Capítulo 1

Golfo de Aden, Costa da Somália - 11º 39' 45'' N 48º 14" 52' E

Um imenso navio cargueiro carregado de contêineres navega lentamente, cortando as águas do oceano sobre o manto negro da noite, a alguns quilômetros da costa da Somália, escoltados por meia dúzia de embarcações menores que não chegam a um décimo de fração do seu tamanho. Essas embarcações, também conhecidas como barcos de assalto, entretanto, possuem poder de fogo suficiente para afundar qualquer navio, inclusive esse que acompanham.

No convés do poderoso cargueiro, duas dezenas de piratas somalis armados com AK-47, lançadores de foguetes, pistolas semiautomáticas e machetes, correm de um lado para o outro, arrombando tantos contêineres quanto possível, à procura de cargas que tenham algum valor no mercado negro.

Bem distante do convés de carga, na proa do navio, um grupo mais contido de piratas, mas igualmente bem armados, interroga o que restou da tripulação no passadiço da embarcação.

Dois dos quatro oficiais jazem executados no piso do aposento. Os outros dois estão ajoelhados, com as mãos amarradas às costas. Seus uniformes, outrora brancos, agora cobertos de sangue, revelam os maus tratos que tem sofrido nas mãos dos terroristas na última hora. Por conta da barreira do idioma, os dois oficiais restantes, de origem malaia, não conseguem responder aos questionamentos de seus sequestradores que, cada vez mais irritados, começam a discutir entre si, em seu dialeto africano local.

- Eu digo para executarmos toda a tripulação, pegarmos o que tiver de mais valor e abandonar o navio. Esses caras não vão nos dizer nada!

- Não seja idiota! Se matarmos todo mundo, quando nos alcançarem, vão subir atirando para tudo que é lado! Acho que se os levarmos com vida, podemos negociar com o governo e sair dessa com muito mais dinheiro!

Alheio a toda sonora discussão, um sétimo pirata viaja em seus pensamentos. De pele tão negra como a noite ele encara um dos reféns, com seus grandes e redondo par de olhos, de modo petrificante. O tripulante, de tanto medo, não consegue desviar o olhar.

Em uma ação repentina, demonstrando toda sua insatisfação, o pirata arremessa o seu machete em direção ao grupo, que discute calorosamente. A lâmina passa no meio dos quatro, rente às suas cabeças e acaba cravando-se em um mural de mapas. O silêncio é imediato e a atenção de seus comparsas agora é toda de Dalmas, O Leão da Noite.

- Vocês me envergonham enquanto discutem por mixaria! – Dalmas lentamente se ergue da poltrona em que estava sentado. Os dois últimos reféns, já em pânico, se encolhem diante do porte físico do líder dos piratas. Mas não apenas seus músculos, sua altura e suas dezenas de cicatrizes pelo corpo aterrorizam os pobres asiáticos. O Leão da Noite emana uma aura de medo e crueldade que faria qualquer um respeitá-lo, seja por admiração ou por terror. – Vamos seguir com o planejado. Levaremos o navio até Somalilândia. E, - com quase nenhum esforço, Dalmas arranca o machete da antepara -, assim que chegarmos lá, vamos vender toda a carga que conseguirmos. Nossos amigos aqui vão garantir que cheguemos até nossas casas em segurança, não vão?

O gigante se ajoelha, abraçando os dois reféns, abrindo um sorriso tão claro quanto o branco de seus olhos. – Não vão? – Em seguida uma estrondosa gargalhada ecoa por todo o passadiço.

Os piratas que antes discutiam agora concordam, mesmo que contrariados. Ninguém seria louco o suficiente de desafiar o comando de Dalmas.

O grupo de saqueadores volta a conversar, agora de uma forma mais civilizada. Enquanto refaz seu caminho de volta para sua confortável poltrona, o Leão da Noite subitamente para. Ele vira e se volta para seus irmãos de crime. Enquanto que com sua mão esquerda erguida pede para que todos façam silêncio, sua mão direita desliza lentamente para o cabo de sua pistola, pendurada em seu coldre, na altura das costelas.

