

            Mal havia se sentado em sua cadeira novamente e ela apareceu. Ou melhor dizendo, “ele”. Desde que abrira a loja, essa garota ficava nas redondezas, suas tentativas de espionagem eram tão fracas e bizarras que não conseguia ser discreta nem na cafeteria em frente à loja onde ela sempre comprava muitos doces, quem dirá usando um disfarce para passar despercebida enquanto fuçava pelas prateleiras aqui e ali. E que disfarce mais esquisito ela usava: para fingir que era um rapaz ela vestia bermudas largas, tênis de corrida preto, uma blusa de tom azul escuro e verde claro berrante, com gola até o queixo, e um boné enorme.

            E sempre fazia compras de artigos que, quando o lobisomem percebeu, todos eram relacionados a feitiços de amor e coisas semelhantes. Quando pesquisou o nome “Jessen Hurck”, usado pela garota em suas compras bizarras e suspeitas, descobrira que ninguém com esse nome existia. Ninguém a não ser um idoso de oitenta anos que vivia no continente do alto norte, o Reino das Planícies Longas no Território da Águia. E, como compras usando identidade falsa era crime, poderia muito bem falar com seus conhecidos na polícia para dar uma surra nessa garota esquisita. Mas preferiu jogar o jogo dela, ver o que ela queria.

            E foi em fevereiro que descobriu. Nunca entendeu o motivo, mas ele era imune a feitiços de controle, de quebra de vontade ou persuasão, e podia sentir quando alguém lançava uma coisa dessas nele, era como um cheiro que vinha de longe e o atingia como o fedor de um inseto. Suspeitava que talvez houvesse influência de Manuella, a lâmia, que usara tantos feitiços assim para tentar “amarrá-lo”, que acabou gerando um efeito inverso e causando repulsão absoluta, mas mais do que isso não sabia explicar. E a reação inicial era raiva, claro. Quando entendeu quem estava tentando isso, a ficha caiu imediatamente. Então começou a comprar todos os itens que vagamente tinham relação com feitiços de amor, e tudo para ludibriar a garota e fazê-la confessar. Boa parte dos artefatos iria amaldiçoar o usuário se fosse usado errado, portanto, se não a fizesse dizer o que queria, deixaria com que usasse um desses, sofresse uma punição arcana ou divina e ela certamente não voltaria a perturbá-lo, e Pedro poderia trabalhar sem dores de cabeça novamente.

            Agora era esperar, e ver o que ela faria. Após vários minutos a garota pegou os itens que ele comprara para exibir e atrair a atenção dela, como esperado. Ela pegava livros, amuletos, observava, e os levava ao balcão para voltar e buscar outros itens. E pouco a pouco a compra foi terminando. Era o momento de jogar os blefes para forçar uma confissão provinda de pânico.

– Não acho que isso vá funcionar, sabe? – Pedro comentou, por cima de seu livro com um tom de voz inocente – Se até agora seu alvo não se apaixonou, não vai ser com tudo isso que vai fazer acontecer.

            A garota engasgou, tossiu para disfarçar e mexeu em seu boné. Depois fez uma voz de falsete tão patética, que Pedro custou para não rosnar de irritação ou rir do quão absurdo aquela situação era.

– Ah, isso não é nada... Minha mãe ainda quer tentar manter o casamento... – A voz dela tremia um pouco, mas a desculpa parecia ter sido ensaiada para esse tipo de situação – Sabe como é, ela quer esquentar o casamento de novo.

– Não, não sei como é – Ele retrucou, entediado – Não sou casado. Se quer com que sua mãe trepe com seu pai a ponto de evitar o divórcio, deveria dopar os dois ou usar de hipnose. Eu devo ter algumas amostras de ervas tranqüilizantes aqui, algum pingente ou livro de hipnose, se quiser posso buscar pra você.

            Isso a pegou de surpresa mesmo, e o lobisomem notou, com prazer, que ela estava corada em baixo daquele boné ridículo. Quando olhou para o boné, viu que era de uma banda com público majoritário feminino, qualquer um desses grupos pop genéricos. Se ela percebera que usava um boné desses num disfarce masculino, então era ou muito idiota ou muito obtusa, Pedro pensou.

