A morte de Jack Orestes não trouxe apenas alívio e desespero, fez nascer também sentimentos vagos e vidas sem rumo que caminham inutilmente para o vazio, tentando apagar seu nome de seus corpos e memórias. Para se manterem vivos, após a morte do pai, os irmãos Orestes separam e unem-se vezes de mais, mas um nunca conta o que viu ou ouviu ao outro; o mais novo sempre se mantém em silêncio, o mais velho nunca está realmente ali. Entre mentiras e o desespero do passado em seu encalço, gritando sobre o antecessor marcado à bala, cada um tem seu próprio motivo para não morrer, mas ambos sabem que a órbita vazia, uma hora ou outra, também manchará suas alvas faces.
Leer másQuero agradecer infinitamente à todos que acompanharam a jornada dos Orestes, aos que chegaram até aqui e também àqueles que pararam em algum ponto da estrada. A Itália e França, eu peço desculpas por cortar sua fronteira com uma muito enferrujada linha ferroviária. A história pedia certa distância e uma corda banda para unir ambas as partes de algum modo, a linha me pareceu uma boa ideia. A Itália, novamente, peço desculpas por bagunçar a geografia, pondo uma cidade cinzenta, inexistente bem no meio de tudo. Desculpa, Chemins de fer de I'Ouest, por usar tão mal a estação ferroviária de Saint-lô. E à população que residia essa região no ano de 1990. Juro que toda essa bagunça foi com uma boa intenção.
Os Orestes são como aparições, espectros pálidos e magros, várias cabeças mais altos que qualquer um naquela sala, como cópias exatas do Velho Jack. Eles só não imaginavam que chegaria àquilo, aquele mesmo desfecho. O palco, fora montado, a peça começara. Olhos gélidos em ambas as faces, medo em todos os corpos. A peça não teria o fim que o roteiro descrevera, houve uma mudança — mudança essa que pode mudar e acabar com tudo. As facas tremiam entre os dedos de Jackie. James Gurney o encarava com olhos de fome. Era melhor ele saber usar aquelas facas, ou morreria rápida e dolorosamente. Jack também puxou sua bacamarte. A arma, que um dia fora usada por um homem de sua família, numa guerra estrangeira, contra o Paraguai, tinha que servir de alguma coisa. Dedos em gatilhos, mãos em cabos de facas. Sangue é o que todos querem. Jackie se lembra de como foi aquele di
Jack não queria descansar. Não parou, não reclamou, não pediu ajuda para caminhar quando seus pés inchados reclamaram de dor. Ele apenas seguiu. Não é como se sua vida dependesse dessa vingança. É algo maior. Como se o mundo, todo o universo, dependesse disso. Como se o ar fosse sumir rápido de mais, sem tempo para achar um substituto respirável para o oxigênio caso ele não matasse todos aqueles homens. Como se deixá-los vivos fosse um risco à humanidade. Talvez Jack não acreditasse realmente nisso, que a humanidade extinguiria caso os assassinos de seu pai permanecessem vivos, mas, era o que estava repetindo em sua mente, rápida, porém, calmamente, deixando bem claro para si mesmo os perigos de deixá-los livres de punição. Sua mente acreditava, seu corpo, agoniado e frio, também. Jackie deveria saber que o irmão não desistiria tão fácil, que levaria aquela ideia a diante, houvesse o que houvesse. Entretanto, mesmo se soubesse que seria arrastado para
O dia esgotou-se entre os ponteiros do relógio quebrado do Velho Jack, pendurado no pescoço do caçula como um camafeu precioso. Cada clique doía em seu âmago, incendiando-o por dentro e ao redor, como um maçarico supergigante. Jackie levantou do tapete, assistindo aos fantasmas observando-o por molduras arranhadas e sem cor. Jogando as cobertas no sofá mofado, ele escorregou até o quarto azul. Os lençóis ainda são os mesmos, assim como os tapetes e as cortinas. Era de se admirar a forma como aquele quarto manteve-se conservado por todos aqueles longos, brutos e duros anos. Ela morreu bem ali, a mãe dos jovens Orestes, bela e nebulosa, como sempre fora. A alma liberta como uma das pombas na praça, o coração trancado naquele mausoléu que era Jack. O mais jovem — só por alguns minutos — não sentia a morte de Charlotte, sua mãe, do modo efervescente que sentia a morte do Velho Jack. Para ele, Charlotte não podia mais sentir o que sentia, as dores, os medos. Se sua vida disse que precisa
