CAPÍTULO 2

2000

Clara, 9 anos

Estou muito empolgada com o programa que vamos fazer hoje. É muito bom sair com os pais da Eva: eles são engraçados e muito divertidos. Sempre quis ir a Grumari. Minhas amigas da escola comentam que a praia é linda e deserta, igual às dos filmes que passam à tarde na televisão. Eu me sinto em uma aventura e estou louca para brincar muito naquelas areias branquinhas.

Passamos o tempo mergulhando, correndo e fazendo castelos. Comemos uma comida muito gostosa, e a tia Ellen compra sorvetes de chocolate como sobremesa. Já são cinco horas da tarde, e estou cansada, mas não quero que o dia acabe.

Recolhemos as nossas coisas, entramos no carro e seguimos em direção à minha casa. No caminho, eu me lembro do Mirante que todo mundo fala, que fica no Leblon. Nunca fui lá antes. O Sol já vai se pôr, então seria maravilhoso se a gente terminasse o nosso programa assim. Faço aquela cara de cachorrinho abandonado, que quase sempre derrete o coração das nossas mães.

— Tia Ellen, vamos passar no Mirante do Leblon para ver o Sol se despedir? Por favor? Por favorzinho? — apelo, fazendo biquinho e juntando as mãos como se fosse rezar.

— Clarinha, já está tarde e, a essa hora, a Avenida Niemeyer tem um trânsito horrível — ela explica, tentando fazer com que eu desista da ideia. Mas sei ser insistente quando quero alguma coisa.

— Mas esta é a hora perfeita: a hora em que o Sol vai se pôr, tia! Por favor! A gente não precisa demorar. É o meu sonho — digo, com a voz triste.

Tia Ellen acaba cedendo e pede para tio Carlos mudar o nosso trajeto para irmos ao Mirante. Eu fico muito animada e dou pulinhos no banco de trás do carro. Eva está cansada e não fala nada. Ela não me acompanha na minha empolgação.

Fico distraída, olhando a paisagem pela janela, e não vejo quando acontece. Só ouço um barulho horrível e sinto meu corpo sendo jogado para frente com toda a força. O cinto de segurança me prende e me machuca, sufocando-me. O som de gritos toma conta de tudo, e nem mesmo sei se sou eu quem está berrando. Parece que estamos em câmera lenta, igual àquelas cenas de terror do cinema.

Abro os olhos e sinto dor no peito e na testa. Percebo que estou sangrando. Olho para o lado, e Eva está desmaiada. Tento ver tia Ellen e tio Carlos, mas só enxergo um monte de metal coberto de vermelho. Começo a gritar por eles, mas ninguém me responde. Tento me mexer melhor, mas não consigo. Choro em desespero e imploro para alguém me ajudar.

O barulho das sirenes começa a ficar cada vez mais alto e, em alguns minutos, alguns médicos falam comigo e fazem perguntas que não consigo responder. Eu, sinceramente, não sei o que aconteceu. Devo ter desmaiado. Eles me colocam na ambulância, mas preciso saber como estão Eva e os pais dela. Ninguém me responde. Começo a gritar, a me debater, a chamar pela minha mãe.

Acordo em um lugar estranho, que é claro demais. Não é o meu quarto. Não estou vendo o papel de parede rosa nem as minhas bonecas preferidas. Aqui é tudo branco e tem muita luz. Mal consigo abrir os meus olhos.

Vejo minha mãe, que se levanta e vem rápido na minha direção. Ela está com uma cara horrível e tem o cabelo todo despenteado. Acho que nunca a vi desse jeito.

— Filha, como você está? Sente dor, meu amor? — ela pergunta, fazendo carinho no meu braço. A lembrança do acidente volta forte e começo a sentir meu coração apertado.

— Mãe, cadê a Eva? Onde estão a tia Ellen e o tio Carlos? O que foi que aconteceu? — disparo, sem conseguir pensar direito. São tantas coisas que eu quero saber. Estou confusa e sinto medo, muito medo.

O rosto da minha mãe mostra que algo horrível aconteceu. Começo a chorar mesmo antes de ela contar. Não sei se quero ouvir o que ela vai dizer. Acho que, se eu não souber, não vai ser real.

Mamãe diz que houve uma batida feia entre o carro do tio Carlos e outros dois carros. Eu e Eva tivemos ferimentos leves, mas os pais dela morreram. As palavras ficam se repetindo na minha cabeça, mas não consigo acreditar. “Os pais da Eva estão mortos. Os pais da Eva estão mortos. Os pais da Eva estão mortos” é o pensamento que martela sem parar, como um daqueles discos arranhados da coleção antiga do papai. E, no meio daquele horror, eu me dou conta: a culpa foi minha! Eu quis ir até o Mirante, convenci todo mundo a me levar até lá, fiz o tio Carlos mudar o caminho. Se não fosse isso, a batida não tinha acontecido e eles não estariam mortos. Eu matei os pais da Eva!

Não consigo parar de chorar, soluçar e gritar. Eu sou uma menina horrível e, agora, por minha causa, a minha melhor amiga está sozinha no mundo. Por que fui inventar essa história de ver o pôr do Sol? Por quê?

***

Assim que me sinto um pouco melhor, peço para a minha mãe me levar até o quarto em que Eva está. Fica ao lado do meu, então, em poucos segundos, já consigo ver a minha amiga dormindo na cama. Ela é só uma criança, como eu. E perdeu tudo hoje. Tudo.

Eu me sento na beirada do colchão e seguro a sua mão. Bem baixinho, falo perto do seu ouvido:

— A culpa foi minha, Eva. Se eu não tivesse pedido para ir ao Mirante, os seus pais estariam vivos. Não sei o que dizer. Eu sinto muito. Eu prometo, amiga, que vou ficar sempre com você e fazer tudo o que eu puder, no mundo inteiro, para você ser feliz. Vou fazer qualquer coisa. Eu juro, Eva. Qualquer coisa. Para sempre — digo, chorando. Sei que só tenho nove anos, mas, a partir de agora, preciso fazer Eva feliz. É a minha obrigação depois de tudo o que causei.

***

Algumas semanas se passam, e Eva passa a morar de vez com a gente. Mamãe e papai estão resolvendo um monte de coisas para poder adotá-la como filha. Fico feliz em tê-la oficialmente como irmã, mesmo que, no fundo, sempre a tenha considerado assim. Dividimos o mesmo quarto, e tenho me esforçado para deixá-la alegre: cedi a minha cama, separei mais da metade do meu armário para ela guardar as roupas dela e enchi as paredes com fotos nossas e dos nossos pais. Ela pode escolher o programa que quer assistir e até o que vamos comer. Às vezes, é difícil conseguir agradar porque os nossos gostos são muito diferentes, mas faço tudo o que posso para ver a minha amiga-irmã sorrindo. O sorriso que eu, sem querer, roubei dela.

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