07: O papai é muito... Bom?

A chuva nos encontrou quando viramos a esquina. Alguns chuviscos pingaram no vidro do carro e papai blasfemou um palavrão.

“Merda!” Ele socou o volante. “Tinha que chover justo hoje?”

Era apenas chuva, nada demais. Às vezes eu penso que o meu pai odeia tudo e a todos e que em certos dias, odeia ele mesmo.

“Querido, não fale mal na frente da nossa filha, sabes que eu não aprovo o uso de palavrões.”

“Ah, cala a boca Rebecca!” Ele esbraveja. “Você nunca aprova nada, para de ser tão paranoica, tenho certeza que nossa filha nem está prestando atenção no que estamos discutindo.”

Seu telefone celular começou a tocar, meu pai desviou o olhar da minha mãe e segurou-o.

“Por favor, querido. Desligue o telefone, sabes que dirigir falando ao telefone gera multa.”

“Já vai começar?” Ele rosna. “Rebecca, eu sei o que eu faço, para de tentar me controlar.”

“Não estou te controlando, só estou dizendo para desligar o telefone, sua filha e eu estamos dentro desse carro e se você prestar atenção na ligação e esquecer-se do trânsito? Você já pensou nisso?” Mamãe cruzou os braços.

“Isso nunca aconteceu...” ele atendeu.

“Mas e se acontecer?” Ela continua insistindo. “E se acontecer agora? E se a sua filha e eu morrermos por conta de uma imprudência? E se...”

“Para!” Papai exclamou irritado e tampou o celular com a mão esquerda. “Dá pra parar de meter tanto e Se nisso? Não vai acontecer nada, para de ser tão pessimista.”

Encostei minha cabeça no vidro da janela e comecei a prestar atenção na chuva e em como ela transformava tudo o que tocava. Eu sempre gostei muito da chuva e principalmente do cheiro que ela deixa quando molha a terra seca, tentei me imaginar fora daquele carro dentro de uma poça de lama, pulando e me sujando, como eu fazia quando era pequena e visitava minha avó Madison. Nós duas vestíamos nossas capas de chuva e galochas, as galochas, essas, com certeza, eram a melhor parte. Quando íamos correr pelo quintal, a vovó parava no meio do caminho e sempre acabava encontrando pedras dentro das suas galochas e dizia que não sabia como elas haviam parado ali, mas que ninguém além das fadas rebeldes do bosque podia ter as colocado lá.

“O que são fadas rebeldes vovló?” Eu a perguntava. Naquela época meus dentes haviam caído e eu falava embolado por estar sempre com a língua entre as janelinhas, foi um milagre, para minha mãe e um gasto a menos para o meu pai, eu nunca ter precisado usar aparelho.

“São fadinhas curiosas e sapecas como você, elas se escondem no bosque e aprontam com os outros, aposto que estão rindo da gente agora.” Ela respondia, olhando para os lados.

“O papai disse que fadas não existem e que a senhora é maluca, vovló.” Eu dava risadas.

“Posso até ser maluca, mas pelo menos sou uma maluca feliz, você não concorda comigo?” Ela me pegava no colo e nós duas dávamos risadas. Minha vó sempre despertou a melhor parte de mim, durante toda minha vida, ela fora a pessoa quem mais me ouviu falar.

Os meus pais não falam muito sobre a morte dela, minha mãe, por sua vez, decidiu apagar tudo o que a fizesse lembrar-se de sua mãe. De acordo com os rumores que cercam a família, a vovó Madison nunca apoiou a escolha da filha em relação ao marido (vulgo meu pai). Minha mãe, quando tinha 15 anos, já estava noiva de um garoto de sua idade, eles namoraram por cerca de dois anos. Meu pai a conheceu em um bar e seis meses depois, ela já desistiu de tudo e estava grávida de mim. Foi tudo muito rápido e dá água para o vinho, tudo na vida da minha mãe mudou.

