02 - O pior de todos

Depois de uma quinta estranha, minha sexta-feira pode ser útil para pôr para fora tudo que me deixa incomodado. Eu posso descontar em alguém toda minha raiva por essa situação chata em que eu estou metido.

O encapuzado não sai da minha cabeça. Estou com medo, claro, ele pode aparecer novamente ou foi apenas um caso isolado, em que eu estava na hora errada e no lugar errado. Devo contar para alguém ou guardar apenas para mim? Claro, possivelmente vão dizer que é tudo fruto de minha imaginação, afinal, uma pessoa com ansiedade generalizada fica assustada com muita facilidade. Respiro fundo inúmeras vezes e decido deixar essa coisa de homem estranho em estacionamento um pouco de lado.

Como meus pais decidiram, as minhas sextas são dedicadas à terapia, ou seja, de manhã eu acordo, sou liberado das minhas obrigações na escola e me encontro com a psicóloga em sua clínica.

E aqui estou eu, doido para voltar para casa, sentado em um sofá longo e azul, em uma recepção branca com detalhes azuis, com cheiro de flores. Talvez, deste lugar, apenas isso me agrade.

Meus olhos continuam rondando o ambiente e o que mais me chama atenção é a presença de uma mulher de cabelo curto e rosa. Paro e fico encarando-a. Ela mexe em seu celular e ri às vezes, em outras ela revira seus olhos ou sussurra algo bem baixinho. Ela tem umas caras e bocas engraçadas e bem expressivas, o que me deixa hipnotizado.

A mulher de cabelo rosa parece que acabou de sair de um mangá. Sua pele é branquinha e em seu rosto não há sinal algum de imperfeição, há apenas sardas e uma pintinha perto da boca.

Ela percebe que eu estou olhando, ergue seu olhar e abre um grande sorriso. Eu não consigo decifrar se é sincero ou debochado. Tento então retribuir da mesma forma, mas acho que acabo sendo um pouco exagerado. Ela revira os olhos, sorri outra vez e se levanta.

Meu coração gela!

Ela começa a caminhar em minha direção, ajeitando seu vestido tubinho e seu decote. Ela tem grandes seios. É notório.

– Gostou da minha cara, amorzinho? – Ela pergunta parando em minha frente, como se estivesse fazendo posse para uma revista. – Ou dos meus seios?

Eu não sei o que falar, a olho sem graça e as palavras para mim não existem mais.

– O gato comeu a sua língua ou o deixo nervoso? – Ela pergunta e muda sua pose. Em sua voz, percebo um tom sedutor e provocativo.

Ela está tentando me seduzir? Mesmo sendo mais velha?

– Melhor assim, vai que você fala um monte de besteira e estraga minha manhã? – A mulher de cabelo rosa revira os olhos, senta-se ao meu lado, dá uma olhada em seu celular e depois para um dos consultórios da clínica. Aproveito essa oportunidade para reparar nas horas. São 09:08 da manhã.

– Veio ser atendida? – Pergunto finalmente.

– Não, estou aqui apenas enfeitando esta clínica feia com minha beleza e meu brilho. – Responde toda dura, mas acabo rindo. – Achou engraçado? Está rindo de mim?

– Claro que não, mas gostei da resposta. – Respondo-a olhando para a porta da minha psicóloga, que continua fechada.

– Minha psicóloga diz que tenho uma alma de artista… estou pensando em entrar em um curso de teatro, o que você acha? – Ela me pergunta como se eu a conhecesse o suficiente para lhe dar uma opinião.

– Se ela diz, deve ser verdade. – Tento não ser rude.

– Você é imprestável… – Ela revira os olhos, depois abre um sorriso. – Brincadeirinha!

– Marilia, por favor! – Uma das psicólogas da clínica surge e chama a mulher de cabelo rosa.

– Não estava brincando, falei a verdade, você é imprestável, mas é bonitinho, precisa falar mais, é muito calado e parece ter medo de mim. Eu só mordo se pedirem, mas tchauzinho e se cuida, garoto. – Ela dispara as palavras, solta uma piscadela, levanta-se, ajeita seu vestido e seu decote e acompanha a sua psicóloga.

Fico acompanhando-a com o olhar, sem entender nada. Que mulher louca. Acabei de conhecê-la e ela falou essas coisas para mim. Talvez fosse esse o seu problema e o motivo de estar aqui cuidando da sua cabecinha.

Sinceramente, ela me fez sorrir e aqui estou eu, sentado, esperando minha vez com um sorriso idiota na cara.

A porta da minha terapeuta abre, um idoso sai sorridente. Ajeito-me e preparo-me para me levantar, só aguardando o seu chamado, e assim acontece. Ela acena para mim e entro.

