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A Doutora Juliet Blair fechou o registro do chuveiro. Afastou a cortina com peixinhos coloridos e saiu para o banheiro, pingando água no tapete. Quando apanhou a toalha no gancho, um sorriso satisfeito tomou conta do seu rosto. O aroma de café, que vinha do primeiro andar de seu bangalô, era simplesmente maravilhoso!

A autora da proeza chamava-se Consuelo, mas atendia pelo apelido de Conchita.

Conchita se recusava a fazer café na cafeteira. Preferia ferver a água, adicionando o pó e o açúcar e, depois, coava em um coador de flanela. Quando vira aquela operação pela primeira vez, Juliet não reprimira uma expressão de nojo. No entanto, bastou sentir o cheiro e provar a bebida para nunca mais tomar café de cafeteira! Além de saboroso, com um aroma agradabilíssimo, tinha a vantagem de produzir menos lixo, como no caso dos coadores descartáveis...

− O café está pronto, Doutora! − a cozinheira gritou. Juliet sorriu. Como se precisasse avisar, com um cheiro daqueles...!

−Já vou descer! − respondeu de volta.

Procurou no armário do banheiro o tubo de gel que comprara há seis meses, para reparar manchas causadas por picadas de mosquitos. Observou detidamente a data de validade e depois leu a bula. Os fabricantes do Repair, os Laboratórios Forbes, prometiam milagres contra toda a espécie de marcas. Aplicou resolutamente o gel no pescoço, nos ombros, no colo. Então, foi em busca do hidrante com fator de proteção solar 50.

Finalmente, sentou-se na cama para escolher uma das roupas perfiladas no armário aberto. Eram roupas coloridas e funcionais, bem diferentes do branco imaculado que os nativos da ilha esperavam que ela usasse.

Quando chegara à Isla de los Sueños, há dois anos, havia sido uma novela convencer os habitantes de que ela não era médica e que seu título de Doutora era decorrente de um Doutorado em Biologia Marinha. Mas, passado o tempo, não fizera muita diferença. Quando o médico do pequeno hospital não estava, era em seu laboratório que os habitantes da ilha buscavam auxílio para gargantas inflamadas, diarreias ou escoriações.

Mas, tratá-los na ausência do Doutor Martinez não era problema. Suas dores de cabeça, invariavelmente, vinham dos turistas! A maioria se recusava a ouvir as recomendações dos guias, enfiavam as mãos em algas urticantes, furavam os pés descalços nos recifes, tinham insolação por falta de chapéu e queimaduras por falta de protetor solar...

Juliet suspirou. Quem, em nome de Deus, havia inventado a praga chamada turista?! Não fosse o serviço de balsas, controlado por seu amigo Gavin Kimball, aquela erva daninha já teria destruído a ilha...!

Olhando para trás, não sabia o que teria feito sem ele! Quando o conhecera, Gavin era seu colega de Faculdade, em Long Beach: ele estudando Bioquímica e ela Biologia. Depois da formatura ficaram anos sem se ver. Juliet fizera seu Doutorado em Biologia Marinha, fora aprovada com louvor e, há dois anos, recebera a indicação da própria Universidade para chefiar o Centro de Proteção da Vida Marinha da Isla de los Sueños.

Na aventura romântica em que se transformara sua vida, só havia dois problemas: a falta de verba para pesquisas e....os turistas!

O primeiro problema fora resolvido com uma subvenção da Fundação Forbes, mantida com recursos dos Laboratórios Forbes, justamente os fabricantes do cicatrizante Repair, que acabara de usar...! Seu projeto de pesquisa sobre a população marinha de moluscos da Isla, não apenas fora integrado a uma grande pesquisa de fármacos, como recebia recursos adicionais para manter o Centro.

Infelizmente, se o entorno marítimo contava com a proteção do Estado, o mesmo não ocorria com a ilha. Até que o Congresso dos Estados Unidos resolvesse transformá-la em uma reserva, proibindo o loteamento, a Isla de los Sueños permanecia vulnerável à mira dos hoteleiros. Por isso, quando seu amigo Gavin aparecera com uma herança na mão e uma autorização distrital para administrar o transporte e o acesso de turistas, Juliet teve certeza de que alguém lá no céu gostava, e muito, dela!

Gavin Kimball conseguira o controle do transporte e só fechava contratos com agências devotadas ao turismo ecológico.

A rotina diária era a mesma: as balsas apanhavam os visitantes pela manhã, em Laguna Beach. Na ilha, eram recebidos para passeios rigorosamente programados. E, ao final da tarde, eram escoltados de volta ao continente.

As vagas para temporadas também eram restritas. Circunscreviam-se, exclusivamente, às férias de verão. Assim, com exceção do hotel La Isla, uma rua de calçamento, um mini hospital e uma patrulha com dois guardas, a Isla de los Sueños não tinha a menor infraestrutura, o que mantinha a maior parte das pessoas, sobretudo hoteleiros, bem longe dali!

