Enfermeira

Layla estava parada ao lado de Ibn Russud, o médico, e da filha dele, Rebeca, e os observava atentamente.

O médico usava o quipá dos judeus na cabeça cobrindo parte dos cabelos grisalhos e vestia uma túnica longa e escura. A filha, uma jovem bonita de cabelos morenos e lisos presos em um penteado simples, também usava um vestido escuro e sem adornos.

Ambos haviam ajoelhado ao lado do cavaleiro que permanecia desacordado com o rosto pálido e a respiração entrecortada, e após limparem o ferimento dele com uma poção, suturavam as bordas da ferida. 

Depois de um tempo Ibn Russud levantou-se, enquanto a filha terminava o curativo com mãos hábeis.

– Muitas vezes, os danos vão muito além do que podemos ver com os olhos – Ibn Russud explicou para Layla, retirando um estranho aparelho de dentro de uma maleta deixada na mesa ao lado, um cone comprido e de bocal largo.

A seguir, debruçando-se sobre o ferido, encostou o bocal na lateral do tronco dele e a outra ponta no ouvido, e escutou por um momento. Depois, fez o mesmo do outro lado, e então aprumou o corpo com olhos preocupados.

– Houve derramamento de sangue na cavidade entre o pulmão e as costelas – disse, entregando o instrumento à filha. – Preste atenção. Podemos ouvir o ar entrando no pulmão do lado ferido, mas o som é mais baixo e grave como se algo o impedisse.

Rebeca o imitou; após um tempo com o ouvido colado ao cone, balançou a cabeça, concordando.

Layla adiantou-se.

– Posso ouvir também? – indagou, curiosa.

O médico e a filha entreolharam-se. A Medicina não era uma ocupação adequada para uma dama de alta estirpe, e Layla tinha a aparência delicada de quem passara a vida protegida na opulência daquele palacete. Porém, ela ao menos não desmaiara enquanto cuidavam do paciente.

Rebeca passou-lhe o instrumento com um sorriso.

– Sim, é claro! – disse, apontando para os panos e instrumentos cobertos de sangue utilizados no procedimento, deixados sobre um lençol grosso dobrado no chão. – Você não desmaiou enquanto suturávamos a ferida, acho que pode aproximar-se.

Layla pegou o cone e fez o mesmo que eles, encostando o bocal no tronco do cavaleiro deitado diante dela e debruçando-se para colocar o ouvido na outra ponta. Já lera tudo sobre a medicina nos livros que pudera encontrar nos mercados livreiros da cidade, mas nunca tivera a oportunidade de assistir qualquer atendimento.

Ela escutou com atenção, alegre com aquele simples ato como se finalmente houvesse encontrado um sentido para sua existência. Entretanto, seus olhos detiveram-se no rosto do guerreiro e sua alegria desapareceu de repente; os lábios dele estavam brancos, assim como a pele, e olheiras escuras marcavam sua face. Escutava estertores na respiração dele e estes lhe pareciam como uma sentença de morte.

Deveria desejar a morte dele e a devida vingança pelas mortes dos pais. Contudo, observando o cavaleiro inconsciente e que lutava para respirar por algum motivo não conseguia odiá-lo.

Aprumando o corpo, ela devolveu o cone à Rebeca.

– Ele irá sobreviver? – indagou ao médico.

Ibn Russud meneou a cabeça.

Maktub![1] Apenas Deus pode saber sobre o destino! – exclamou, erguendo as mãos para o alto. – No entanto, Ele conta com nossa ajuda para agir no mundo. Precisará pedir aos criados para mantê-lo limpo e refazerem o curativo todos os dias. Deixarei um emplastro cicatrizante e uma poção que ele precisará tomar três vezes ao dia – continuou em tom profissional.

– Eu mesma cuidarei do curativo e o farei tomar a poção! – Layla decidiu-se. Depois respirou fundo para tomar coragem e fazer um pedido: – Mestre, gostaria de aprender com o senhor. Poderia acompanhá-lo em suas visitas, junto com Rebeca, e auxiliá-los no que puder.

Aquilo pegou Ibn Russud de surpresa.

– Por que deseja isso? – Estreitou os olhos, analisando-a.

– Li livros sobre a arte médica… – Layla respondeu hesitante, pois nem mesmo ela própria sabia o motivo de se interessar por tal assunto. – Quero aprender e ser útil!

– Mas a nossa realidade é muito diferente da dos livros… – o médico retrucou. – E você é uma dama. Logo seu irmão lhe arranjará um noivo, e seu futuro marido certamente não permitiria que acompanhasse um judeu pela cidade – lembrou-a.

