3 - Ele

           Quando vi Sofia pela primeira vez ela tinha dezoito anos, mas não era tão diferente de agora. Os cabelos eram bem maiores, quase na cintura, mas o resto é igual: as mesmas sardas suaves na pele branca, mais ou menos o mesmo peso e grandes e brilhantes olhos castanhos.

            Ela usava um short jeans vermelho e uma regata branca com pequenas pedras nas alças largas quando entrou no mercado, onde eu trabalhava reabastecendo prateleiras e empacotando coisas no caixa, acompanhada de um rapaz.

            Os dois andaram até os fundos e ficaram sussurrando enquanto escolhiam entre as garrafas de bebidas, pegando e devolvendo garrafas na prateleira.

            Observei brevemente o rapaz que usava uma calça jeans de marca e uma camiseta justa. O cabelo loiro arrumado me lembrava o do Boneco Ken – artificial e genérico.

            Ele estava com uma das mãos na base das costas dela e me questionei se o gesto era carinhoso ou se ele a usava como um troféu. Apostei na segunda opção.

            Os dois se viraram juntos e começaram a andar na minha direção ainda falando baixo, totalmente alheios a minha presença. Ela colocou uma mexa do cabelo atrás da orelha e passou um papel para ele, que pegou e levou em direção ao bolso traseiro do jeans.

            - Oito horas. – ela disse, bem ao meu lado, me ignorando completamente.

            Fingi estar profundamente entretido em empilhar latas de milho, mas espiei em direção aos dois, apenas para ver o rapaz mostrar a identidade no caixa e pagar, antes dos dois sumirem pela porta.

            Foi quando sai do meu lugar na prateleira que vi o pequeno papel caído no chão e o peguei, pensando que o correto seria jogá-lo fora já que não havia como devolver, mas mesmo assim abri e li as instruções para chegar a um endereço bem longe dali.

            Mais tarde, as seis, eu levava o papel depois de sair do mercado, lembrando de Sofia dizendo “oito” ao Boneco Ken. Já havia deduzido que deveria ser o horário e local de um encontro, só não sabia porque eu queria ir ver onde era esse lugar.

            Com certeza o rapaz já deveria ter percebido a perda do papel e pedido outra instrução para ela, sem se preocuparem com a perda do papel inicial.

            Andei até a minha casa, o silêncio do ambiente me abraçando quando entrei, e aproveitei para tomar um banho demorado para tentar me convencer da idiotice que eu estava prestes a cometer.

            Falhando completamente na justificativa, me vesti e saí novamente segurando o papel na mão. Havia um pequeno mapa desenhado, o que tornava relativamente fácil achar o lugar, mas não era nada perto.

            Depois de andar vários quarteirões, era preciso seguir um trecho da rodovia sem acostamento e cercado de árvores dos dois lados.

            Nesse ponto me senti estranhamente exposto, então segui mais próximo das árvores para me manter nas sombras sem perder a estrada de vista.

            A lua estava clara num céu sem nuvens e a estrada completamente deserta, mas mesmo assim havia o receio de ser visto por alguém indo para o mesmo local.

            Seguindo fielmente o mapa, cheguei num local onde havia um acesso para carros à direita da estrada e conferi o relógio de pulso: oito e cinquenta.

            Mentalmente calculei que fazia mais ou menos uma hora e meia que eu estava andando e, nesse momento, pensei no tempo que eu gastaria voltando tudo isso, já que eu não sabia quanto ainda havia pela frente.

            Mesmo assim decidi pegar a estrada de terra, que já começava numa subida ainda beirando as árvores, e ir até o fim. Eu já tinha ido muito longe para desistir e a curiosidade ainda estava grande.

            De certa forma já estava esperando que algum carro passasse por mim porque, na minha cabeça, estava indo espionar uma super festa que eu nunca tinha participado e nem participaria. Cheia de Bonecos Ken e garotas tão bonitas quando Sofia.

            Mas na meia hora seguinte, não houve carro algum, apenas os sons da natureza ao redor e dos meus passos no chão de terra.

            Quando a subida começou a dar lugar para um terreno mais plano, avistei uma cabana e dois carros estacionados na frente. Estranhamente não havia barulho de gente falando e nem som de música.

            Entrei completamente nas árvores, receoso que alguém pudesse me ver, e contornei toda a cabana tentando ver do lado de dentro.

            Havia apenas uma luz acessa e depois de alguns minutos concluí que não havia ninguém ali. A coisa devia estar acontecendo em outro lugar.

            Fui até a parte de trás da cabana, onde tinha notado uma trilha estreita que descia entre as árvores, e segui paralelamente a ela, tentando ser o mais silencioso possível. Pouco depois, escutei barulho de água.

            Escondido atrás de um tronco de árvore eu os vi, enrolados um no outro numa confusão de corpos na beira do lago. Era distante para ver com detalhes, mas eu sabia duas coisas: eram os dois que eu tinha visto no mercado e eles estavam nus.

            Prendi a respiração, percebendo que minha suposição de uma festa estava errada, que eu tinha mais duas horas andando de volta para casa e que agora estava com medo de me mover e fazer barulho.

            Uma coisa era ser pego de penetra numa festa barulhenta, outra muito diferente era ser pego observando um casal nessas condições. Algo me dizia que o Boneco Ken não seria amigável quando imaginasse que eu estava querendo ver a garota.

            Eles se desprenderam, conversando, vi a garrafa comprada mais cedo ali perto. O Boneco Ken se levantou esticando os músculos, a pele brilhando de suor, e entrou no lago.

            Sofia ficou deitada de lado mais alguns minutos, seus cabelos espalhados por toda parte, e depois se juntou a ele. Precisei fechar os olhos para não ver nada que não deveria.