Aquelas condições transformaram a ilha no paraíso pessoal de Juliet. Ela podia se envolver inteiramente no trabalho, concentrado no lado mais selvagem, sem a incômoda presença dos visitantes.

Não raro Conchita insistia para que ela fosse ao continente, se “distrair”.

Mas, aos trinta e três anos e experimentando a autonomia da carreira que escolhera, se acostumara a resolver seus problemas de forma absolutamente pragmática: debruçava-se sobre eles quando apareciam. E, até aquele momento, não sentira a menor falta de distração e muito menos daquela a que Conchita se referia...

Juliet voltou sua atenção para as roupas do armário. Optou por um short masculino e uma regata que, além de ser mais comprida, tinha a vantagem de um decote alto, quase na base do pescoço. Terminou a produção despretensiosa pendurando no pescoço uma corrente de ouro, da qual pendia um peixinho de strass branco, com calda de pedras azuis.

Quando desceu, Conchita a esperava ao pé da escada, com uma fumegante xícara de café.

− Nossa! Que delícia!

− Não vá sair sem comer, hein Doutora?! Café não enche a barriga de ninguém!

Juliet sorriu. Ficou observando Conchita ondular seus cento e quinze quilos rumo à cozinha.

−Como está o bebê de Dolores?

− Ah! Esta semana tuve fiebre, estuve engripado, un desastre...! Eu disse a Dolores para não deixá-lo sem roupas! Pero las madres piensam que las abuelas no saben nada![1] Por isso eu fiz um chá mesmo assim! Agora está ótimo!

Juliet sentou-se diante da mesa, para tomar o café da manhã. Dolores era a segunda filha de uma série de seis que Conchita exibia com orgulho. Com exceção de Tereza, todas as outras filhas moravam em Laguna Beach.

Conchita, seu marido Pablo e Tereza trabalhavam para ela, a expensas da Forbes. A primeira, era a responsável por sua casa e seu bem estar pessoal. Tereza era sua secretária no Centro. E Pablo era o fiel escudeiro que batia criteriosamente todas as praias da ilha e fiscalizava o perímetro marítimo.

− E a lua de mel? − Juliet provocou, referindo-se à viagem que Conchita e o marido planejavam há meses, para Guadalajara, no México. Conchita corou e fez um gesto vago com a mão.

− Ah, Doutora! No hay una luna de miel... É só... férias...!

− Huhum. Tá bom! Finjo que acredito. Vocês embarcam amanhã?

− Si, señora. Pero volvamos en una semana! [2]

− Conchita! Não se preocupe comigo! Vá e divirta-se com seu marido. Você sabe que essa ilha é mais calma que um mosteiro! Não acontece nada por aqui!

Os olhos de Juliet perderam-se no mar exposto através da grande janela, de frente a mesa. Passeou o olhar pelo Recife do Adeus, batizado pelos americanos de Recife Collingwood, em homenagem ao cartógrafo que o mapeara.

Estava tão absorta que se assustou com os gritos de Tereza, desdizendo sua afirmativa anterior de que não “acontecia nada” por ali!

Doutora Blair! Doutora Blair!

A moça vinha berrando esbaforida, pela estrada de terra.

Juliet ergueu-se de uma vez, pressentindo uma desgraça.

− O que aconteceu, Tereza?!

Alertada pelos gritos, Conchita também saiu correndo da cozinha, temendo que algo tivesse acontecido com Pablo. A moça saltou de uma bicicleta motorizada e contou:

− Eles estão lá no norte, Doutora! É um navio! Chegou logo de manhã...

− Navio?!

− Sim! Um navio grande! Achei que fosse um navio de turismo, passando pela costa, mas eles ancoraram! E estão descarregando um monte de equipamentos!

Não acredito! − Juliet voltou-se resoluta para o interior da casa, em busca das chaves de um Jipe antigo.

−Olha a bolsa, Doutora...

Agarrou a bolsa que Conchita lhe estendeu e foi falando pelo ombro, enquanto se encaminhava para fora:

− Ligue para o Pablo! Mande ficar me esperando no cais, com a lancha!

− Pode deixar! – a cozinheira respondeu de pronto.

Tereza mal teve tempo de se aboletar no banco do carona e colocar o cinto de segurança. Juliet já arrancava o carro, com o cenho fechado, enfurecida com todos os turistas do mundo!

A moça se encolheu. Conhecia a Doutora Blair de sobra para saber o quanto ela estava nervosa. A última vez em que a vira daquele jeito havia sido no ano passado, quando um turista atirara pedras em um golfinho. A Doutora segurara o homem pelo pescoço e o sacudira tão violentamente, que o Sr. Kimball precisou ir em socorro do homem e não dela! Apesar de Gavin Kimball ter encontrado uma maneira de arquivar o processo, aquilo não apagara o fato de que a Doutora tinha sido processada por agressão.

