A Garota Que Não Tinha Cores: Yellow
A Garota Que Não Tinha Cores: Yellow
Por: Cris Santos
01: Lembranças

A música começa a tocar, mas ninguém pode ouvir. Ninguém além de mim mesma. Essa definitivamente é uma das coisas que eu mais amo fazer. Sempre que eu passo pelo corredor do colégio, penso em uma melodia e atravesso sem ouvir o que dizem sobre mim. Isso funcionou na minha antiga escola no Alabama, talvez também pudesse funcionar aqui.

Não importa em quantos lugares você tenha estado eu aposto que eu vivi em muitas outras cidades do que você. Eu tenho um pai em casa que sempre está focado em seu trabalho e uma mãe meio paranoica. Para eles, o fato de eu ter estudado em 10 escolas, desde o primário, é normal e, além de ser aparentemente divertido, vai fazer com que seus filhos sejam responsáveis e tenham o que chamam de cultura. Mas na prática, as coisas não são tão fáceis assim.

Eu não gostava muito do Alabama, era quente de mais e meu pai sempre vivia resfriado. Ele chupava tantos picolés de uva, que chegamos a fabricar nossos próprios sorvetes em casa. A escola era enorme, eu me perdia todos os dias, as garotas não gostavam de mim, os rapazes me apelidavam e os professores não sabiam o meu nome. Mesmo com tudo isso, eu estava me acostumando com o lugar e não queria ter que me mudar de novo. Passamos três anos lá, minha mãe podia me levar para o cinema, meu pai não trabalhava tanto e melhor, ele não bebia. Tudo estava em seu devido lugar e, pela primeira vez em anos, nós pensamos que havíamos encontrado nosso lar perfeito. Mas então houve aquela noite... Aquela noite mudou as nossas vidas. 

Houve uma noite em que o meu pai voltou para casa tarde, minha mãe estava preparando o jantar e eu estava sentada lendo o meu livro de contos, eu sempre gostei de fadas e esse era o meu livro favorito. Eu disse que era? Sim, eu disse. Ele não existe mais, pois o meu pai o rasgou.

Na noite em que mudou nossas vidas, o papai chegou tarde e foi para a cozinha, tirou uma cadeira, colocou os cotovelos na mesa e bufou. Mamãe e eu continuamos fazendo nossas coisas, meu pai nunca gostou de ser perguntado sobre o seu dia de trabalho, então decidimos fingir que ele não estava lá. Como de costume, ele murmurou uma maldição, levantou-se da mesa e saiu com o telefone celular tocando. Nunca entendi os adultos em relação ao trabalho, se eles odeiam tanto o que fazem, por que eles não tentam fazer o que amam? Meu pai odeia sua profissão, mas ele nunca desistiu da carreira ao querer mostrar aos irmãos que ele pode ser mais do que eles. Das quatro crianças que meu avô paterno tinha, papai era o único filho que alcançou a sustentabilidade financeira. Nas reuniões familiares, ele sempre exibe seus troféus de vendas imobiliárias, diz que está feliz e adora o que ele faz, mas é uma mentira. Uma coisa que eu aprendi com os adultos é que eles mentem muito, contam mentiras para sorrir, ganhar dinheiro e para ganhar o amor de outra pessoa.

Minha mãe e eu comemos o jantar, depois lavamos os pratos sujos e cada um foi ao canto. Tanto ela quanto eu não falamos muito. Nossas conversas foram sempre baseadas em um ‘”hello, como foi seu dia na escola?” E somente. Na verdade, eu sou a única que está em silêncio para eles, os meus pais nunca acreditaram nas coisas que eu falei sobre a escola, e muito menos tiveram tempo para mim, então acabei por me trancar. Na minha casa, é muito mais fácil sofrer sozinho do que dizer o que está acontecendo e ser chamado de dramático.

Cerca de 20 minutos depois da partida, meu pai voltou com o telefone. Gotas de suor caíram de sua testa, sua gravata estava solta, e os punhos apertados de raiva.

“Você não pode fazer isso comigo!” 

