Capítulo 4|Lionel

Tinha 16 anos, quando, pela primeira vez, a vi soprar a vela acesa em seu aniversário. Coincidentemente, o décimo sexto dia do penúltimo mês daquele ano, novembro. Ao som da cantiga que seus convidados entoavam fervorosamente, Judite tinha seu enorme bolo erguido à altura do rosto, usando-o como protecção contra meu olhar deslumbrado. Nossos olhos se cruzaram rapidamente. Estava tímida, embora não tenha sabido se era por minha causa ou pela atenção que sofria. 

Foi a primeira vez que olhei para ela com olhos diferentes, longe de nossos amigos em comum. Diferente de só mais uma amiga. A baixinha tinha o pulso à mil. Podia ver pela pulsação na base de seu pescoço brilhante por conta dos pequeninos discos de purpurina.

Um pouco igual ao que acontece agora. Uma pancada de déjà vu me atinge quando Judite surge na varanda com um bolo gelado em mãos. Cobre metade do seu rosto. Todos olhares deliciam-se com a visão do doce, mas o meu é detido pela dança de seus lábios num sorriso simples, mas repleto. Nossos olhares se cruzam rapidamente. Ela está bonita na roupa preta que a segura num abraço apertado de ostentação. Está bonita e atraente. 

Quando uma voz feminina soa, paro de balançar o copo raso de uísque e dou um gole para me recuperar da distração. 

— Me sinto na casa da minha avó. — Lola diz sem desgrudar os olhos do bolo. Remexe-se com animação. 

— Porquê? — Judy pergunta depois de deixar o doce no centro da mesa.

— Quando penso que ja comi o suficiente, ela sempre trás mais alguma coisa. Você é exactamente o tipo de tía que eu quero para meus filhos.

— Melhor gostar de ter a casa cheia de crianças nos finais de semana. — sua amiga Vitória aconselha — Já somos duas que te passamos essa responsabilidade. 

— Seus filhos com quem? Não comigo. — coloca seu braço sobre os ombros de Lola — Isso é uma ofensa para os bebêbados. Bêbados não gostam dessas coisas. Já te disse. — aponta para sua namorada numa falsa repreensão. A mesma suga um gole da Hunters Gold.

— Meus filhos não serão bêbados! — rebate.

— A escolha será deles, mas as chances de serem são maiores. 

— É isso que você quer para eles?

— Há algum pai que não queira a felicidade dos seus filhos? — ri consigo mesmo e bebe.

— Meus filhos não serão bêbados! — repete e todos nós acompanhamos sua conversa em silêncio. 

O álcool já começa a fazer efeito nas pessoas que o consomem. Vozes altas, corpos soltos e conversas cada vez mais incoerentes, resultam dos efeitos que surgem gradualmente. Eu ainda estou nos primeiros goles do meu Jack Daniel's. Embora não esteja muito a fim de exagerar no álcool, decidi beber para descontrair e acompanhar o ambiente, pois faz um bom tempo que não saio para convivências do gênero. 

— Nossas especialidades. — apresenta seus feitos. Há mais uma tigela de um creme com frutas, trazida por sua irmã mais nova, tão tímida quanto a Judite dos 16 anos — Preferem que eu sirva ou...?

— Melhor você servir.

E é o que ela faz, sob meu olhar atento. Quando dou por mim, estou com um sorriso de canto nos lábios. A mesma pulseira felpuda que cobria seu pulso esquerdo no dia de seu aniversário, quando cortou seu bolo, repete os mesmos movimentos leves agora. É incrível o quanto me vejo preso em cada detalhe dela. Meu agrado não saceia. Como se o momento se repetisse, mas numa ocasião diferente e sem os olhos pesados de seu pai em mim. É bom revê-la. 

— Qual dos dois vai querer, Lionelo? 

— Confio na sua escolha. — beberico do uísque em meu copo e suspiro. 

— Esse doce aqui é de quê?

— Calda de frutas vermelhas, granulados de chocolate, chantilly e...ai!...— derrubada um pedacinho de bolo na mesa —...e bolachas, tudo em camadas. É praticamente um colchão da noiva, mas eu acrescentei a calda. — explica, chupa o nó de seu indicador e se aproxima para me entregar a taça de creme.

— Obrigado. — agradeço em tom baixo e particular. 

— De nada. Luther, qual dos dois vai querer? 

O jovem ao meu lado se arrasta pela cadeira até estar com a coluna recta. É o mais tímido entre nós. Não bebe, então, para além de rir uma vez e outra, mantém conversas privadas com Yara, agora com o olhar cauteloso sobre sua irmã. 

— Nenhum dos dois, obrigado. Estou cheio. — afaga a barriga.

— Está bem. 