            O silêncio era completo e agora que eles estavam mais ocultos dentro da água, eu me sentia menos constrangido e preocupado por estar ali.

            Os minutos passaram estranhamente, como se eu estivesse em outro lugar, fora do tempo. Era difícil não olhar para ela ali, ao mesmo tempo tão perto, mas infinitamente distante.

            Aquele rapaz genérico tocando-a o tempo todo era um pouco irritante. Eu não tinha simpatizado nem um pouco com ele.

            Foi então que aconteceu. Primeiro um som de moto, não do lado da cabana, do oposto. E depois luzes vermelhas e azuis encheram o ambiente.

            Como se tivesse tomado um choque, o Boneco Ken saiu da água num só pulo, pegou uma muda de roupas que eu não havia reparado, e saiu em disparada.

            - Breno! – Sofia lutava no meio do lago, longe da margem.

            - Foi mal! – disse ele correndo para a trilha, perto de onde eu estava.

            Abaixei e me enfiei entre os arbustos sem me preocupar em ser silencioso, já que os sons da moto e do rapaz não iriam deixar que o meu transparecesse.

            Mantive meus olhos nela, apavorada na água, enquanto o policial descia da moto. O boneco Ken longe, como se não tivesse estado ali.

            - O que faz aqui, moça? – o tom dele era um pouco rude.

            - Nadando. – seus olhos estavam apavorados.

            Senti pena dela naquele momento, bem como uma pontada de irritação com o rapaz que devia estar quase na rodovia. Como ele podia ser tão babaca e covarde?

            - Sozinha? – ele aponta a garrafa – Bebendo? – ela se encolhe, ele aponta as roupas jogadas – Sem isso? Quantos anos você tem?

            - Dezoito. – ela diz com os olhos arregalados.

            - E os documentos? – ele cruza os braços.

            - Estão na minha bolsa, na cabana. – ela aponta a direção e vejo água pingando do braço.

            - Você é parente do Samuel? – um brilho de reconhecimento passa pelos olhos dele.

            - Filha. – quase sai num sussurro, mas posso ver certo alivio ali. Ela sabe que já se safou.

            - Olhe, vamos deixar isso entre nós dessa vez. – o tom dele já não é mais rude, é quase condescendente – Mas não repita isso, para seu próprio bem. – ele senta na moto e o som toma o ambiente novamente – Boa noite.

            Logo em seguida estamos sozinhos novamente e Sofia solta um grunhido de irritação:

            - Maldito Breno. – e bufa dando um soco na água.

            Até hoje não sei o motivo do que faço a seguir, mas saio do meu esconderijo e o barulho chama a atenção dela no mesmo instante.

            - Quem está ai? – ela cruza os braços, protegendo seu corpo, os olhos varrendo o lugar em busca do intruso.

            Saio das sombras das árvores, com as mãos nos bolsos da calça, e começo a andar lentamente até o lago. Agora estou nervoso e sem saber o que falar. Onde eu fui me enfiar essa noite?

            - Quem é você? – ela pergunta, se mantendo distante – Desde quando está aí?

            - Desculpa. - digo porque me sinto mal mesmo por ter visto tudo que vi – Meu nome é Diogo.

            - Você é algum tarado? – ela afunda tanto quanto pode na água.

            - Não. – solto uma risada. E como prova disso pego a roupa dela, ignorando a embalagem aberta de preservativo que cai dali do meio, e coloco mais perto. Viro de costas e me afasto.

            Depois de alguns minutos escuto o som dela saindo da água e observo as árvores balançando com o vento suave para me distrair.

            Percebo que o Boneco Ken não vai voltar para saber se aconteceu algo com ela. Simpatizo ainda menos com ele por conta disso, mas acho que Sofia fica melhor sem ele por perto.

            - Pronto. – ela diz, e me viro. Está usando uma saia jeans e uma camiseta preta com um bordado de flores vermelhas. – Sou Sofia. O que você faz aqui?

            - Bem, eu... – engasgo, mas acabo falando que a vi no mercado com o rapaz, e depois encontrei o papel no chão quando não dava para devolver. Cada palavra fazendo eu me sentir mais idiota ainda.

            Gaguejo explicando que eu imaginei ser uma festa e não o encontro de casal. Pareço uma criança pega no flagra, tentando dar uma boa explicação para os pais e torcendo para não ficar de castigo.

            – Isso é seu. – entrego o papel com o endereço, que ela enfia no bolso da saia.

            - E como você chegou aqui? – sua testa está franzida e percebo que ela está irritada porque eu a vi sem roupa e me intrometi em uma coisa particular, mas não tanto como imaginei que ficaria.

            - Vim andando. – confesso.

            - Uau. Onde você mora? – suas sobrancelhas arqueiam.

            - Centro.

            - Isso dá o quê? Umas duas horas e meia? – ela está realmente surpresa.

            - Duas, na verdade. – digo, desanimado, lembrando que ainda tenho mais duas para voltar para casa.

            - Vem comigo. – ela começa a andar em direção à trilha e eu a sigo.

            Logo chegamos até a cabana, que como eu previa, tem apenas um carro na frente agora.

            – Você está com fome? – ela me pergunta.

            - Na verdade, sim. – respondo e ela destranca a porta e entra.

            Sigo Sofia para dentro da cabana. O lugar é sala e cozinha de um estilo rústico e imediatamente eu gosto dali, principalmente do grande sofá com a janela atrás.

            A mesa na frente do sofá está repleta de coisa para comer e meu estômago ronca, demonstrando que eu não comi nada desde o almoço.

            - Fica à vontade. – Sofia diz, se sentando, e eu me acomodo o mais longe possível dela para ser respeitoso. – Pode comer o que quiser. – acrescenta se servindo.

 

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