O caçador e a presa

Eu daria qualquer coisa para trocar de lugar com a Caroline. Aquela pirralha provavelmente estava há horas em frente à sua penteadeira, tirando a maquiagem que usava no dia e passando cremes para dormir. Era uma grande idiotice, mas era melhor do que a minha situação.

Meus pulsos estavam esticados para o alto e amarrados um ao outro há tanto tempo, que eu tentava mover meus dedos e não tinha certeza se estavam ali. O sangue já tinha descido demais. Olhando para cima, havia apenas breu. O único feixe de luz que entrava sequer me alcançava. Eu já estava tonta de fúria com o incessante ploc, ploc da água pingando em algum lugar daquela mina. Pelos meus pés, passava um par de trilhos, abandonados há muito tempo.

A coisa que me sequestrara tinha me deixado sozinha ali há horas. Ela era um metro mais alta que eu e tão forte, que eu ainda sentia a lembrança do apertão de suas mãos nos meus tornozelos. A gosma gelada que cobria seu corpo estava grudada na minha pele.

Eu não sabia mais o que pensar sobre tudo aquilo. Meu sangue fervia de raiva por não conseguir encontrar sentido naquele pesadelo. Nenhuma das minhas teorias parecia boa o bastante e, à medida que eu descartava uma atrás da outra, sem parar, um medo colossalmente irracional me consumia. Minha vontade era de apaziguar aquela ansiedade com um gole de paz do meu cantil. Eu percebi que tinha chegado no meu limite, quando ouvi os pés da criatura se arrastarem no piso úmido, e desejei ter prestado um pouco de atenção no que Caroline dizia sobre aquelas coisas.

Seu vulto veio até mim, contra a luz. Era o corpo de um ser humano, mas fedia inteiramente a carniça. O braço comprido se esticou para o meu rosto e os dedos gelados apalparam minha bochecha, como se verificasse a maciez da carne. A criatura estalou os lábios e ergueu sua outra mão, segurando algo. Quando a luz iluminou a boca animalesca, vi um pé e cinco dedos separados do corpo serem mordidos com os dentes pontiagudos da coisa, como se fosse um doce Fini.

Fiz força para puxar meus braços, pendurei-me no cipó que me amarrava, tentando vencer o nó com meu peso. Meu coração batia tão alto que eu não conseguia ouvir os sons de sua boca abrindo e fechando enquanto mastigava. 

A criatura engoliu pela última vez, respirou fundo e escancarou a boca, preparada com dentes ensanguentados, inclinando na direção do meu pescoço. Eu pensei na ousadia de uma coisa ridícula como aquela estar acontecendo. Desejei, de uma vez por todas, que a merda daquele pesadelo terminasse, e acertei meu pé entre as pernas da criatura. Sua garganta disparou um grito raivoso para a minha cara. Eu lhe dei outro chute e ele berrou outra vez.

— Por aqui! — alguém gritou, de algum lugar dos túneis da mina.

A coisa virou a cabeça na direção do som e estalou os lábios, olhando para mim e para os túneis. Seus dedos agarraram um emaranhado de cipós e as pernas arqueadas partiram para procurar o dono da voz. 

“Vou para casa, nem que eu morra tentando”, pensei. Usei nos meus braços a mesma força necessária para erguer todas aquelas meninas da equipe de torcida, e me puxei para cima, até alcançar o cipó com os dentes. Foi inútil tentar mordê-lo e roê-lo. E então, eu senti a água pingar com seu ploc no meu rosto. Levei minhas mãos até a goteira, girando meus pulsos e permitindo que eles escorregassem livremente.

Meu coração foi parar na garganta ao ouvir um tiro estourar dentro da mina. Os ouvidos zuniram, as paredes tremeram ao meu redor. 

Lá na frente, na próxima curva do túnel, um vulto surgiu e avançou na minha direção, muito rápido com as pernas longas e movido por urgência. Libertei meus pulsos do cipó, mas meu tornozelo falhou da tentativa de correr e eu dei de cara com o piso úmido e uma caveira de dentes arreganhados. 

Os passos atrás de mim me alcançaram. Senti a presença ficar perto, muito perto. Eu me arrastei no chão para longe, feri minhas mãos com os ossos pontiagudos debaixo de mim e duas mãos ampararam meus braços. Um feixe de luz branca foi largado no chão. O rosto de Henry se inclinou até poder me olhar de perto com a claridade da lanterna.

— Calma, calma... — ele dizia. — Você está bem?

— Não… Que merda é aquela?! Você sabe que merda é aquela?! — gritei para seu rosto.

— É um Wendigo. Chris e eu viemos pra Rockford, porque havia pessoas desaparecendo nessa floresta há meses. O Wendigo captura os campistas e os traz pra casa dele pra se alimentar…

— Pode parar com seus contos de fadas idiotas… É claro que essa bizarrice é obra de vocês, porra…

Eu me desvencilhei dele e me arrastei, massageando meu tornozelo para vencer a dor.