Quando entraram em casa, o prédio de aparência vitoriana, não parecia uma boa locação. Estava caindo aos pedaços, sem água ou energia, tão próximo de um pesadelo que assustava a coragem do mais velho. Jackie estava sentado no chão, sobre o tapete manchado com a substância escarlate que um dia correu às veias do Velho Jack, observando todos aqueles desenhos estranhos, com traços e pontos esticados, nas bordas, próximo à costura. O assobiar do vento, balançando as cortinas putridas, cheirando à poeira e mau uso, era o único ruído que sobressaltava o zunir das lembranças que a casa sussurra. Era impressionante como as portas ainda estavam fechadas, do mesmo jeito que sempre ficavam, ocultando segredos desconhecidos quais os irmãos jamais poderiam ter acesso. Sentia como se a família estivesse toda ali: a mãe e seus poemas, o pai e seus negócios, os irmãos e suas diversas formas de divertimento, todos escondidos em seus aposentos, vivendo livres em seus mu
A França sempre pareceu um sonho para Jackie, e viver lá é como uma prova de que qualquer sonho é alcançável, não importa qual seja. Até hoje, ele ainda lembra das histórias que o Velho Jack contava, sobre o Zimbábue, a Patagônia, as pontes de Londres e as fontes de Roma. O Velho Jack não via a França como o filho caçula vê. Ele queria sair dali a qualquer custo, queria avançar, sempre, descobrir outros mundos, outros lugares onde os sonhos pudessem ser alcançados. Talvez, esse seja o motivo principal para levar Jack a matar tantas pessoas, elas poderiam estar atrapalhando seu sonho, atrapalhando a meta de sua vida. Talvez fosse por uma causa nobre, uma causa justa, não só um desejo insaciável e vampiresco por sangue e guerras intermináveis. Talvez. Jackie sempre viu o pai como um assassino, O Assassino de Monstros, era assim que ele aparecia em seus sonhos, trajando uma armadura dourada, com a espada sedenta em mãos e a força de mil homens em seus pun
Dias e dias trancados numa grande caixa de madeira marrom com traços tão verdes e caracóis chamuscados, fizeram a claustrofobia do mais velho — só por alguns minutos — escorrer pelas laterais e manchar todo o chão encarpetado do trem. Talvez a Itália fosse capaz de pôr homens do governo atrás desse Jack por manchar o chão de sua bela monstruosidade mecânica e invadir suas terras clandestinamente. O mais jovem dos Orestes nada podia fazer a não ser deixar bem claro que monstro algum conseguiria passar por ele e fazer o mais velho rir de vez em quando. Para Jack, o mundo estava meio de cabeça para baixo. O estômago virando e revirando, girando e regirando. Aqueles monstros que Jackie citava, poderiam aparecer em qualquer lugar entre as cidades e as florestas, que surgiam e desapareciam nas janelas. O almoço, que não passou de ravioli e um grande e muito cheio copo de suco de maçã, estava pedindo para
Quando pessoas deixam de ser quem são e, numa certa curva de suas novas trajetórias, desejam voltar ao ponto de partida, é natural querer de volta tudo o que lhes foi tirado ao longo do caminho ou até mesmo antes de começar a caminhada. Ao menos Jack pensava assim. Talvez ele não estivesse certo, talvez nem mesmo o caçula achasse aquilo correto. Mas, aquele Jack, o Jack que matou alguém para seguir em frente e reviveu outrem para voltar atrás, queria isso, queria tudo de volta. A casa, o quarto azul, a mãe, o pai, a vida... Ele queria estar sob todos aqueles lençóis e os desenhos de estrelas e luas que o velho Jack pintou no seu pequenino céu quadriculado. Ele queria o irmão chorão e fazê-lo rir com cócegas. Queria as almofadas que nunca ficavam no lugar e ter que arruma-las antes de dormir. Queria os armários que sempre estavam cheios e temê-los durante a noite. Ele queria tudo, tudo, tudo. Desde o piso frio até os cabos de aço das panelas sempre ferventes. Tudo.&