"Amélia encostou na parede suja da rua, tentando normalizar a respiração e focar o olhar. A água começou a encharcar suas roupas. Seu corpo inteiro tremia, mas nenhum dos passantes parou para questioná-la. Olhou para o conteúdo que tinha nas mãos: 'Lamentações e súplicas da palavra' era o título do livro, não informando o nome do escritor. As páginas estavam começando a ficar molhadas."
Leer másO minueto de Bach já estava ecoando há um tempo quando a poeira pinicou o nariz de Amélia. Fazendo uma careta, ela abriu os olhos. A primeira coisa que viu, de maneira desfocada, foi um livro caído a sua frente. Sem pensar muito, tirou o celular do bolso do vestido e desligou o despertador.— Você ronca — Ícaro disse, de algum lugar que ela não conseguiu localizar.Amélia esfregou os olhos e se sentou, sentindo todos os músculos gritarem de dor. Ela emitiu um grunhido, sabendo que suas costas estavam arruinadas. Olhou ao redor e localizou o fantasma sentado a poucos metros atrás de si.— É claro que não ronco — protestou, se espreguiçando.— Tem raz&ati
Amélia poderia citar uma ou duas pessoas que a viram de pijama além dos pais. Pudera: sua linha de roupas de dormir era um tanto esquisita e, claro, infantil, para combinar com sua eterna sensação de que nunca havia crescido de verdade.No entanto, no momento em que sentiu cheiro de café fresco vindo da cozinha, não conseguia pensar em nenhum tipo de vergonha que a fizesse atrasar o momento de comer uma refeição decente pela manhã, depois de semanas tendo comida como preocupação leviana.Quando entrou na cozinha pequena, pôde visualizar uma mesa composta de frutas cortadas, pães e, principalmente, café. Ela quase derreteu de satisfação. Natã, já sentado e esperando, olhou para o pijama de bolinhas da amiga. Depois de chegar absurdamente cedo na casa de Ivana, a primeira coisa que Amélia fez, após colocar cupcakes no forno, foi escrever mais um trecho do texto que havia iniciado. A caneta de Ícaro era, realmente, um milagre; ou o sol era, ela não sabia. O papel estava um pouco manchado de chocolate na borda, graças a sua empolgação de duas horas atrás, mas a moça não estava dando muita atenção para essa parte desastrada do trabalho.Natã, que estava terminando de se arrumar para o turno do dia, ficou um pouco surpreso quando abriu a porta do quarto e ouviu os ruídos da amiga em sua casa.Não podia dizer que estava decepcionado, é claro.— Quem te derrubou da cama? — comentou, entrando na cozinha pa10
Às 7 horas da manhã, Amélia estava sentada na frente da livraria ainda fechada. O sol fraco despontava em meio à poluição e as pessoas andavam apressadas, de um lado para o outro, como bolinhas de pingue-pongue. A moça esfregou os braços gelados com as mãos.— Você de novo. — Ela ouviu uma voz feminina. Olhou para cima e deu de cara com Miriam. Levantou e deu espaço para a mulher conseguir destrancar a porta do estabelecimento.Sem mais diálogos, Miriam adentrou o corredor estreito da livraria e Amélia a seguiu. A idosa ia acendendo as luzes conforme andavam, um pouco mais lentamente do que o necessário.— Você acreditava antes? — Miriam perguntou, a voz não muito amigável.
Sair de casa é um ato de coragem. Com todas as Leis de Murphy e os efeitos borboletas, nunca dá para saber realmente o que vai acontecer. É assim que as pessoas morrem. Às vezes de forma trágica, como num acidente de ônibus.Mas se todos os seres humanos resolvessem viver em cativeiro como ato de pura proteção, o mundo não seria... Mundo. Quantas coisas seriam perdidas?Amélia olhou poucas vezes para o movimento da rua antes de entrar na livraria. Havia acordado pensando em todas as possíveis consequências de suas ações até o momento, e no conjunto de atitudes que ainda iria tomar, provavelmente encadeando mais acontecimentos e caminhos sem volta.Não que pensar estivesse ajudando.
Ícaro afastou-se. Não teria como reagir de outra forma aos olhos arregalados de Amélia.— Que bom que acredita em mim agora — limitou-se a dizer, dando as costas e caminhando para longe dela.— Mas… Você não é transparente. — A moça não conseguiu controlar as próprias pernas, surpreendendo-se consigo mesma ao ir atrás dele. — E conseguimos nos tocar. E você não atravessa objetos.Ícaro virou-se, fazendo com que Amélia brecasse seus passos. Ele sorriu, mordendo o polegar.— Também não sei o porquê. — O espectro focou o olhar na testa da visitante. — Você sua muito quando está com medo.
Doce de leite nunca foi o sabor preferido de Amélia. Morango sempre foi mais atrativo, perdendo até para chocolate no seu ranking. Quando criança, era tão obcecada pela fruta vermelha que começou a plantar sementes em um pequeno vaso.Por isso, realmente não entendia que tipo de cliente trocava morango por doce de leite no recheio do bolo. E foi função dela lidar com um monte daquela coisa gosmenta e sem graça (que fazia muita sujeira) enquanto Ivana ia fazer entregas. Nem acreditava que o turno finalmente estava chegando ao fim.— Precisa de ajuda?Amélia pulou de susto ao perceber a presença de Natã na cozinha. O rapaz franziu as sobrancelhas.— Não. Já acabei.
— Tem certeza de que não quer nem uma água, moça?— Não, obrigada. — Amélia acenou para o homem, que tinha uma grande caixa de isopor perto dos pés, apoiada na calçada.Ele deu de ombros e voltou a gritar detalhes sobre as bebidas que vendia, no intuito de atrair a atenção de quem passava.Amélia parou de repente, mordendo os lábios. Foi ultrapassada rapidamente por dois homens que estavam atrás. Deu a volta e abordou o vendedor novamente.— Na verdade, acho que vou querer sim — disse ela, procurando notas de dinheiro no bolso da calça vermelha.O vendedor se abaixou para remexer a caixa cheia de gelo. Colo