Experiência diferente

— Será que dá para pular a parte de tentar me matar? — perguntei, indicando a lâmina afiada.

Minha inquietação deve ter ficado evidente no meu rosto, porque Henry se apressou a explicar o motivo da faca. Os dois suspeitavam que eu não fosse humana. Havia alguns tipos de criaturas sobrenaturais com motivos para entrar na vida deles de modo suspeito, como eu fiz, e eles queriam verificar que eu não era um deles. Para isso, precisavam me benzer com água benta e me cortar com a faca de prata idiota. Demônios queimavam quando entravam em contato com a água santa. Outras criaturas, como lobisomens e a tal Shtriga que Caroline tinha mencionado antes, eram vulneráveis ao metal sagrado, a prata.

Henry me entregou um copo com água e sal, para garantir também que eu não estava possuída por nenhum fantasma. Enquanto eu apertava o algodão no meu braço por cima do corte da faca, Henry me explicou um pouco sobre como as lendas estavam erradas em sua maior parte. Por visão periférica, vi que Chris nos observava. Fazia bastante tempo que ele estava assim, calado e de cara amarrada para mim. Seus braços forçavam sua jaqueta de couro ao se cruzarem e as pernas abertas expunham os rasgos de sua calça. Diferente do irmão, seu cabelo era curto, loiro e arrepiado. Decidi interromper a fala de Henry.

— O que você quer? — Eu me virei para Chris e Henry fez o mesmo.

— Quero descobrir como aquele celular foi parar ali — ele respondeu num tom de voz morto, apontando para o celular que eu tinha arremessado.

Eu me xinguei mentalmente de todos os nomes possíveis, ao perceber que eu não tinha colocado-o no lugar onde estava inicialmente.

— Olha, eu posso explicar... — eu disse.

— Já não basta você vir com quatro pedras na mão pra cima da gente, agora tem que bisbilhotar nossas coisas?! — Chris disse.

— Não, eu...

— Escuta aqui — Ele se aproximou de mim apontando o dedo na minha cara. —, eu não vou manter perto de mim, muito menos ajudar, pessoas que não sabem ficar na sua e não se meter no que não é da sua conta!

— Se você ao menos me deixasse explicar! — Eu me levantei.

— Eu não quero ouvir nada!

Chris se aproximou mais de mim e então Henry entrou na sua frente. Os olhos verdes raivosos de Chris me observavam, quase incapazes de ultrapassar a linha do ombro do irmão.

— Deixe ela explicar — Henry disse.

— Que se dane — eu disse. — Ligue para o número e descubram vocês mesmos.

— Como assim? Esse celular tocou? — Chris indagou, de repente livre da raiva e tomado unicamente por um assombro que arregalou seus olhos.

Eu me poupei de responder e ouvir mais grosserias, agarrei a alça da minha mochila e saí do quarto. Queria ir embora de novo, mas, se minha casa não estava esperando por mim no lugar onde devia estar, eu não tinha para onde ir. Larguei meu corpo de qualquer jeito na escada do corredor de quarto. Havia mais peso na minha cabeça do que parecia caber. Tirei da minha mochila meu cantil amarronzado e me acalmei com o último gole de paz restante e o gosto forte da vodca. Meus braços se arrepiaram de prazer. 

Henry estava dizendo algo num tom de voz baixo dentro do quarto. Chris, por outro lado, estava gritando:

— É o meu celular! Ela vai ter que aprender a ficar na dela!

Henry respondeu algo indiscernível e depois abriu a porta do quarto. Eu esquivei o cantil para dentro da mochila de volta. Ele se sentou ao meu lado no degrau.

— Tudo bem? — ele perguntou.

— Estou ótima! — respondi, esticando os lábios para sorrir. Queria que aquilo o tivesse convencido.

— Olha, foi mal pela maneira como o Chris está agindo. Ele tá estressado com...

— Tudo bem. Você não me deve explicações.