Assim que chegaram ao cais, Juliet pode ver a embarcação. Era um navio particular. Estava longe de ter as dimensões de um cruzeiro, mas mesmo assim era um enorme e luxuoso navio!

− Filhos da puta! − vociferou entre os dentes.

− Quer que eu chame o Sr. Kimball, Doutora Blair...? − a voz de Tereza saiu em falsete. A moça torcia as mãos, sentindo um medo fino se espalhar pelo estômago.

− Não preciso do Gavin para resolver isso!

A Doutora Juliet Blair entrou na lancha do Centro de Preservação da Vida Marinha, pilotada pelo pai de Tereza.

Madre de Diós! – a moça sussurrou. − Proteja a Doutora! Não deixe ela se ferrar, Señora, por favor...!

Juliet acomodou-se e olhou diretamente para o navio.

− Você não os viu?! − perguntou à Pablo, sem entender porque ele não a avisara.

−Vi sim, Doutora, bem cedo!

− Mas pelo amor de Deus, homem! Por que não me avisou?!

−Desculpe, Doutora Blair, mas um navio desse tamanho...! Não achei que eles ancorariam sem a sua permissão...!

− Pois ancoraram...! Os desgraçados ancoraram! Chegue o mais perto que puder Pablo! Por favor!

Embora também temesse pela segurança da Doutora, o vigia se concentrou na condução da lancha. Estava certo de que Juliet Blair estava indo ao encontro de uma grande confusão. Mas nada podia fazer, a não ser conduzi-la.

−Pare. Pode parar aqui! − ela ordenou.

Pablo obedeceu. Juliet se colocou de pé, megafone em punho. Voltou-se para o navio, lembrando a passagem bíblica na qual o pequeno Davi enfrentava o gigante Golias...

− Atenção vocês aí do navio! Sou a Doutora Juliet Blair, do Centro de Preservação da Vida Marinha! Vocês estão executando uma operação ilegal! Repito! Vocês estão executando uma operação ilegal! Retirem-se imediatamente! Eu repito! Vocês estão executando uma operação ilegal!

Pablo voltou os olhos para o navio. Houve uma movimentação de curiosos nas amuradas, tanto de passageiros quanto de tripulantes. Mas nenhum indício de que seriam atendidos. A Doutora Blair empunhou mais uma vez o megafone:

− Sou a Doutora Juliet Blair, do Centro de Preservação da Vida Marinha! Vocês estão executando uma operação ilegal! Eu repito! Vocês estão executando uma operação ilegal! Retirem-se imediatamente ou informaremos a Guarda Costeira! Eu repito...! Vocês estão...

Somos o navio de Pesquisas Karista I.... − uma voz masculina ecoou pelos autofalantes do navio. − em expedição científica, chefiada pelo Doutor Hank Caruzzo, da Universidade de San Diego. Gostaria que subisse a bordo, Doutora Blair.

Pablo ficou com a respiração suspensa, temendo que a Doutora fosse até lá sozinha. Mas percebeu que ela franzia o cenho, nitidamente preocupada com outra coisa. De fato, o que a incomodava não era o convite. E sim... o nome: Hank Caruzzo lhe produziu uma sensação incômoda. Onde ouvi esse nome?!− ela se perguntou, sem conseguir resposta imediata.

−Não pode ir até lá sozinha, Doutora! – Pablo lhe implorou. Voltou o rosto para as expressões de poucos amigos num grupo de jovens que se acotovelava na amurada de um dos decks superiores. Por mais que a voz que soara dos autofalantes fosse educada, fato era que aqueles garotos não pareciam nutrir por ela nenhuma simpatia!

A resposta da Doutora, porém, o desarmou:

−Mas é claro que posso! − ela emitiu um sorriso complacente. − Fique tranquilo, eles não vão me matar. Não depois de eu ter berrado aos quatro ventos o meu nome e endereço! Chegue a lancha mais perto, Pablo. Por favor.

−...Sim senhora... −ele resmungou vencido.

A lancha se aproximou do navio. Na grande praça da popa, um homem de barba cerrada aguardava uniformizado, pronto para ajudá-la a subir à bordo.

Sem saber o que fazer, Pablo manobrou a lancha para uma distância segura. Desligou os motores e preferiu lançar âncora, rezando para que a Doutora Blair saísse daquele navio com todos os fios de cabelo no lugar

[1] Esta semana teve febre, esteve gripado, um desastre! Mas as mães acham que as avós não sabem nada!

[2] Não é uma lua de mel. [...] Sim senhora! Mas voltamos em uma semana!

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