Ao descobrir sobre a traição da filha em relação ao noivo e aos estudos, meu avô a expulsou de casa e minha avó Madison não pode fazer nada. Mesmo assim, ofereceram as escondidas, um chalé nas montanhas para os meus pais morarem. Mamãe me contou que eu nasci naquele chalé e que um caçador a ajudou com o parto, meu pai cursava faculdade a distancia e de tempos em tempos tinha que ir para a cidade, e aconteceu que justo no meu parto, ele não pode estar em casa. Quando chegou, encontrou sua mulher com a filha nos braços, internada em um posto de atendimento público e com  fome, pois se recusava a ter que comer apenas sopa. Até os meus dois anos de idade, eu ainda não tinha conhecido meus avós, minha mãe sempre teve muito receio pelos pais a terem colocado para fora de  casa (ainda que não soubessem que ela estava grávida, nem mesmo ela sabia direito) e nunca se importou em telefonar para casa.

No meu aniversário de três anos, o meu pai obteve um bom estágio e todos nos mudamos para Nova York novamente. Esgotada de se esconder, minha mãe telefonou para casa e descobriu que seu pai havia falecido a  cerca de um ano e que sua mãe tentou fazer contato inúmeras vezes, mas ela nunca conseguiu porque sua filha jogou o telefone contra a parede da casa. A vovó Madison os convidou para viver com ela, agora que seu marido havia morrido, não havia motivo para se separar de sua filha. Havia medos de minha mãe, mas meu pai, ambicioso como sempre foi, viu na fragilidade da minha avó, a grande oportunidade que estava procurando por anos para crescer na vida. Para ele, viver com sua sogra e ganhar uma posição importante na empresa de propriedade familiar eram como ganhar na loteria. Ele era casado com uma linda mulher rica, a única herdeira de uma fortuna gigantesca, também trabalhava num cargo de suma importância, tinha uma filha e poderia se exibir para os irmãos.

Quando minha avó morreu, eu tinha a idade de 12 anos, a sua morte foi o grande estopim que me fez calar durante todos esses anos. Pois quando ela se foi, levou consigo a parte boa de mim e sem ela, não haveria mais o porquê de existir cores em mim. Eu a visitava todos os finais de semanas, sua casa era pequena e aconchegante, ela tinha um estúdio de fotografias de borboletas e nós duas adorávamos ir até lá e contar histórias. Mas aí depois do ano novo, basicamente em ferreiro de 2013, meu pai teve uma reunião importante e não pode me levar para vê-la. Naquele mesmo dia, enquanto vovó colhia flores no jardim, algumas abelhas a picaram e seu antialérgico estava longe demais para ela alcançar e quando os vizinhos a encontraram, ela já estava morta e com as picadas no pescoço.

No seu velório, depois que todos saíram, eu corri para os bancos da igreja e escondi uma carta que havia escrito para Deus. Mas antes de sair, ouvi meu pai resmungar alguma coisa para o seu caixão aberto: “Velha inútil.”

Ele nunca se importou com ela, na verdade, ele nunca se importou com nada senão seu interesse abominável  ao dinheiro.

Depois desse dia, eu nunca quis ir a um funeral, muito menos falar ou ler sobre algo relacionado. Quando morremos, não somos nada além de matéria, e é depois da morte que descobriremos quem realmente se importou conosco.

A chuva continuava chocalhando, o para-brisa do carro fazia um barulho irritante, e o meu pai era pura frustração, e os olhos da minha mãe se encheram de lágrimas.

“Por que não arrumou o cabelo?” Meu pai perguntou-a, encarando seu coque baixo e frouxo.

“Oh, é um velório, não achei que fosse necessário me arrumar tanto.” Ela respondeu e meu pai deu uma risada.

“Você nunca se arruma mesmo, era de se esperar que não trocasse o repertório.” Ele diz irônico e vira outra esquina.

Alguns minutos depois, chegamos ao cemitério Central e estacionamos numa vaga próxima a entrada.