Me viro para os dois. Suas mãos dadas respondem a pergunta que ia fazer. Como o doce, então Yara me percebe. Rio quando ela apruma seus lábios para não reagir tão abertamente. 

— É a primeira vez que vem para aqui? 

— Sim, é. 

— Só para confirmar o óbvio: vocês são namorados?

— Não se coloca esse tipo de pergunta assim. — Yara me adverte com os traços em vergonha pura.

— Como é que se coloca? — coloco mais duas colherinhas do creme para dentro.

— Depende, na verdade. Se a pessoa perceber o óbvio, como é o seu caso, não precisa perguntar. 

— Por quê não? 

— Não precisa. Poupa o constrangimento. 

— Por quê seria constrangedor? Vocês são maiores de idade. — seu silêncio e o olhar em seus dedos cruzados me faz chutar para mim mesmo que deva ser a primeira vez nesta situação, então decido deixar este ponto para lá e comer mais um pouco do doce — Meus parabéns.

— Obrigado. — Luther responde.

— Há quanto tempo que estão juntos? — deposito a taça vazia na mesinha e recupero o copo de Uísque.

— Uns meses. — simplesmente responde.

— Hm. Muito bem. 

— Isso é o quê? — Júlio recupera minha atenção. Segura uma taça com o mesmo doce que acabo de comer, e fingiu desdém quando a recebeu.

— Prova e deixa de se fazer. Está bom. — Lola enche uma colherinha e enfia na boca de seu namorado. 

— Quando é que começou a fazer doces? — pergunto com curiosidade. 

— Há um booom tempo. Não saberia ser específica. 

— Este está um espetáculo. 

— Obrigada. — sorri. 

Seu lábio superior é maior que o inferior, um desenho que nunca vi antes. Meio carnudos e brilhantes. Como os de Pocahontas, como uma vez me disse. Escondem o mesmo sorriso de quando nova. Os incisivos laterais tortos...

A boca rosa dá uma intensa visibilidade para a pinta, mesmo quando está um pouco mais para a cor da noite. Não paro de estudar seus novos-velhos detalhes. 

Depois de certificar que todos têm taças em mãos, se serve e vai se sentar em seu lugar. 

— Como é que vocês se conheceram? Quais são as vossas histórias? Já falamos muito sobre muitas coisas, menos sobre isso. 

— As histórias são muitas, mas vamos começar do começo. — se ajeita na cadeira — As devidas apresentações.— come um pedaço do bolo e cobre a boca antes de prosseguir: — Preciso levantar?

— Não é necessário.  

— Ahn...okeeey...— varre seu olhar por nós para saber por onde começar. Recai sobre sua irmã mais nova, Tatiana. — Vamos começar pelos mais novos. Para quem não sabe ou não lembra, esta é Tatiana, minha irmã mais nova. — coloca a mão no ombro dela e acaricia, em seguida estendendo a mão na direção de Yara — Depois a minha irmã do meio, mas a única pessoa que espero que não conheça é a Lola.

— Yara. — ergue a mão para completar a apresentação. 

— Sim. Yara. — bebo o restante do uísque, ainda atento em suas palavras — Depois temos ali um amigo de Yara, Luther. Já agora, seja bem-vindo. Não tive a chance de dizer isso antes. Não pense que não sou educada. 

— Namorado. — intervém novamente, mas não com o mesmo tom firme de antes. Todo o constrangimento parece se esvoaçar.

— Namorado. Gostei. — sorri e olha para sua direita — Am... Esta é Vitória, uma amiga que conheci numa das viagens que fiz para Nampula, há mais ou menos 3 anos, nem? — pede sua confirmação. 

— Quase isso.

— Lola, que conheci hoje e já adorei. 

— Igualmente. — ergue a garrafa de Hunters Gold num brinde solitário. 

— E tem estes dois. Jesus, estes dois vêm de longe. — guardando a taça entre seus joelhos, se prepara para gesticular, pois a história é meio longa — Bem, Júlio e Lionelo são meus amigos desde quando eu fazia décima classe, e eles, décima primeira. Viramos amigos através de um amigo em comum, desde aí eles os três acabaram virarando meus "guardiões". — faz aspas. 

— É Lionel ou Lionelo? — sua amiga pergunta.

— Eu chamo de Lionelo. É Lionel, alguns chamam de Lio, outros de Nelo. Eu preferi juntar. Deu para perceber? 

— Deu. 

— Ele me parece mais velho. 

— E sou, mas não grande diferença. Sou dois anos mais velho que ela e um que Júlio. — minha distração me faz trazer o copo novamente a boca para um gole, mas somente uma pedrinha de gelo cai na minha língua.

— Então como é que vocês estavam na mesma classe? — interroga Vitória com um tom ligeiramente confuso. Arrasta seu indicador de mim para Júlio.