Eu comecei a me perguntar, no entanto, como eu ficaria perto deles, se nenhum de nós confiava um no outro. O mesmo medo colossal que senti na mina me sufocou. Era como se uma ameaça tão horrível quanto o Wendigo estivesse me espreitando. Fiquei mortificada quando meus olhos aguaram sem o meu consentimento. Escondi o rosto nas mãos, mas Henry já tinha percebido.

— Sabe — ele disse, observando o estacionamento. —, ainda acho meio bizarra essa história de série de TV. Eles não mostram a gente tomando banho, né?

— Não! — Eu tive que dar risada. — Muita gente vê essa série, não podem expor esse tipo de coisa. Caroline teria derrubado nossa casa de tanto gritar, se visse uma coisa dessas.

— Como assim?

— Minha irmã é viciada na série de vocês! E quando seu irmão aparece sem camisa ou coisa parecida, só falta ela agarrar a tela da TV. Ela assiste vocês até enquanto come!

— Tá dizendo que ela come vendo bichos como o Wendigo todo dia?

— Basicamente. E, cara, ela tem que amar muito vocês.

— E você? Não gosta da gente? — Ele olhou nos meus olhos de tal maneira que fiquei sem graça em responder. Dizer que sim seria uma mentira descabida, considerando o meu atual comportamento.

— Não é que eu não goste de vocês, só não curto muito essa história de monstros e magia. Nunca acreditei nesse tipo de coisa.

— Mas agora...

— Agora eu até acredito, mas ainda não gosto do enredo de vocês.

— Qual enredo?

— Ah, você sabe. “Há vinte e dois anos, Henry e Chris Heisenberg perderam sua mãe em um incêndio causado por circunstâncias sobrenaturais. O pai dos garotos passou a viajar com seus filhos por todo o país, à procura do assassino. Chris ficou ao lado do pai nas buscas, mas Henry optou por ir para a faculdade de Direito. Quando seu pai desaparece, Chris pede ajuda ao irmão e os dois começam a caçar juntos.”.

— Então, você não é uma fã? — ele disse com um sorriso zombeteiro.

— Me poupe. Caroline fez um trabalho da escola sobre vocês e me obrigou a ouvir ela praticar a apresentação.

Henry ficou em silêncio. Seu sorriso foi diminuindo, enquanto ele encarava sua bota.

— Tudo isso é verdade? — perguntei. Ele assentiu com a cabeça. — E por que você foi embora pra faculdade?

— Eu não queria ser caçador. Meu pai se empenhou em tudo isso só por vingança pela minha mãe.

— Você não queria vingança?

— Todos morrem um dia. Não dá pra evitar.

— Sério? Vocês vivem num mundo sobrenatural e, mesmo assim, não tem como trazer alguém de volta dos mortos? Você estava me contando sobre fantasmas agora pouco.

— É, existem alguns meios…

— Então, se seu irmão morresse, você não o ressuscitaria?

Henry caiu em silêncio mais uma vez. Eu me arrependi de ter feito a pergunta e resolvi trocar o tom da conversa.

— Eu não aguentaria viver ao lado dele pro resto da vida! — eu disse, arrancando risadas dele. — Fala sério! Ele é insuportável sempre assim?

— Não! — respondeu ainda rindo. — Normalmente, é ele quem levanta o astral. Ele tem a capacidade de brincar, até nas situações mais catastróficas.

— Claro que tem. Ele é o mais velho. Temos que passar alguma segurança para os caçulas, mesmo que nem a gente acredite que vai ficar tudo bem.

Eu tive que me esforçar para controlar o impulso de pegar meu cantil. Quanto mais tempo longe de Caroline, mais ansiosa eu ficava para saber como estavam as coisas em casa. Por mais que, nessa dimensão de monstros, eu estivesse livre daquele lugar, pensar em deixá-la sozinha era desumano.

— Por que está falando assim? — Henry disse, cerrando os olhos, parecendo intrigado.

Eu não iria incomodá-lo com os meus problemas. O clima estava leve pela primeira vez desde que cheguei. Não iria atrapalhar falando da minha vida pessoal. Tentando convencê-lo de que não tinha nenhum motivo específico, apenas balancei os ombros.