– Isso não é muito... Íntimo de se dizer pra um cliente? – A garota perguntou, tensa.

– Ah, que é que há? Somos dois caras aqui, e eu ajo assim com todo cliente que aparece aqui, descontraído até o talo – Pedro respondeu, displicente – Além disso, quanto mais informal a conversa fica, mais fácil as pessoas me contam coisas... – E olhou para ela de um jeito ameaçador.

– Que tipo de coisas... ? – Por um momento, a voz forçada sumiu e a voz dela estava ali: aguda, delicada, tipicamente feminina.

– Ah, você sabe – Ele deu de ombros e resmungou, indiferente – Problemas na empresa, traumas da infância, sonhos para aumentar os negócios, uso de identidades falsas... – Esta última o lobisomem disse abaixando o tom de voz como se esperasse uma resposta, olhos fixos nela.

            E não demorou muito. Segundos depois, ela gritou de frustração, jogando os braços para cima, arrancando o boné e arremessando-o contra o chão. Ali estava: um cabelo curtinho, conhecido como “pixie”, ruivo com louro escuro. Se era tingido ou não, difícil dizer. O rosto era cheio de sardas, e havia uma cicatriz no queixo, talvez um ferimento antigo. Mas as feições eram delicadas, pequenas, os olhos levemente puxados, azuis escuros como um céu noturno. Uma garota, como ele sabia que era.

– Finalmente, hem? – Pedro deixou seu livro em cima do balcão, exibindo um olhar cansado, mas triunfante – Agora, vai me explicar o que você quer comigo ou vou precisar chamar a polícia?

– Por quê?! – Ela parecia surpresa com isso, até mesmo assustada.

– Uso de identidade falsa, uso de identidade falsa em compras registradas, uso de feitiços de controle e quebra de vontade.

– Que? Isso é crime?

– Trata-se de seqüestro, por assim dizer. Você quebra a vontade de outra pessoa psicologicamente fraca e a induz a fazer o que você quiser, fazendo com ela o que ela teria feito naturalmente se te amasse de verdade, mas nas condições do feitiço ela não pode recusar e faz por causa da manipulação induzida. Portanto, crime. Já vou pegar o celular.

– Não! Caramba, calma! Me deixa explicar!

– Então larga essa expressão de galinha sem saída pra fugir da panela quente e desembucha de uma vez, porra – Pedro respondeu, seco, saindo de detrás do balcão e recostando-se nele – Começa pelo teu nome verdadeiro, antes que eu mude de idéia.

– Tá, tá... Jessica, Jessica Hauntfang.

– Sei. E a qual povo você pertence?

            Jessica ficou inquieta, olhando para o chão e chutando levemente o ar, como se quisesse ignorar a pergunta. Mas aparentemente ela pensava em como responder.

– Você não vai acreditar se eu contar – Disse finalmente.

– Garota, somos teriantropos. Mudamos de forma entre humanóide e animal, somos usuários de magia. Lá fora tem elfos, minotauros, fadas, voadores, toda sorte de criaturas não humanas, até mesmo máquinas arcanas. O que quer que você seja, não vai me surpreender nem um pouco.

– E se surpreender? – Uma idéia surgiu em sua mente, a garota ficando realmente empolgada.

– Fico te devendo algo, sei lá – Pedro deu de ombros.

– Jura, é? – Jessica levantou uma sobrancelha, cética.

– Tá brincando com fogo, garota – Ele respondeu, seco.

– Nossa, você é tão pavio curto... – Ele bufou em resposta, mas Jessica já procurava uma forma de mostrar, então decidiu jogar um nome na internet, pelo celular, e mostrou uma foto ao rapaz a sua frente – Isso.

            Pedro levou alguns segundos para entender o quê, exatamente, ele via na tela do aparelho. Parecia-se com um texugo, pequeno, de pelagem negra suja de poeira e um “casaco” branco nas costas, cauda e topo da cabeça. De boca aberta, os dentes pareciam pequenas agulhas afiadas, a expressão de fúria no rosto era indiscutivelmente corajosa, as garras eram do tamanho de pregos grandes.