Ele exclamou. “Você sabe o quão difícil foi para esta empresa trabalhar, como minha família e eu mudamos de cidades apenas para que eu pudesse fazer meu trabalho!?!”

Ele abriu a porta da geladeira, pegou uma lata de cerveja e se inclinou contra o armário. Foram duas, três, quatro... Cinco latas. O argumento se arrastou, ficou mais irritado e eu fiquei quieta.

“Ouça aqui, seu filho da puta, eu tenho meus direitos!” Papai exclamou uma maldição, pegou a lata que ele segurou na mão e atirou contra a parede.

Naquele momento, ele desligou o telefone e me cercou com seus olhos furiosos.

“Limpe essa bagunça e suba para dormir.” Ele virou as costas, esperando que eu limpasse sua sujeira. Eu não me levantei, tinha sido ele o causador da bagunça, não havia o porquê de me obrigar a fazer aquilo.

Virei outra página do meu livro, reparei a postura e continuei a ler.

“Você não é surda, solte este livro e limpe esta sujeira.” Ele repetiu, aproximando-se de mim. Eu queria ter respondido, mas minhas pernas pararam. Meu corpo estava paralisado e eu não conseguia reagir, era sempre assim, eu não adotava a abordagem das pessoas contra mim.  Ouvimos o som dos sapatos de minha mãe descer as escadas. Ela parou na entrada da cozinha, viu a condição do chão e olhou para o meu pai, que estava sem coordenação nas pernas.

“Acho que sua filha é surda.” Meu pai disse, debochando de mim.

“Por que está dizendo isso, querido?” Mamãe perguntou, analisando o estado dele. Ela sabia o que acontecia quando seu marido ingeria bebida alcoólica. “O que houve? Escutei você discutir no telefone.”

“Como posso exigir a obediência de outros se mesmo minha filha não obedecer minhas ordens?” Ele deu uma risada irônica.

“Querido, por favor, não vamos discutir na frente dela.” Mamãe se aproximou dele.

“Você ainda não notou? Nossa filha é invisível, ela permanece lá, presa no livro maldito, e não se importa com o que nos acontece.” Ele engrossou sua voz. “Você acha que eu não sei? Que você a estragou?”

Mamãe ficou calada.

“O que ela lê tanto?” Ele viu o título do livro. “O mundo encantado de Lúcios? Sério, você realmente acredita neste maldito conto de fadas?”

“Querido...” Mamãe insistia.

“Você vai me obedecer...” Ele rosnou. “Pela última vez, levanta esse traseiro e limpe a porcaria do chão!”

Não houve reação.

Em um ataque de fúria, meu pai tirou o livro das minhas mãos e começou a destruí-lo. Levantei-me da cadeira, puxei-o e tentei detê-lo, mas já havia terminado com as páginas.

Uma música começou a tocar na minha cabeça. 

“É assim que eu demonstro o meu amor.

Eu criei isso na minha mente porque eu culpo o meu Distúrbio de Déficit de Atenção, querida”. (Awolnation– Sail, 2014). 

Sentei no chão, peguei as folhas rasgadas e assisti tudo ao meu redor em câmera lenta. Minha mãe chorou, ele marcou o rosto dela com uma bofetada e nos chamou de inútil. A música continuou tocando, ela tocou a noite inteira, e somente eu podia ouvi-la. Era uma coisa só minha.

No dia seguinte, nenhum de nós tocou no assunto. O silêncio envolve nossa casa, nenhum de nós sabe como se aproximar de situações passadas. Os nossos vizinhos começaram a notar a mancha azulada sob os olhos de minha mãe, à medida que as semanas passavam, surgiram mais imperfeições. As desculpas foi sempre às mesmas, ela deslizou no chão molhado, bateu em uma cadeira ou na parede. Como eu disse antes, os adultos mentem.

Dois meses depois, o meu pai recebeu uma proposta para um novo emprego em Washington e, sem hesitação, ele aceitou. Agora, aqui estou. Atravessando um extenso corredor e com pessoas olhando para mim como se estivessem dispostas a me devorarem.·.

Cris Santos

Escute Sail - Awonation. Você já assistiu a sua vida em câmera lenta?

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