— Sabe por que Chris está desse jeito? — ele perguntou e eu neguei com a cabeça. — Nosso pai ainda está desaparecido e não dá notícias há meses. Aquele celular é o único contato que ele tem conosco. Foi ele que ligou quando você atendeu?

Antes que eu pudesse dizer algo, a porta do quarto foi aberta. 

— Tô interrompendo alguma coisa? — Chris perguntou.

— Estávamos conversando — Henry disse.

Chris ergueu o maldito celular para mostrar o número que havia ligado antes.

— Você não vai começar a gritar comigo de novo, vai? — perguntei.

— Foi o pai que ligou pra gente — ele disse para o irmão, ignorando-me, e então me olhou. — Por acaso, você tem algum recado pra repassar?

— Ele não me falou nada — eu disse. — Pode olhar quanto tempo durou a ligação, vai ver que não deu tempo de conversar nada!

Chris manteve sua carranca mal-humorada e realmente checou o celular. Tudo bem, por que ele acreditaria em mim, né?

— Olha, vocês não acham que estão perdendo tempo me interrogando? — eu disse. — Quero dizer, acho que tem outras maneiras de encontrar o seu pai! Por que não rastreiam a ligação?

— Já tentamos, mas não deu certo — Henry disse.

— Se querem saber, ele parecia muito calmo quando atendi a ligação. Eu não acho que esse cara quer ser encontrado.

Henry olhou para o irmão e enfiou as mãos nos bolsos da calça de modo relaxado.

— É o que eu tenho dito — Henry disse e Chris revirou os olhos em resposta.

— Ele sumiu sem avisar, porra! É óbvio que ele tá com problemas — Chris disse.

— Essa não é a primeira vez que ele liga no meio do dia, cara.

— Tem demônios na cola dele há meses! A gente tem que saber onde ele tá!

— Ele está vivo — eu disse. — Parece que é só isso que ele quer que vocês saibam.

— Isso não é o bastante pra mim!

— Se ele se importasse com a opinião de vocês, ele não teria sumido sem avisar pra onde ia.

Chris fechou os olhos e respirou fundo, provavelmente controlando sua vontade de me xingar. Eu não queria que eles focassem no caso do pai deles nesse momento, mas era muito esquisito como os dois não percebiam que todo esse drama era pura ficção de entretenimento.

— Vamos começar a procurar logo alguma coisa que te mande pra casa — Chris disse, pegando uma agenda gorda de colagens e páginas amassadas de cima da mesa.

— O que é isso? — perguntei.

— Fonte de informações — ele disse, mantendo os olhos na agenda. — É mais uma coisa que você não deve tocar.

Duas horas depois, eu estava observando aqueles dois fazerem ligações e conferirem sua agenda. Para a minha desolação, meu cantil já estava vazio, e  não havia nada alcoólico no minibar do quarto. Decidi esperá-los deitada, mas eu começava a ser vencida pelo sono. Fiquei de barriga para cima, batendo o salto da minha bota na madeira da cama para me manter acordada.

— Tudo bem — Henry disse em sua ligação. — Não, é só isso. Obrigado — E desligou o celular.

— Nada? — Chris perguntou.

— Nada.

— Quer parar com isso? — o loiro me perguntou e eu sabia que ele estava se referindo ao barulho que eu fazia. Eu parei. Ele já ia abrir a boca para falar mais, porém seu celular emitiu um leve sino.

Ele deu uma risada sarcástica ao olhar a tela.

— Não acredito… Coordenadas — ele disse.

— Quem mandou coordenadas? — Henry perguntou.

— "Desconhecido".

— Ah, o mistério — ironizei.

Henry pesquisou em seu laptop o endereço enviado e encontrou uma cidade ao norte de Illinois. 

— Tem alguma coisa pra gente lá? — Chris disse.

— As últimas notícias falam de um policial que assassinou a mulher e depois cometeu suicídio. Antes, naquela mesma noite, ele tinha visitado um hospital psiquiátrico para responder uma denúncia...