            Nunca antes vira um bicho desses, então o sentimento de “surpresa” era, no mínimo, quase nulo. Apenas a curiosidade lhe atiçava a mente.

– Tá, beleza. O que é isso que eu tô vendo aqui?

– Ah, não – Jessica parecia irritada – Tá de sacanagem comigo? Você não se impressionou mesmo? Ou tá me zoando?

– Não, nem um pouco. Não tenho mais humor pra ficar brincando a toa. Se quiser me impressionar, me explique que bicho é esse e prove que é o que diz ser.

– Okay, tudo pra te fazer ficar me devendo uma – Ela arqueou uma sobrancelha, bem irritada – Ratel, ou texugo-do-mel, se preferir. É um animal das terras da Savana Dourada, é extremamente agressivo, de couro grosso e que ataca qualquer coisa que respire.

– Você não me parece nem um pouco agressiva. Na real, parece até bem fofa de tão tímida que é pra ficar disfarçada pra comprar utensílios mágicos numa tentativa de me fazer me apaixonar por você.

            Jessica corou de verdade agora, mais pelo que estava para fazer do que pelo estranho e repentino elogio (se foi mesmo um elogio) que recebera do lobisomem. Primeiro, levantou as mangas da blusa, revelando várias cicatrizes (e mais sardas, para o prazer de Pedro, ele adorava essa característica, lembravam estrelas), depois começou a levantas as pernas da bermuda.

– Isso é pele demais e eu não tô afim de ser acusado de assédio sexual por olhar suas coxas – Pedro advertiu.

– Ei, calma. Posso ser esquisita, mas nem tanto – E mostrou as cicatrizes em ambas as coxas, várias delas eram marcas de mordida. Pareciam maiores por causa da proporção física – E tem... – Levantou a blusa e levantou a regata, de costas: mais cicatrizes, algumas sardas – E aqui – De frente, levantou a regata até abaixo dos seios pequenos, e no abdome definido havia vários cortes finos e espalhados.

            Agora ele estava impressionado. Mas ele não deixou transparecer de imediato em seu rosto, preferia pegar ela de surpresa. Ela ainda exibia a barriga, ao ponto de sentir-se envergonhada e virar o rosto. Abaixou a regata, e alisou o cabelo, ansiosa.

– Acredita em mim agora? – Vermelha de vergonha, nem olhava no rosto dele.

– E as garras? Os dentes?

– É sério? Ainda quer ver isso? Não basta as cicatrizes? – Jessica estava indignada.

            Pedro suspirou, tirou a camiseta (para a surpresa de Jessica), e mostrou várias e várias cicatrizes, as que conquistara no Dia da Fúria.

– Todos tem cicatrizes, especialmente no nosso mundo. Eu não sou exceção.

            Isso convenceu Jessica, que fechou os olhos, e deixou as garras crescerem e os dentes aumentarem. Afiados como estavam, ela tinha de tomar cuidado para não morder os lábios (o que acontecia com certa freqüência), mas tinha de falar.

– Shhatissfeitxo? – Disse, entre os dentes, fazendo um som esquisito enquanto falava tentando não morder os lábios.

– Isso basta. E agora, darei meu veredicto – Pedro vestiu a camiseta, bateu no balcão do caixa como “rufar de tambores”, e respondeu – Não, não me impressiona nem um pouco – Levantou a mão ao notar que ela ia reclamar em voz alta. “Essa garota quer mesmo que eu fique devendo algo, pois que seja” – Eu vi tanta coisa ano passado que nada mais me surpreende à essa altura, nada mais me impressiona como deveria. Uma coisa, duas na verdade, me impressionaram a seu respeito defato: a primeira são suas sardas, consegui montar algumas constelações conhecidas quando exibiu as costas – E ela corou, surpresa – E é claro... – Fez um gesto com as mãos, como se segurasse duas bolas contra o peito. Isso deixou Jessica ao mesmo tempo furiosa e envergonhada, e ela partiu pra cima dele com um soco, que foi defendido por puro reflexo – Eu gostei do que vi – Disse, com o rosto perigosamente próximo do dela, desafiando-a com o olhar.