Rebeca interveio:

– Gostaria de ter uma companhia feminina para me auxiliar – disse ao pai. – Muitas famílias não permitem que o senhor examine as mulheres da casa e às vezes fico sobrecarregada com o trabalho.

Ibn Russud refletiu mais um pouco. A filha falava a verdade. Tanto ela como Layla estavam na idade de se casar e de ter filhos, mas ambas pareciam desinteressadas de tal assunto. Talvez fossem boa companhia uma para a outra.

– Se seu irmão, que agora é o chefe da família, permitir…por fim disse à Layla.

E se mostrar-me que tem o dom para tal, cuidando dele... apontou Aaron.

– Meu irmão jamais negaria um desejo meu! – ela exclamou, animada com a oportunidade.

Então, seus olhos pousaram no guerreiro ferido que respirava com dificuldade e parecia mais um cadáver do que um homem vivo, e por um momento Layla duvidou de que ele sobrevivesse mesmo sob seus cuidados. Entretanto, não se deixou abater.

– Provarei que posso ser uma boa enfermeira. Não o deixarei morrer, mesmo que tenha que passar dias e noites ao lado dele! – afirmou com ar decidido.

❋❋❋

Ao fundo de um dos jardins do enorme palacete ficava a parte destinada aos banhos, dividida em uma ala para as mulheres e outra aos homens. Grandes banheiras decoradas com ladrilhos coloridos recebiam água corrente e podiam ser aquecidas durante o inverno.

Era lá que Yasi se encontrava, deitado em uma das banheiras de olhos fechados, enquanto Hiram, o pajem, derramava água sobre seus cabelos, negros e cortados à altura do ombro, e o ajudava a ensaboá-lo.

De repente, outro rapaz chegou correndo. Kalil, um dos escudeiros que o acompanhara na batalha.

– Ibn Russud e sua filha terminaram o atendimento ao prisioneiro – avisou-o. – Ele ainda está vivo.

Yasi apenas resmungou uma resposta, os olhos quase se fechando de cansaço. Há dois dias não dormia, ansioso por sua primeira batalha, enquanto preparava-se para juntar-se ao exército que defendia Córdoba. Agora, passada a aventura, o sono atrasado parecia querer abatê-lo com mais força do que um golpe do inimigo.

Mesmo assim não poderia deixar o médico sair sem cumprimentá-lo. Seria uma falta de cortesia imperdoável.

Bocejando, ele voltou os olhos para o escudeiro.

– Avise que estarei com Ibn Russud em um instante – pediu.

A seguir, terminou rapidamente o banho e começou a se vestir com o auxílio de Hiram. Colocou as roupas de baixo, o calção e a túnica curta de algodão e, por cima delas, calças e outra túnica, desta vez de seda verde escura; prendeu o cinto transpassado na cintura, e por último calçou os sapatos de couro macio e confortáveis.

– E o turbante, sidi? – O pajem estendeu-lhe a peça, também de seda, ornamentada por uma joia na frente.

Shukran![2] – Yasi agradeceu, meneando a cabeça em negativa. – Está muito quente e estou em minha casa… Não preciso disto.

– Mas a filha de Ibn Russud o acompanha e… – o garoto examinou-o, analisando se as roupas eram apropriadas.

– E… – Yasi voltou-se para ele com um olhar interrogativo.

– E dizem que ela é a jovem mais bonita de Córdoba...

– Layla é a jovem mais bonita da cidade! – Yasi protestou com um franzir de testa.

– Depois dela, é claro! – Hiram replicou, elevando os olhos como se aquilo fosse óbvio.

Com um suspiro, Yasi enfim pegou o turbante e enfiou-o na cabeça.

– Então, está bem! – disse com um sorriso de canto. – Vamos conhecer essa beldade de que todos falam e então resolveremos quem é a mais bonita.

– Mas, cuidado! – O garoto ergueu-se na ponta dos pés para falar ao ouvido dele, que era bem mais alto: – Dizem que ela é uma víbora. Tão má que o pai têm vergonha de oferecê-la em casamento para quem quer que seja.

Yasi ergueu uma sobrancelha bem-humorada, o sono quase esquecido.

– Tem certeza disto?

O garoto assentiu com olhos sérios.

– Que outro motivo haveria para ela não se casar?

Dando de ombros, ele soltou uma risada.

– Não sei… Piolhos, talvez? Ou talvez ela apenas não queira e o pai concorde – respondeu, e a seguir saiu ao encontro deles.

Deixando a ala de banho, o jovem seguiu pelo corredor ladeado pelo jardim e, de súbito, escutou um canto suave vindo deste.