Dra. Norah Runni não é uma má profissional, ela mostra ser dura, uma mulher de punho forte, e isso me deixa confortável, mas o problema está em mim. Eu não gosto de ficar me abrindo assim para as pessoas, só se for virtualmente, porque não é cara a cara.

Ultimamente, parece que ela anda cutucando muito a minha vida em busca de algo que não consegue encontrar. Deu opiniões tolas aos meus pais no encontro que acontece uma vez por mês com eles por eu ser menor, o que me deixa preocupado e pensando que a Dra. Runni pode ser capaz de contar para eles as poucas coisas que eu solto em nossas conversas.

Será ela capaz de quebrar o pouco vínculo que formamos?

Sento-me na poltrona de sempre e fico esperando-a se acomodar.

– Olá, Nicholas!

– Olá, Dra. Runni!

– Como vai?

– Indo!                                                         

– Indo como?

– Com os pés, de carro…

– Que bacana, e de que outra maneira você poderia ir?

– Na verdade, eu quero parar de vir aqui.

– Tem algum motivo para não querer mais o acompanhamento?

– Parece que todas as vezes que venho aqui, você piora a minha vida. – Lanço as palavras e ela não consegue conter a reação. Franze o cenho.

– Como assim, Nicholas? – Indaga Dra. Runni, preocupada com minha afirmativa, afinal, é seu nome que está em jogo e eu tenho poder para sujá-lo.

– Talvez nem seja culpa sua, ou você é uma puta psicóloga maldosa querendo ferrar a minha vida também... ou talvez esteja se aproveitando dos seus conhecimentos para me adoecer e tirar dinheiro dos meus pais. – Desvio meu olhar para um pequeno jarro em uma mesinha de canto.

Dra. Runni cruza as pernas. Já percebi durante nossos encontros que, quando ela faz isso, é sinal de que dará broncas através de meigas palavras ou que me fará refletir.

– E o que te leva a pensar que estou fazendo isso? – Questiona-me.

– Você disse que eu precisava interagir com meu ambiente e sabe o que eles estão fazendo? – Pergunto sentindo irritação em minha voz. – Estão me levando para todos os eventos... eles já faziam isso, mas agora é com mais frequência e eu O-D-E-I-O. – Olho-a com raiva.

– Você acha que foi isso que sugeri? Que eles te levassem para o mundo deles? – Dra. Runni indaga em um tom desafiador.

– Se não fosse, com certeza você deixaria claro... por isso eu digo que você fez de propósito. – Reviro os olhos ficando mais puto.

– Infelizmente não somos capazes de implantarmos nossas interpretações nas mentes das pessoas, Nicholas, eu apenas disse o que acho necessário, mas cabe a você e seus pais interpretarem e tomarem suas decisões. Eu simplesmente os acolho. – Ela tenta se explicar e defender seu lado.

É compreensível, ela está certa. Não adianta nada eu ficar tentando atacá-la, já que tudo que eu quero é colocar para fora ou achar um culpado por toda esta merda que eu estou vivendo.

Talvez não existisse culpado.

– Meus pais... eles são os piores e maiores problemas da minha vida, não por existirem, mas porque não me entendem, não sabem lidar comigo. – Desabafo.

– Ou você não sabe lidar com eles? – Dra. Runni me joga uma pergunta que não fez sentido.

Eu tenho que aprender a lidar com meus pais para ser feliz? Eu tenho que me adaptar? Começo a tentar buscar uma resposta, eu quero lhe responder, quero lhe mostrar que eu tenho uma resposta para tudo, mas na verdade eu não sei de nada. Nunca soube!

– Então sou eu que preciso aprender a lidar com eles? – Questiono com um tom debochado.

– Não! O que você precisa fazer é aprender a lidar consigo mesmo.

– E como faço?

– E como você faz?

– Lá vem você!

– Já estou aqui!

Eu odeio essa mulher!

– Eu não sei, eu não sei como fazer isso, não sei como lidar comigo, com meus problemas, com essas coisas que sinto...

– E o que você sente? Coisas? Quais coisas? – Dra. Runni descruza as pernas, prende seu cabelo em um coque desgrenhado e levanta-se.

– Não sei! – Respondo sem entender o que ela está fazendo.

– Para saber lidar, precisa conhecer o que sente, precisa fazer contato. – Ela fala e parece carregar em seus lábios um sorrisinho de canto.

– E como eu faço contato? – Indago e a acompanho com meus olhos. Dra. Runni caminha pelo consultório e some atrás de mim.

– Está vendo esta poltrona vazia? – Vejo sua mão apontar para a poltrona em que ela estava sentada. Olho para o móvel e fico um tempo calado, apenas observando.