– Você é impossível – Jessica disse em voz baixa, se decidindo se devia sentir raiva ou deleite naquelas revelações estranhas.

– Conta uma novidade, Jessica. Bem, fico te devendo duas. Uma pelas sardas, outra pela “tábua” – E ela grunhiu de raiva – Então, como prêmio, não vou chamar a polícia pra você. Vou deixar passar. Agora, diga-me, o que quer de mim?

– Aaaaaargh! Finalmente! – A garota exibia uma raiva triunfante no rosto, e dava gritinhos inarticulados de alegria – Tá, beleza. Primeiro: seu número de celular, e segundo, sair. Pra comer. Doces. Topa?

            Pedro suspirou profundamente, alisando a têmpora direita levemente. Aquilo era tão estúpido, tão óbvio, tão clichê...

– Será que por acaso você não pensou em simplesmente me pedir isso? Ao invés de tentar usar feitiços pra conseguir o que queria? – Pedro comentou, bem irritado.

– Eu não sei, não sabia se iria aceitar.

– E por quê?! – Socou o balcão do caixa com as mãos, furioso – Não teria sido mais simples? Que inferno! – Ele gritava, as veias em sua testa pulsando. Desde que usara aquela droga de aumento biológico, seu corpo reagia a qualquer explosão de adrenalina ou minimamente passional. Ainda sentia os efeitos colaterais, e tinha de fazer exercícios para não explodir (sim, isso poderia acontecer, por mais impressionante que pudesse ser).

            Aquilo assustou a garota. Mesmo para ela, com sangue de ratel nas veias que nada temia, sentiu medo de um lobisomem, que não era ninguém menos que o Lobo Negro Furioso. Vendo que cometera um erro grave com ele, decidiu andar devagar até a saída, sem virar as costas para ele num estado de auto preservação, para não irritá-lo com barulho.

– Eu pensei que não fosse gostar de mim por causa das cicatrizes... – E ia saindo.

            Em pouco tempo, enquanto ela se virava para sair, Pedro escrevia numa folha de papel. Segurava-a com a mão esquerda, e com a direita, segurava uma faca de caça. Fechou os olhos, e sussurrou pensando na folha e no lugar que queria que a folha fosse: “Raidho”. Esta era a runa da estrada, da viagem, e quando sentiu a folha sumir de sua mão, jogou a faca com toda sua força.

            Num momento, Jessica abria a porta para sair, no outro ela parava de supetão com o baque, olhando para uma lâmina enorme e brilhante, a centímetros de seu rosto, com um papel preso a ela. Naturalmente ela reagiu e rosnou, as garras aumentando e uma porção de pêlos negros e brancos surgindo nos braços, se eriçando como uma ameaça. Olhou para trás, mas o lobisomem não estava mais ali. Se recolhera, talvez para se acalmar. Mas deixara o bilhete ainda assim, e nele dizia:

“Meu número abaixo. E se engana se acha que não gosto de cicatrizes. Não viu quantas eu tenho?

Ass.: Pedro Filho de Uther da tribo de Fenrir.

P.s: a faca é minha.

P.p.s: não pode ficar com ela.

P.p.p.s: se levar ela, eu quebro seu braço enquanto toco gaita, e eu nem sei tocar gaita, então que fique avisada.”

            Ela pegou o bilhete, dobrou-o e pôs no bolso de trás. Ficou ainda alguns minutos, esperando para ver se ele voltaria. Nada. A única coisa naquela loja além dela era um grande corvo branco, que a observava com olhos azuis claros, inquisidor. “O que fará agora? Vai falhar? Cometer outro erro? É só o que é capaz de fazer?”, ele parecia perguntar, silenciosamente, com aqueles frios olhos azuis.

            Jessica voltou, pegou o boné, meteu-o na cabeça e saiu, sem olhar para o corvo, e se tivesse olhado para cima, teria visto um lobisomem olhando para ela de cima, apoiado numa janela. Pedro observou-a andar, e suspirou. “Esse ano vai ser longo...”, refletiu, “pelo menos não vou ter que lidar com vilões loucos, já tive minha cota disso”.

            Ele não sabia como estava errado quanto a isso.

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