Era uma cantiga de amor perdido, bela e um pouco triste.  Não reconhecia a voz, mas aquela era uma das canções de que mais gostava. Intrigado, foi na direção dela, interrompendo seus passos ao ver de onde vinha.

Uma jovem de cabelos escuros dançava à sombra de uma árvore, os braços estendidos para o alto, as mãos e o quadril movendo-se no ritmo lento da canção.

Yasi percebeu que ela tinha os olhos semicerrados e voltados para o chão, e não notara a aproximação dele. Sem pensar, pulou para o lado e escondeu-se atrás do tronco de outra árvore. Depois, respirando fundo, ele tirou a cabeça de seu esconderijo para examinar a garota de novo.

Ela continuava a dançar. Por um instante, ele pode contemplar o rosto de nariz discretamente arrebitado, malares proeminentes e boca que lembrava uma rosa. O corpo sob o vestido escuro delineava-se na imaginação dele em curvas suaves, perfeitas para serem descobertas por centenas de beijos. Uma huri[3] do Paraíso caída exatamente ali em seu jardim!, ele deixou o ar escapar em um assobio involuntário.

De súbito, a jovem parou, colocou as mãos na cintura e olhou diretamente para os olhos dele.

– O que está fazendo aí? Me espionando? – perguntou em tom irritado.

Com um sobressalto, Yasi deu um passo para o lado e saiu de seu esconderijo.

– Não… eu… – balbuciou sem jeito. – Estava passando por ali – apontou o corredor – e escutei a canção. E você estava dançando e… – suspendeu a frase ao meio, mordendo os lábios com um ar encabulado.

Dançarinas lhe lembravam a casa noturna a qual costumava frequentar, e pensar nelas lhe trazia imagens bem mais ardentes. Sua mente queimou, o sangue ferveu, mas ele respirou fundo e, após um esforço digno de admiração, conseguiu se controlar.

– Com quem tenho a honra de conversar? – indagou em tom cortês e com uma leve reverência.

Quase morta de vergonha, Rebeca estreitou os olhos analisando o jovem de olhos verdes, bonito e bem vestido, e enfim conseguiu se recompor.

– Rebeca, filha de Ibn Russud – respondeu, devolvendo-lhe a reverência educada. – Devo voltar à sala principal. Meu pai está conversando com a senhorita Layla enquanto esperamos pelo chefe da casa, que parece achar mais interessante tomar um banho com seus pajens do que receber-nos.

A seguir, virou e começou a afastar-se, mas Yasi correu e colocou-se no caminho dela.

– Perdoe-me, senhorita… Não quis ser indelicado! – exclamou. – Cheguei há pouco da batalha e o cheiro do meu corpo se assemelhava ao de meu corcel de guerra.

Rebeca empalideceu, desejando que um gênio surgisse no jardim e a raptasse para dentro de sua lâmpada fazendo-a desaparecer de repente.

– Al-Bayyasi? – indagou, esforçando-se para manter a expressão serena. Agora ele deveria considerá-la não apenas louca por dançar e cantar sozinha, mas também desbocada.       

– Yasi, para os amigos. – Ele sorriu o seu melhor sorriso.

– Eu devo pedir perdão!  Falei sem pensar... – ela comentou, mantendo os olhos baixos. Ouvira boatos sobre ele; Al-Bayyasi, diziam, era justo com os criados e sábio em conselhos aos amigos, e por isso quando escutava o nome dele logo imaginava um homem idoso. – Achei que fosse mais velho e que tivesse uma barba longa… e branca… – continuou, e só então ergueu os olhos.

– Barba branca… e longa? – ele repetiu, franzindo a testa. Depois, recompondo-se, disse: – Após a morte de meu pai tenho me sobrecarregado cuidando dos negócios. Muitas vezes, sinto-me mesmo muito mais velho – admitiu com um suspiro, deu de ombros e sorriu.

Rebeca sorriu de volta. 

Durante um momento, ambos se estudaram em um silêncio embaraçoso.

– Não vamos deixar seu pai aguardando. – Por fim, Yasi ofereceu-lhe o braço para conduzi-la à sala.  – Conheço minha irmã!  Layla deve estar o importunando com centenas de perguntas.



[1] Maktub é uma palavra em árabe que significa "destino”, algo que está predestinado a acontecer.

[2] Obrigado

[3] Virgem de grande beleza do Paraíso descrito no Corão.

O Corão é considerado pelos muçulmanos a palavra literal de Allah – Deus, em árabe -, revelada ao longo de 22 anos a Maomé. Para os islâmicos, ele é o profeta final, enviado para pregar a mesma mensagem de Jesus e de Moisés, que teria sido corrompida ao longo dos anos.

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