– Estou! – Respondo.

– Nela, visualize você, a versão sua que sabe lidar com o que você sente... descubra. Depois inverta os papeis, você se senta nesta vazia e responde. – Dra. Runni tenta me explicar a proposta.

– Eu vou falar sozinho? – Estou confuso, muito confuso.

– Não, Nicholas, vai falar consigo mesmo.

Então tudo ao meu redor parece escurecer e existe aqui nesta pequena sala apenas eu e a poltrona vazia em minha frente.

– Eu não sei!

– Tente!

Não ouço mais nada, apenas minha respiração pesada e as batidas do meu coração. Respiro fundo tentando levar a sério a proposta da Dra. Runni, então a procuro e não a encontro. Realmente não existe ninguém aqui além de mim mesmo.

Torno a olhar para a poltrona vazia e lá está, uma outra versão minha. Ele parece mais gordinho, mais saudável, e sua face é avermelhada... ele parece ser feliz. Ele me encara com um sorrisinho idiota, como se estivesse zombando de mim e do meu fracasso em tentar ser forte nesses tempos difíceis da minha vida.

Eu preciso falar com ele, mas não sei como começar e nem o que falar. Fecho meus olhos, respiro fundo… eu só preciso deixar fluir.

– Oi... – Tento, mas as palavras não saem de primeira. Volto a ficar em silêncio.

– Oi, Nicholas melhor que eu. – Começo a falar outra vez. – Isto é estranho, falar comigo... – Rio de nervoso. – No caso, falar com você. – Mordo meu lábio inferior. – Estranho talvez porque você é a pessoa que eu queria ser, o Nicholas que eu deveria me tornar, mas não sei como fazer isso. – Começo a estalar meus dedos. – A louca aqui da psicóloga diz que preciso conhecer o que sinto, esta coisa que fica aqui dentro de nós, mas eu não sei que nome dar, nem sei como é de verdade ou se realmente me pertence. Queria saber de você, como é isto, o que você sente, como lida com isto. É tão difícil, é tão... doloroso.

O outro Nicholas se levanta e caminha, parando em minha frente. Ele parece bravo.

– Sabe qual é o seu problema, Nicholas que quer ser eu? Você é fraco... você é idiota, tolo, besta, um cara que simplesmente abaixa a cabeça para tudo e não toma atitude nenhuma. E, quando toma, são as piores, rebaixando as pessoas, as humilhando... – Cospe as palavras em minha cara. – Acha que foi fácil chegar aonde cheguei? Acha que foi de uma noite para outra que acordei sabendo lidar com todos os meus problemas e sentimentos?

– Sentimentos? – Questiono um pouco sinuoso e trêmulo.

– Sim, sentimentos! – O outro Nicholas responde impaciente.

– Então o nome disto que sinto é sentimento?

– Vai me dizer que não sabia?! – Minha outra versão ironiza.

– Não... eu sei, é que eu não sei... não sei usá-los. Talvez eu seja defeituoso. – Levanto-me sentindo meus olhos arderem.

– Não é um defeito, é apenas um bloqueio. – O outro Nicholas começa a caminhar pela sala escura.

– Como assim? – Não penso duas vezes em segui-lo.

– Você se bloqueou para você mesmo quando não fez nada quando recebeu aquele abraço.

Então paro, meu coração parece parar lentamente, minha cabeça rodopia e meu ar some. Eu não quero lembrar do abraço, não quero me recordar do que me aconteceu e fragmentos querem invadir meus pensamentos, então começo a lutar. Fecho meus olhos bem forte e deixo as lágrimas rolarem, malditas lágrimas.

– Aquele abraço... – Sussurro jogando-me na poltrona.

– O pior abraço que já recebemos. – O outro Nicholas parece tão triste quanto eu e joga-se também em sua poltrona.

– Sim, o pior de todos! – Afirmo, ergo meu olhar e o encaro.

Nicholas, minha outra versão, abre um sorriso e some. Toda a sala volta ao seu lugar, tudo está como era antes e aqui está Dra. Runni me encarando, doida para perguntar algo.

Limpo minhas poucas lágrimas.

– Que abraço, Nicholas? Quer falar sobre isso?

– Não quero falar sobre nada! – Murmuro impaciente, olho para o relógio e percebo que não estou nem na metade ainda da sessão.

– O que você está sentindo? – Dra. Runni me estende lencinhos. Bufo e reviro os olhos, rejeitando-os.

– Só quero ir embora daqui. Eu estou bem, não se preocupe. – Levanto-me e, ignorando completamente o que Dra. Runni diz, abandono a sua sala e a sua clínica.

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