Aguçando ao máximo possível seu sentido da audição, Dalmas tenta descobrir de onde vem esse sentimento de que algo está para acontecer. E se em sua vida de pirataria o gigante negro aprendeu algo, foi de justamente confiar em sua intuição. Habilidade essa que, graças aos mais de cem bem sucedidos ataques à embarcações, acabara se aprimorando tanto que há quem diga sua habilidade de pressentir os acontecimentos é sobrenatural, concedida por uma xamã tribal. Dificilmente o líder somali era pego de surpresa.

- Vocês estão ouvindo isso? Enquanto caminha em direção à saída do passadiço, Dalmas praticamente sussurra ao grupo de capangas.

Após alguns segundos de troca de olhares e expressões perdidas, Utu ,um dos sequestradores, responde desconfiado.

- Dalmas, não estamos ouvindo nada.

- Exatamente! – Responde o Leão da Noite, caminhando em direção a bombordo do navio, deixando o aposento. Ao se inclinar sobre o guarda corpo lateral e constatar suas suspeitas, o somali dessa vez cruza correndo a passarela do navio, agora a estibordo, repetindo os mesmos movimentos. – Onde estão os nossos barcos de escolta?

Os capangas saem correndo do interior do passadiço e repetem os passos de seu líder. Após correrem de um lado para o outro do navio, com feições de terror, todos convergem seus olhares para seu chefe que, mostrando surpresa pela primeira vez na missão, balbucia uma palavra, quase que como a amaldiçoando – Libra.

Rapidamente os seis piratas, seguidos de seu líder, puxam suas AK-47 das costas e passam a varrer o mar à sua volta em busca de algum sinal que denuncie o inimigo, já em posição de combate.

- Dê o sinal. Avisem os outros! – As palavras deixam a boca do furioso Leão da Noite em um misto de grito, ordem e saliva.

Hassan, o pirata mais novo do grupo e mais próximo da entrada para o interior do passadiço apenas acena com a cabeça e se vira para entrar e dar o sinal. Antes que completasse o terceiro passo e sua mão alcançasse a maçaneta da porta, um zunido é ouvido.

A cabeça do sequestrador explode em milhares de pedaços, liberando uma névoa rosada que deixa dois de seus companheiros cobertos de carne, miolos e sangue.

Todos, inclusive Dalmas, se entreolham e tentam descobrir de onde partiu o projétil hipersônico. Um dos piratas se descontrola e corre em direção à borda do navio e passa a disparar seu rifle de assalto a esmo, em direção às águas. Os quatro piratas restantes se posicionam ao longo do pequeno deck, procurado lugares para se protegerem. Todos apontam suas armas para além do navio, em direção à escuridão e ao mar.

Dalmas, já prevendo o pior, corre até a porta do passadiço. Mais dois zunidos são ouvidos. Dessa vez é a cabeça dos piratas que se posicionaram a estibordo do navio que explodem. O líder dos sequestradores tenta abrir a porta, mas o corpo de Hassan impede que ela se movimente por mais do que dois palmos. O desespero impediu que o Leão da Noite usasse sua força para desobstruir seu caminho. Mas assim que a adrenalina assume o controle de suas ações, o corpo do jovem criminoso deixa de ser um obstáculo para o mercenário, que com um melhor posicionamento de seus pés, finalmente consegue abrir a porta, arrastando o que restara de seu ex-colega para o lado.

O Leão da Noite atravessa o interior do passadiço em poucos passos e tira o interfone do gancho a fim de avisar o resto de seus homens sobre a presença da Libra, mas antes que conseguisse falar qualquer coisa, seus olhos se focam nas imagens transmitidas pelas câmeras de segurança através de monitores instalados na ponte. Em todas as telas é possível se ver homens trajando roupas táticas pretas e armas automáticas, equipadas com silenciadores e miras laser se deslocando sincronizadamente por todos os cantos da embarcação e abatendo, um por um, todos os piratas que encontram.

Quando finalmente consegue vislumbrar a situação em que se encontra, o semblante de Dalmas muda repentinamente. A expressão de pavor e medo agora dá lugar a uma feição de conformidade. Sabia que tinha perdido essa. Não lhe restava fazer nada, a não ser aceitar a derrota.