Meu pai desceu primeiro, depois se virou e abriu a porta para mamãe e eu. Ele nunca tinha feito isso, geralmente meu pai iria sair e nos chamar com uma palavra de injúria, mas havia pessoas que conheciam sua parte gentil, ou seja, o oposto do que ele realmente era.

Quando entramos na capela, papai foi cumprimentar os seus colegas de trabalho e a mamãe e eu nos sentamos para fazermos nossas orações à falecida.

Enquanto a minha mãe orava, discretamente eu levantei a cabeça e vi a tênue imagem do que parecia ser Noah perto do caixão da mulher morta. Mas o que ele estava fazendo lá? E por que ele parecia estar chorando?

“Psiu...” Minha mãe puxou a barra do meu vestido. “Sabia que é pecado rezar de olhos abertos? Não conheces a história da mulher de Ló? Para de bisbilhotar os outros e volte a rezar seu pai e nosso.”

Eu não disse nada, apenas abaixei a cabeça e voltei a rezar.

Depois da oração, a minha mãe me cutucou e encarou o Noah do outro lado do salão.

“Deve estar sendo difícil para ele, perder uma mãe não é nada fácil.” Ela disse e eu me assustei.

“De quem está falando mãe?” Eu perguntei baixo.

“Do rapaz perto da coroa de rosas, lá próximo ao caixão, o seu pai me disse que ele era filho dela, da falecida.”

Como assim? Como o Noah podia ser filho dela? Era muita coincidência.

“Ele... ele está na minha turma.” Acabei deixando escapar.

“Isso é sério?” Mamãe abriu um sorriso. “Kristen, então vai até lá e de seus pêsames, vá...”

“Não mamãe, nós não somos amigos, não posso simplesmente ir lá, o que devo dizê-lo?” Eu não podia ir até o outro lado, eu me lembraria dele tentando me impedir de ir embora na sexta-feira na escola e sairia correndo na frente de todo mundo, inclusive dele e do meu pai.

“Não seja tola Kristen, vai lá e diga que sente muito e pronto.” Ela praticamente quase me jogou do banco.

“Não mãe, não é porque estudamos juntos que eu tenho que ser amiga dele.” Continuei sentada no banco.

“Kristen vai logo!” ela me cercou com aqueles olhos de – ou você vai ou eu conto para o seu pai- doce e compreensível.

Sem escolhas, eu me levantei um pouco trêmula e caminhei até o outro lado do salão. Logo que me viu, o Noah limpou as lágrimas e me encarou.

O que eu deveria dizer? Será que se eu apenas sorrisse oprimida, ele entenderia como um  eu sinto muito?

“Olá.” Ele disse meio rouco.

“O-O-O...” Eu simplesmente não conseguia pronunciar nada, nenhuma palavra sequer. Tudo naquele lugar me fazia lembrar-se da minha avó e de como as pessoas reagiram a sua morte.

Foi então que eu encarei o caixão aberto da mãe do Noah, ela estava tão pálida, o redor do seu olho vermelho e seu nariz estava tampado com algodões, a mulher usava um vestido azul marinho e reparei nas rosas do lado de seu caixão e nas pessoas naquele ambiente.

Será que todos realmente a amaram? Será que eles realmente sentiriam sua falta? Ou é tudo uma piada? Assim como é na minha casa?

Milhões de pensamentos encheram minha mente, então senti a mão de Noah tocar meu braço e me afastei dele.

“Está tudo bem?” Ele perguntou. “Você me parece pálida... Tem alguma...” Sem mais ou menos, comecei a voltar para trás e quando me dei conta, eu estava praticamente correndo para fora da capela.

Lágrimas cobriam o meu rosto, passei as mangas do meu vestido nos olhos e continuei correndo sem rumo. Dentro de mim havia uma tristeza muito grande e não importava o que acontecesse, ela nunca sairia do meu peito. As dores profundas tem um velho hábito, além de serem doloridas, também são intermináveis.

Volte para olhar ao seu redor, não há ninguém ao seu lado, você os escuta, mas ninguém pode te ver. E essa... Essa definitivamente é uma das piores dores que alguém pode sentir.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo