03 - Que Amor?

Passo o resto da minha sexta-feira tentando não pensar no que aconteceu na sessão ou no estacionamento. Tranco-me no quarto e resolvo escrever no blog sobre a importância de um abraço para uma pessoa e como ele, que aparentemente é tão bom, pode ser um veneno para o resto da vida, causando marcas e sequelas irreversíveis.

O Pior de Todos

Dulce Soledad

Talvez não doa, talvez doa. Talvez não fiquem marcas..., mas ficou. Ele era apaixonado pela vida, ele era apenas um garoto que sonhava e sempre andava com um sorriso bem desenhando em seus pequeninos lábios, mesmo cercado por problemas grandes que para ele eram pequenos, quase inexistentes. Ele podia tombar, cair, se ferir, mas se levantaria e riria de tudo, vendo os machucados cicatrizando.

Ele via a inocência em tudo e em todos. Acreditava que por mais defeitos que eles apresentassem, tinham um lado bom e cheio de luz, mas jamais esperava que um abraço poderia fazer toda a diferença. Era um ato de carinho, pensou ele. Era inocente, disse ele, mas quando percebeu, era tarde demais. Quando se deu conta de que um abraço era mais perigoso que uma arma, paralisou e chorou, chorou porque viu que o mundo e as pessoas jamais seriam confiáveis.

Ele viu com seus olhos sua fé indo embora, seus sonhos se esvaindo, seu sorriso sumindo e dando lugar ao medo, à solidão, ao escuro, porque ali ele se sentia seguro e distante da perversão do ser humano. Um corte na pele não poderia ajudá-lo, apenas a morte, que seria uma maneira de silenciar gritos de dor de um coração que chorava, mas nem a morte o aceitou, então ele continuou vivendo, com medo de amar, com medo de acreditar e receber outro abraço... aquele abraço.

Não trago aqui um testemunho, mas uma reflexão... na verdade, é uma provocação, para que vocês pensem em como o mundo pode ser perigoso e as pessoas que vivem nele, piores. Elas escondem segredos e usam o que é mais sagrado para você como meio de afetá-lo e tocar em seu íntimo, derrubando o seu muro de confiança, destruindo seus sonhos e mostrando suas piores versões.

Eu não consigo, simplesmente não consigo. Acreditar, confiar, pôr a mão no fogo e abrir um grande sorriso para eles. Afinal, sempre serão responsáveis por o afastarem do que lhe traz alegria.

É, não estou mais conseguindo manter uma linha de raciocínio de tão saturado que estou de escrever e ler sobre isso.

Por Human Sevdaliza

Billie comenta e me manda e-mail minutos depois. Eu tenho que responder, mas desde ontem que não consigo, mesmo morrendo de vontade de lhe perguntar se foi ele ou ela que apareceu no estacionamento. Então, para não ceder, desligo meu notebook e resolvo dormir para chegar logo o dia seguinte.

Fecho os olhos e os abro em um lindo sábado.

Eu gosto dos finais de semanas e o bom deles é que eu posso me isolar em meu quarto... aliás, podia, já que a minha querida psicóloga fez umas sugestões ridículas aos meus pais, que decidiram me enfiar em todas as suas programações tolas.

Meu quarto é o lugar em que eu mais me sinto à vontade. As paredes são de carvalho cappuccino, realmente com textura de madeira. No centro, estende-se uma cama de casal enorme, muito confortável, e no seu inferior, há um grande baú acolchoado. Ao seu lado direito, jaz um pequeno criado-mudo com um abajur da Pixar e, no esquerdo, o criado fica livre. Às vezes uso para colocar água antes de dormir.

Eu quis espalhar alguns pufes redondos e cinzas por todo o quarto. Fiz isso porque percebi que, a cada passo que dou, quero me sentar ou me deitar, cansado de me esforçar para fazer as coisas. Ou seja, são meios que facilitam a minha procrastinação.

No canto direito do meu aposento, próximo à porta do banheiro – sim, é uma suíte –, há uma escrivaninha bem bagunçada, em que coloco meu notebook. Acima desta mesma escrivaninha, dependuradas na parede, há prateleiras com diversos livros de ficção e fantasia, como Harry Potter, Nárnia, Jogos Vorazes e, especialmente, O Pequeno Príncipe, meu preferido.

À frente da cama, existe uma janela mediana, mas só vive fechada e coberta por uma persiana preta. Ao redor, alguns quadros de formas geométricas foram pendurados e em todos eles há algumas rosas. Sou fascinado por rosas.