Eu me aproximei para conseguir ver a notícia e reconheci uma das fotos estampadas no jornal.

— O Hospital St. Bonnavenue? — eu disse.

— Você conhece? — Henry perguntou.

— Ele fica numa cidade costeira, Hudson. Minha família e eu costumávamos ir para a praia de lá nas férias. Esse hospital tem a fama de ser assombrado.

— Então… É um trabalho? O pai nos mandou trabalho? — Henry disse, franzindo a testa para o irmão.

— Parece que sim. Vamos — Chris respondeu, abrindo sua bolsa de viagem na cama e colocando seus pertences nela.

— Isso não é estranho para você?

— É o que a gente faz. Por que ia ser estranho para mim?

Chris parecia familiarizado com a indignação de Henry, porque continuou mais interessado em juntar suas coisas.

— Você acha que ele vai estar lá? — Henry disse.

— Talvez.

— A gente devia ligar de volta, antes de ir para algum lugar…

— Henry — Chris largou um monte de roupa de uma só vez dentro da bolsa e encarou o irmão. — Tem um caso em Hudson, então nós vamos pra Hudson. Até porque, Rufus mora lá. Ele pode ajudar a gente a encontrar um jeito de m****r ela de volta pra casa.

Ele apontou para mim de qualquer jeito. Esse argumento venceu a discussão, Henry suspirou e deixou Chris continuar o que fazia.

Eram mais de seis horas de viagem até a costa de Illinois e eu já não suportava o cheiro ardido impregnado em mim, desde que saí da mina. Os meninos me emprestaram roupas para eu viajar e disseram que eu podia fazer algumas compras quando chegássemos a Hudson. Tive curiosidade para perguntar como eles conseguiam dinheiro naquele ramo de trabalho, mas o sono me venceu antes que o fizesse.

Quando acordei, ainda estávamos na estrada. O vento gelado da noite esfriava meus braços e me obrigava a me enrolar na camisa enorme que Henry me emprestara. O Jeep era a coisa mais limpa perto daqueles caras que eu tinha encontrado. Aliás, atrás do banco de Chris, havia uma garrafa de álcool pela metade e um pano. Mesmo assim, o perfume barato de Henry era o que me reconfortava, de um jeito silencioso e reservado.

O Jeep diminuiu a velocidade. A luz azulada do posto de gasolina e da loja de conveniência nos iluminou. Henry estava com a cabeça encostada na porta para dormir. Chris lhe deu um tapa no peito para acordá-lo.

— Banheiro, princesa — Chris avisou, recebendo uma cara emburrada do irmão, e depois me olhou. — Você vai?

— Não, valeu — respondi.

— Beleza. Vou encher o tanque.

Deitei a cabeça no encosto do banco e esperei os dois saírem do carro. O mero pensamento de que meu cantil estava vazio me deixava ansiosa. Minha mente estava leve depois de dormir, mas, naquele lugar, sabendo que tinha coisas piores que um Wendigo ao redor daqueles caras e que estávamos indo de encontro a um hospício assombrado… Bom, minha mente já estava pesada de novo. Esquivei minha mão para o pequeno compartimento debaixo do rádio do carro, onde eu tinha visto Henry colocar sua carteira, e puxei vinte dólares de lá.

Chris estava voltando, andando do seu jeito marrento, com as pernas arqueadas e os braços meio abertos.

— Mudei de ideia — eu avisei, saltando para fora do Jeep e esquivando meu cantil para o meu bolso.

Uma vez dentro da conveniência, eu me certifiquei de que nenhum dos dois estava por perto ou me vendo, e comprei vodca o bastante para encher meu cantil. Bebi o que tinha restado na garrafa para não desperdiçar nem deixar evidências. O alívio me acalmou com uma sensação deliciosa. 

Chris ainda estava enchendo o tanque quando voltei. Henry se aproximava do carro, então não tive tempo de colocar seu troco na carteira e enfiei a nota e as moedas no apoio de copos. Seguimos viagem.

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