— Ele reprovou. — Júlio aponta seu polegar para mim.

— Resposta muito automática. — eles riem, até que o toque do telefone de Luther nos desperta.

Levanta, pede licença e se afasta. 

— Está bem, melhor ser eu a explicar. — ela faz uma pausa — É assim, Lionelo estudava na África de Sul quando era mais novo, mas teve de vir viver aqui e, consequentemente, recomeçar o ensino primário. Só que o segundo ano foi perdido com o primeiro de Júlio, na décima classe. Desde então, eles e Gui, o terceiro moço,  fizeram juntos as restantes classes juntos.

— Resumindo e corrigindo: reprovamos os dois. — aproveito para dizer. Mais risos.

— Sim. — não para de rir quando olha na direcção de Luther, que vem com uma cara neutra — Está na hora? 

— Parece que sim. — olho para o relógio, que marcava 23:18. Pouco tempo para meia-noite. — Vou ter que me despedir.

— Onde é que vives? 

— Matola 700.

— Estás de carro ou...? — faço a segunda pergunta.

— Não. 

— Ele veio de transporte público. — Judite já está de pé perto dele.

— Então vamos juntos. Vivemos quase do mesmo lado. 

— Obrigado. Acaba de me lembrar que temos um compromisso demanhã. Tinha me esquecido completamente. — fala em tom de desculpa para a dona da casa e para sua namorada.

— Então, pessoal, esta é a minha deixa. — me levanto, deixo o copo na mesa e vou até Judite, que passa seu braço pela minha cintura e coloca o meu sobre seus ombros baixos. Continua muito mais baixinha que eu— Foi um prazer vos conhecer e reencontrar, e agradável passar este tempo com vocês, mas vou aproveitar me recolher.

— Igualmente, irmão, apesar do atraso. — se levanta para apertar minha mão.

— Luther, foi bom te conhecer. — a baixinha do meu lado nos vira de frente para ele.

— Igualmente. Obrigado pela recepção e pelo convite. — se vira para os outros — Tchau, tchau! Até a próxima. 

Percorremos o caminho de sua varanda até meu carro abraçados de lado, num silêncio confortável, e não paro de processar perguntar sobre vários sectores da sua vida atual. Sua vida como mulher. Mas acho melhor guardar para outro encontro, com calma, de preferência com menos pessoas. A vontade de colocar o papo em dia é enorme. Quero voltar a conhecê-la, e sei que é recíproco quando ela pergunta:

— Vamos nos ver de novo, nem?

— Claro. 

— Ainda bem, porque não mereço perder contacto contigo de novo. — molha os lábios — Foi bom te rever, Lionelo. — paramos diante do meu carro e ficamos um de frente para o outro.

— Também foi muito bom te ver de novo. — suspiro meio incomodado com a despedida — Posso ficar com teu número?

— Com certeza. — me dá espaço para tirar meu telefone do bolso e me preparar para digitar — Posso ditar?

— Pode.

— Oitenta e quatro, quarenta e quatro, oitenta e cinco, centro e quarenta e nove. — dita.

— Certo. Gravado. — devolvo o telefone e me vejo preso numa troca de sorrisos e olhares que dura meio minuto. 

Da perspectiva dos meus olhos, o rosto ostenta bochechas um pouco cheias, do tipo que engolem o polegar quando passa por elas. Não sabia que teria a chance de ver isto novamente. 

— Tchau, tchau! — digo e vou ocupar meu banco. Afivelo o cinto de segurança.

— Façam boa viagem e cheguem bem. — as duas se abraçam e nos observam.

— Até a próxima. 

Faço a manobra e levanto poeira quando acelero pela rua de terra abatida. As duas desaparecem por trás da poeira quando olho pelo espelho retrovisor. Ligo o AC, solto um longo suspiro e puxo uma garrafa de água para ajudar com o efeito leve do único copo de Uísque que bebi.

— Onde fica tua casa mesmo? — pergunto quando já estamos na estrada.

— Matola. Próximo ao cinema-700.

— Perto da Migração da Matola?

— Sim. — noto as duas mãos por cima dos joelhos.

— Teve um despedida boa? — sorrio quando solta uns risos em resposta. É a única que tenho — Luther.

— Sim.

— Como Luther Vandross.

— Sempre usam essa referência.

— Foi uma honra ter o nome inspirado no dele ou foi aleatório? 

— Foi uma honra ter meu nome inspirado no dele. Meu pai é muito fã. 

— Já ouvi uma e outra música dele. O suficiente para afirmar que ele tem bom gosto musical. 

— Todo mundo tem, desde que ache alguém com mesmo ponto de vista. — faz uma pausa — Mesmos gostos, na verdade. 

— Bem colocado. 

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