A paisagem desta janela não é tão atrativa quando aberta, tudo que pode se ver são prédios altos que tampam o brilho do sol, o que ajuda na escuridão do quarto, diferente da privilegiada vista dos meus pais, que assumiram a suíte principal do apartamento.

O quarto escuro super combina comigo, um garoto magro, baixo, de olhos castanhos; meus cabelos lisos e pretos vivem tapando meus olhos fundos e cansados; minha pele me irrita de tão branca, pareço uma caveira, bem esquálido. Porém, eu tenho um charme: uma pintinha próxima ao olho direito.

Dois anos atrás, quando eu tinha 15 anos, coloquei um piercing na orelha esquerda, como ato de rebeldia contra meus pais, o que entre os jovens é muito comum.

Não funcionou, eles não ligaram.

Eu estou em uma fase de usar roupas escuras, mas sempre bem vestido, ótimos e lindos looks, claro, que combinam com meu headphone rosa preso em minhas orelhas, ouvindo rock, jazz, pop e, principalmente, indie.

Mais tarde tenho a bosta de um lançamento de um livro publicado por uma amiga da minha mãe. Para ela, faltar a esse evento será de fato a mais rude irresponsabilidade que poderíamos cometer. Ela foi a única convidada e quer o meu pai e eu na enrascada.

Meu pai nunca reclama, ele adora os eventos. Chances para conhecer novos empresários importantes.

O mundo dos adultos sempre se resume em trabalho, dinheiro e status.

Viciados no capitalismo.

O que mais me anima, partindo disso tudo, é a chegada de Elisa, que não demorará muito para aparecer.

Geralmente ela chega depois do almoço, mesmo sabendo que é bem-vinda para almoçar comigo, mas eu acredito que ela morre de vergonha ou tem medo dos meus pais… para ser sincero, eles não gostam dela… lamentavelmente por causa da sua cor.

Eu a defendo, claro, assim como ela faz comigo.

Eu era um garoto incomunicável na escola, sempre caladinho, recuado, e por isso me chamavam de esquisito e pegavam em meu pé. Certa vez, garotos mais velhos estavam com grande desejo de abaixar minha calça e me envergonhar na frente de todos, mas foi aí que Elisa apareceu, muito audaciosa, como uma heroína, me defendendo desses nojentos, e assim nos tornamos melhores amigos.

Cristal arrumou tudo, principalmente o meu quarto, que estava uma verdadeira zona. Ela mostra-se disponível a ajudar no que for preciso enquanto Elisa estiver em casa.

Não demora muito para ela chegar e correr direto para meu quarto. Pelo visto, está muito eufórica.

– Por que tanta felicidade? – Pergunto me desviando do seu abraço, fazendo-a cair na cama.

Eu não gosto de contato. Fico agoniado.

– Credo! – Ela resmunga. Reviro os olhos.

– Fala! – Fico impaciente.

– Credo novamente...

Bufo jogando-me em um pufe defronte a ela.

– Que bicho te mordeu? – Questiona Elisa.

– Eu que vou te morder se você não falar logo o motivo desta felicidade. – Estou meio que ordenando.

Elisa é um pouco mais baixa que eu, tem mais massa, é negra, usa um black enorme, dando-lhe um ar de rainha africana, apelido que lhe dei sem nenhum cunho racista e que, por sinal, ela adora.

Seus grandes olhos castanhos estão vidrados nos meus e eu já sei o que ela quer fazer.

Temos um ritual de que, sempre que nos encontramos, nos olhamos fixamente sem piscar. Quem fizer isso perde. O que ganhamos com isso? Nada! E essa é a graça.

Geralmente as pessoas fazem tudo apostando, com intuito de angariarem coisas. Nós somos diferentes, fazemos apenas com o intuito de sentirmos que não somos padrão.

Eu quero muito lhe retribuir com a mesma empolgação, mas estou estressado e sem paciência para joguinhos. Me conheço e odeio perder, sei que vou lutar até sangrar, o que será uma batalha longa, ou seja, perda de tempo, logo, me recuso.

– ELISA! – Grito, ficando vermelho.

Ela se assusta, pisca e abre a boca para reclamar, mas a fecha novamente, com certeza recordando-se da minha condição mental.

– Conte-me, por favor, preciso de boas notícias. – Desta vez eu estou quase implorando.

Elisa fica um pouco calada me olhando, mas nada disso é novidade para ela, que já deveria estar acostumada com minhas mudanças de humor.