O pirata somali vem há anos evitando um confronto direto com o exército da Libra, mas sabia que um dia haveria de medir forças contra a organização e, que nesse dia, não teria chances. Como de fato não teve. O fora da lei ainda olha para fora do passadiço a tempo de ver a cabeça de Utu explodir com um último disparo e sujar toda a vidraça da sala.

Dalmas sai lentamente pela porta com as mãos para cima e mesmo sem avistar ninguém, se ajoelha sobre o piso ensanguentado. Ele percorre rapidamente todo o convés do navio com os olhos, até onde o alcance de sua visão permite. "- Estranho. Parece que o homem de Libra mais próximo está a dezenas de metros de distância."

Virando sua cabeça para sua direita e depois à esquerda, Dalmas não percebe nenhuma embarcação cercando o agora recuperado cargueiro.

"- Esses filhos da puta são bons mesmos."

Desistindo de tentar identificar o autor dos disparos, Leão da Noite joga sua cabeça para trás com um sorriso estampado na face. Ao abrir os olhos e ainda olhando para cima, finalmente consegue achar o atirador.

Descendo vagarosamente dos céus, até parar na altura do patamar onde se encontra Dalmas, uma figura que, aos olhos do pirata, parece ter saído de dentro de um vídeo game ou história em quadrinhos, desativa seu modo de camuflagem, identificando-se ao seu alvo.

O responsável pela morte dos seis piratas traja uma armadura tática robótica negra que recobre todo o seu corpo. O atirador parece medir mais de dois metros e pesar, pelo menos, duzentos quilos. De suas costas saem um par de asas lisas e triangulares, fabricadas para darem uma maior capacidade de manobrabilidade ao traje durante o voo.

- Surpresa, filho da mãe. - Dos pés, joelhos, quadril e ombros da armadura se pode notar pequenas línguas de fogo azuladas que surgem e desaparecem de seus propulsores, de acordo com a necessidade do atirador corrigir sua posição e permanecer imóvel no ar. Em seus braços, o agente porta um rifle de alta precisão e longo alcance, ainda com fumaça saindo pelo cano. 

Todos os traços da armadura parecem terem sido aerodinamicamente projetos, inclusive seu capacete triangular que cobre toda a face do combatente, com arestas e pontas para cortar o ar. Nada que contribua para suavizar o seu visual agressivo e mecanizado.

O primeiro contato de Dalmas com a tecnologia da Libra não durou mais do que alguns segundos, mas na cabeça do africano o tempo passou bem mais devagar. Perplexo com o avanço que os homens percorreram na área do desenvolvimento militar, o Leão da Noite não consegue esconder a admiração por essa armadura, ao mesmo tempo em que vê uma nova oportunidade de aumentar o seu legado florescendo à sua frente.

- Dalmas, você agora se encontra sob a custódia da Libra. Considere-se preso. – A voz, um pouco abafada e metálica é projetada pelo capacete, através de um alto falante localizado bem na altura da boca do atirador na região central do capacete, entre duas entradas laterais de ar.

O mercenário se espanta ao perceber a quão humana ela é. Esperava que fosse mais sintética ou artificial.

"- Afinal, isso é um homem ou uma máquina?"

Dezenas de passos sob os degraus metálicos se aproximando denunciam a chegada dos demais soldados. Não trazem consigo nenhum prisioneiro.

Subindo pelas escadarias de ambos os lados do casario, a equipe tática que tomou o navio agora tem o famoso fora da lei sob a mira de todas as suas armas. A figura blindada que até então permanecia estática no ar, ao perceber que a situação já se encontrava sob controle, aciona os seus propulsores e sobe dezenas de metros em poucos segundos se mesclando à escuridão do céu. A única coisa que denuncia a sua presença é o brilho ofuscante de seus jatos.

Momentos antes de desaparecer no breu noturno, o combatente de aço é extraído do campo de batalha por uma aeronave militar que, rigorosamente pontual, cruzava aquele quadrante previamente definido, deixando para trás toda a equipe anfíbia da Libra fazendo a prisão e escolta de um dos maiores piratas e criminosos do mundo.

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