05: Um pouco sobre mim

As pessoas sempre falaram sobre as minhas orelhas, quando eu era pequena, minha avó Madison disse que eu parecia uma fada, pois nos livros de contos ilustrados que ela me dava, as fadas tinham orelhas pontudas, não tanto como a de um gnomo, mas eram semelhantes às minhas. A partir desse momento, eu comecei a me sentir mais confortável, mas depois chegou à quinta série e as coisas mudaram. Mesmo acreditando no que a minha avó dizia sobre as minhas orelhas, eu me sentia oprimida pelo fato dos comentários maliciosos ultrapassarem os limites e não serem mais apenas comentários bobos. Eu comecei a esconder as orelhas atrás do meu cabelo. Desde então, as pessoas nunca mais comentaram sobre elas, ou eu pensei que nunca mais falariam.

Saí da sala o mais rápido que pude, eu sabia que tomaria uma advertência por sair enquanto uma professora ainda estava ensinando, mas eu não conseguia ficar lá, não depois do que aconteceu. Eu fui o mais rápido possível para o estacionamento, peguei a minha bicicleta, e quando eu estava prestes a sair, o Noah jogou a mochila no chão e colocou os pés na frente dos pneus da bicicleta. Ele agarrou a alça da bicicleta, então me cercou com os seus olhos castanhos e sacudiu sua mandíbula em confronto. Eu pensei que ele diria algo, mas ele não disse absolutamente nada. Afinal, o que ele poderia me dizer? Nós não nos conhecíamos, algumas horas antes, o mesmo não tinha feito nada sobre o amigo e o que você poderia me dizer naquele momento? Que sentia muito?

Ele afastou-se de mim, então ganhei impulso e comecei a pedalar rapidamente. No caminho para casa, as vozes daquelas pessoas continuaram me atormentando.

Quando cheguei na minha casa, joguei a bicicleta na garagem, subi as escadas para o meu quarto e me tranquei por lá. Coloquei a mochila na cama, arrastei a penteadeira para mais perto da cama e sentei-me à sua frente.

O meu reflexo repeliu alguém, mas não consegui distinguir quem era. Há muito tempo eu já não sei quem eu sou, o que a minha imagem representa? Por que sou eu e mesmo assim não sou eu?

Eu peguei um cotonete da gaveta da minha cômoda, prendi o meu cabelo e comecei a limpar os meus ouvidos. Algo queimou dentro de mim, não consegui esquecer aquelas vozes na minha cabeça, as minhas mãos tremiam e comecei a limpar compulsivamente atrás das minhas orelhas. O cotonete começou a raspar a minha pele e passei-o com mais força, quanto mais força eu colocava, menos eu podia ouvir as vozes.

Minha respiração ficou alterada, olhei mais uma vez no espelho e vi sangue escorrer pelo o meu pescoço, eu estava me limpando tão forte que acabei rasgando a pele de trás das orelhas. Eu joguei o cotonete sujo no chão, enxuguei as minhas mãos no jeans branco e escondi o meu rosto entre os meus joelhos. Nenhuma lágrima desceu dos meus olhos, não importava o quanto estava machucando as erupções da minha pele, eu simplesmente não podia chorar. Balancei o meu corpo por cerca de 20 minutos, então tomei coragem, me levantei e voltei para o banheiro pra tomar banho.

Logo que desci para cozinha, encontrei minha mãe ao pé da pia cortando alguns tomates para salada. Sua postura estava caída, os seus cabelos presos num coque frouxo e pude reparar nas manchas avermelhadas em seus braços. Aquilo havia acontecido de novo, e novamente, teríamos que manter a farsa da nossa família adorável e feliz.

“Olá querida, como foi seu dia na escola?” Mamãe perguntou, continuando de costas para mim.

“Foi... normal.” Respondi. Ela tinha problemas demais, não podia conta-la sobre os meus, e mesmo se eu contasse mamãe não acreditaria.

“Você demorou lá em cima, o que estava fazendo?” Ela perguntou e eu me calei. “Ouvi o chuveiro ligado, estava tomando banho?”

“Sim, estava.” Me aproximei do fogão e comecei a mexer a polenta.

“Kristen, amanhã, o seu pai e eu teremos que ir a um enterro, ele disse que você também terá que ir conosco.” Ela contou, virando-se para mim. Havia uma marca gigantesca abaixo dos seus olhos e seus lábios estavam inchados.

“Mamãe...” Eu sussurrei.

“Ah, eu me distraí e acabei acertando com a cara na parede, acredita?” Ela mentiu.

Não, eu não acreditava, eu nunca acreditei nas suas desculpas.

“Continuando, eu sei que não gosta de velórios, mas ficaríamos gratos se fôssemos todos juntos. O seu pai telefonou e disse que a esposa de um colega de trabalho dele faleceu nessa tarde, a pobre mulher estava enfrentando um câncer há cerca de três anos e veio a padecer hoje de manhã.”

Desde que a vovó Madison morreu, eu nunca mais fui a um enterro. Até mesmo nos filmes, eu evito assistir as partes em que alguém morre, sei que morrer faz parte da vida, mas eu amava muito a minha vó e não queria que ela partisse. Lembro-me de ter escrito inúmeras cartas para Deus logo depois do seu falecimento e que as escondia entre os bancos da igreja. Antes de a minha avó morrer, o meu pai respeitava a minha mãe e acima de tudo, ele parecia nos amar. Mas aí, quando o testamento dela saiu e ele descobriu que sua nora havia perdido todo o seu dinheiro em bibliotecas comunitárias, passou a nos amar menos.

“Então você acha que consegue ir conosco?” Ela perguntou.

Balancei a cabeça em positivo.

Mesmo se eu não quisesse, eu teria que ir, obedecer às ordens do meu pai é a regra número um da minha família.

Depois do almoço, ajudei a minha mãe guardar os pratos e fui para o meu quarto. Arrastei a minha caixa de papéis, peguei duas folhas e tentei escrever alguns poemas. Eu escrevi um ou dois, mas acabei jogando todos no lixo. Sem perceber, comecei a pensar no pequeno poema que Noah escreveu, ele pegou os meus poemas da lixeira, se eu jogasse mais ele também os pegaria? Desde quando ele já me notou? Será que ele escreveu o cartaz que aquele garoto colou nas minhas costas? E... Por que ele entrou na minha frente daquele jeito?

Deitei na cama, coloquei as minhas mãos atrás das orelhas e tentei esquecer o que tinha acontecido. Nenhuma música tocou na minha cabeça, pelo contrário, um silêncio cobriu o interior daquele quarto e eu me sentia sozinha. Às vezes, os flashbacks voltavam na minha mente, mas eu os excluía com as histórias que minha avó me contava. Eu queria poder viver uma fantasia, porque no meu mundo imaginário, eu teria uma vida diferente. Mas até mesmo nos contos de fadas, a tristeza e a maldade existem. 

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