– Conheci um carinha! – Elisa finalmente afirma, cheia de empolgação. Franzo meu cenho.

– Onde? – Questiono curioso.

– Tinder... – Ela responde com um pouco de vergonha.

– Tinder? – Indago incrédulo.

– Sim, Tinder! – Ela desta vez afirma cheia de orgulho.

– Credo!

– Por que credo?

– É um aplicativo de prostituição, com certeza. – Reviro os olhos.

– Está me chamando de prostituta? – Ela parece brava.

– Pode ser uma cliente. – Brinco.

– Posso terminar?

– Fique à vontade, querida!

Antes de Elisa começar a falar, ouço um miado. Bufo impaciente, levanto-me e vou até a porta. Abro-a e o Littlefinger entra, roçando-se em minhas pernas. Ganhei-o quando eu tinha 15 anos, minha mãe me deu porque achou que eu precisava de um animal de estimação para melhorar.

– Littlefinger, meu elfo doméstico fofo, vem aqui falar com a titia Elisa. – Elisa se joga no chão literalmente de joelhos, batendo suas mãos em suas pernas, chamando meu gato manx cinzento para seu colo.

Ele gosta dela, então vai.

Se eu deixar esse namoro se prolongar, tenho certeza de que ela não vai me falar o que quer contar.

– Certo, você pode me contar agora… ou vá embora. – Largo o ultimato. Elisa me lança um olhar, chocada.

– Sério?

– Você tem dúvidas disso, Elisa? Ou vai me fazer perder tempo? – Ansioso, umedeço meus lábios.

Elisa carrega o Littlefinger, senta-se na ponta da cama e suspira, preparando-se para falar.

– O nome dele é Leon, nossa, um fofo, super carinhoso e escreve muito bem. Você sabe que odeio cara que escreve tudo errado. Fico nervosa. Que raiva! – Elisa respira fundo. – Então, a gente vem conversando há um tempo... calma, não te contei nada porque pensei que seria apenas mais um casinho virtual besta e você não tem saco para isso. Nos encontramos e ele não avançou sinal nenhum. Ultimamente os homens, alguns, pelo menos, só querem sexo, mas Leon parece ser super diferente...

Elisa continua falando sem parar, toda empolgada, minimalista, sem poupar detalhe algum da história e de suas impressões, mas não consigo manter o foco.

Como eles conseguem?

Como conseguem amar e desamar tão facilmente?

Eu não sei o que é amor, eu não sei o que sinto por mim, por meus pais, muito menos por outras pessoas, ainda mais de aplicativo.

Talvez seja apenas gratidão…, mas como posso ser grato por tornarem minha vida um inferno?

O que vejo no mundo são pessoas dizendo que amam, mas machucam a outra. Pessoas dizendo que dão suas vidas, mas elas tiram as dos outros. Agridem aqueles que devem proteger, matam os que devem cuidar.

É um mundo hipócrita, nojento, perverso, e eu não quero amar desta forma. Na verdade, não sinto vontade de continuar neste mundo.

O que Elisa sente, com certeza, além de fogo, é paixão, apenas isso. Impossível amar tão rápido assim. Se apaixonar já é complicado sem conhecer a pessoa, só se for pela sua aparência ou pela imagem que deseja mostrar, não sendo o que realmente é.

Isso me deixa confuso… tudo é impreciso.

Eu já senti isso por alguém? Pergunto-me e começo a vasculhar minhas lembranças, atrás de algum ser capaz de me causar tais sentimentos.

Confesso que sinto algo por uma pessoa, ela me causa faíscas na barriga sempre que a vejo. É um garoto da escola, o Rick, um deus grego… com certeza é fogo.

– Está ouvindo, Nich? – Ouço a voz de Elisa me acordar de um transe. Faço que sim com a cabeça e sorrio para ela, como se eu estivesse totalmente presente e empolgado com a história.

– Desativou o Tinder? – Pergunto, tentando me encontrar no assunto.

– Claro que sim, tenho certeza de que ele é o amor da minha vida. – Elisa afirma com brilho nos olhos.

Ouvir isso da sua boca é uma ofensa.

Não... não tem como você saber disso. Burra! Você é uma burra, Elisa.

Impossível se apaixonar por alguém assim tão rápido. Impossível saber que ela é o amor da sua vida… o amor só aparece uma vez e é para sempre, não é desta maneira vulgar, feia, podre, nojenta.

Elisa está estragando tudo, está acabando com tudo de mais lindo que já foi criado e que eu desejo dar e receber um dia.

Engulo em seco e a olho, perplexo.

Não é desse amor líquido que eu preciso. E se as pessoas só amarem assim? Qual será o maldito sentido da vida?

– Aconteceu algo, amigo? Você ficou estranho! – Elisa solta o Littlefinger, que corre para se esfregar no criado-mudo, soltando baixos miados.

– É tão estranho tudo isso... – Tento pôr minha opinião para fora sem ofendê-la.

– Isso o quê?

– Você conhecer um cara em um aplicativo nojento e saber que ele é o amor da sua vida… melhor: achar que ele é, apenas por causa de poucas conversas, um primeiro encontro e uma impressão que você tem dele. E se ele não for isso? E se ele for totalmente diferente do que você sonha encontrar em um cara? As pessoas mascaram tudo, elas escondem quem são na tentativa de agradarem o mundo... é o que o padrão quer. – Ela tenta falar, mas eu estou enfurecido, de pé, totalmente ruborizado. – Agora você vai ouvir! – Interrompo-a. – Ele é o que quer que você veja dele, mas não o que verdadeiramente é. Até deixar você completamente louca por ele, será flores e depois vai se revelar. Você vai conhecê-lo e, por fim, se arrepender e dizer que estava enganada. Vai se frustrar, vai chorar e entrar no luto do falso amor, mas depois que superar, vai instalar outra vez esse aplicativo e buscar outro amor. É assim que você faz.

– É, sim, tudo verdade, mas você nunca namorou, nunca amou para estar falando isso. – Elisa cospe as palavras na tentativa de me ofender por eu ser totalmente encalhado e virgem até da boca.

Não funciona!

– Exatamente, por isso mesmo eu tenho direito de falar tudo isto. Quando eu amar, com certeza, estarei seguro de que conheço a pessoa, sentirei algo genuíno e puro, não algo vindo de uma caça louca por um amor, por um companheiro, por um sentido de vida. O sentido chega quando realmente vivemos sem este objetivo louco de ter algo para preencher o vazio.

– Você fala isso tudo, amigo, mas não faz nada disso. Vive preso aqui neste apartamento enorme, rico, mimado, mas não vive de verdade o que precisa ser vivido.

– Eu não vivo porque tenho medo de vocês, pessoas nojentas que se iludem com tudo... vocês estão loucos para me iludirem também, então prefiro morrer sozinho, depressivo e ansioso, a ficar sofrendo todos os meses com o coração partido em busca de um amor.

Meus punhos estão cerrados, eu estou espumando.

– Você é um babaca, Nicholas! – Elisa brada pondo-se de pé.

– Eu sou um babaca? Simplesmente por ser contra este seu comportamento doentio em busca de rola? – Pergunto ofegante e com os olhos marejados.

– Eu te odeio! – Elisa grita, chorando.

– E ontem dizia que me amava! Está vendo do que vocês são capazes? Amam e desamam em piscares de olhos. Saia daqui, saia do meu quarto, saia da minha casa!

– Está me pondo para fora?

– Estou!

– Tem certeza?

– Absoluta!

– Não quero nunca mais falar com você! – Elisa afirma.

– Está dizendo isso agora, mas com certeza, mais tarde, me mandará mensagens. Eu, sim, conheço você! – Vocifero abrindo a porta para ela se retirar. Ela passa, furiosa, batendo os pés.

Bato a porta com força.

Elisa, sua idiota, está vendo o que você fez comigo?

Começo a chorar, eu estou soluçando, parecendo uma criança.

De pé, perdido, sem saber o que fazer.

Eu odeio as pessoas, odeio este mundo e o que ele é capaz de fazer comigo.

A pessoa que considero amiga, a única, disse que me odeia, ela brinca com os sentimentos como se fossem água e isso não é legal. Eu quero sumir, não ser lembrado, ser esquecido, morrer.

Corro até minha cama, jogo-me nela, assustando o Littlefinger, que logo em seguida pula também, se aninhando em mim. Ele se deita ao meu lado. Eu quero empurrá-lo, mas ele é tão fofo, tão gordinho, tão carinhoso. Talvez eu o ame, talvez seja o único amor que eu acredito ser capaz de sentir. Por um animal, tão puro, tão leal.

– Por que os humanos são tão complicados, Littlefinger? – Pergunto-lhe e ele mia com os olhos entreabertos.

– Você me odeia? – Pergunto, fungando e tentando conter o choro. Ele solta outro miado e adormece. Decido lhe fazer companhia nos braços do sono, meu único remédio.

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