— Sinto muito que ele tenha pegado você, de verdade. Mas é perigoso andar sozinha aqui dentro. Deixe nós terminarmos com isso e eu prometo que vamos te ajudar com o que você precisar — ele disse.

Eu ia falar, mas fui interrompida por outro tiro. Henry girou nos calcanhares e olhou de olhos arregalados na direção do barulho. Como ele sabia de onde tinha vindo? Eu não tinha ideia.

O rosto dele se desmanchava num pedido por piedade, seus olhos eram de um filhotinho abandonado para mim. Novamente, um tiro estourou dentro da mina e o rugido da criatura ressoou. Henry se remexeu sobre seus pés em ansiedade e abriu a boca para provavelmente implorar de novo.

A criatura era assustadora. A falta de sangue nas minhas mãos era um excelente lembrete de que eu precisava correr para longe dali o mais rápido possível. No entanto, eu queria constatar que o bicho era mesmo real e não faria isso pelas palavras daqueles caras.

— Ok. Mate aquela coisa na minha frente e eu posso considerar não denunciar vocês dois para a polícia — eu disse. 

— Fechado.

— Henry! — chamou Chris, pelo túnel à nossa esquerda.

— Aqui! 

— Onde?! 

— Henry, é um truque! — Chris disse, desta vez pelo túnel da direita. — O desgraçado tá fingindo a minha voz pra atrair você!

— Henry, sou eu! Aqui! — a segunda voz de Chris disse.

— Esse bicho pode fazer isso? — perguntei.

— É assim que ele atrai as vítimas — Henry explicou e olhou aleatoriamente para as diferentes entradas. — Chris, me responde uma coisa!

— Manda! 

— Como você chama o Jeep quando fica sozinho com ele?

Eu franzi a testa para ele e Henry fez a cara mais divertida do mundo, esperando pela resposta durante longos minutos. Ele não se vestia como eu imaginava que um caçador se vestiria. Henry parecia um garoto do ensino fundamental, pronto para fazer perfeitamente o trabalho da escola, com a sua flanela laranja, de pulsos dobrados até os cotovelos. Apesar disso, eu sabia que ele tinha pouco mais de vinte anos, pelo que Caroline havia me contado. E também havia uma mochila esquisita com uma arma enorme pendurada nas suas costas.

Eu parei de reparar nele quando Chris respondeu:

— Tigresa — ele disse, com um arrastar de arrependimento na voz. — E não é ele. É ela, falou?

— Ok — Henry disse, dando risadas. — Só continua falando até eu te encontrar.

Ele me ofereceu apoio para que eu pudesse ficar de pé com o braço enrolado em seu pescoço, enquanto caminhávamos pelos túneis. Encontramos Chris perto da entrada da mina e, antes que eu pudesse caçoar da Tigresa, meu apoio desapareceu e eu caí contra a borda dura de um carrinho de mão abandonado. Henry tinha sido arremessado para longe, até bater a cabeça na parede. O Wendigo estalava os pés no chão úmido, se aproximando de Henry com a boca arreganhada. Henry não se mexia, não reagia. Eu peguei uma pedra de dentro do carrinho de mão e acertei a cabeça do Wendigo para chamar sua atenção.

Quando a besta me encarou e seus lábios se esticaram no que parecia ser um sorriso de satisfação, eu percebi que aquele seria o meu fim. Ou melhor, que seria o fim do meu sonho. Fechei os olhos e torci para isso.

Contudo, não tive essa sorte. Uma luz avermelhada enviou ondas de calor na minha direção. Não sei dizer se senti pavor ou alívio ao ouvir um estrondo, mas alguma coisa gelada caiu aos meus pés. Soltei o fôlego de esperança que tinha ficado preso na minha garganta e abri os olhos. O monstro estava morto no chão e Chris segurava um lança-chamas.

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  — Espera aí! Você sabe o que está fazendo? — eu disse.

Nós tínhamos voltado ao hotel de beira de estrada. Meu tornozelo estava roxo e inchado, mas a dor já tinha diminuído bastante. Henry tinha me pedido para sentar na cama, enquanto ele tirava de dentro de sua mochila um rolo de esparadrapo, e se sentou ao meu lado para fazer um curativo.

— Pode confiar, Henry tem as mãos macias de uma criança de cinco anos — Chris disse com um sorriso de zombaria. Ele estava sentado à mesa de frente para a janela, de pernas abertas, virando uma garrafa de cerveja na boca. — O Wendigo pareceu real o bastante pra você?

— Chris — Henry repreendeu, lançando-lhe uma careta mal-humorada.

— É que eu mesmo não sou muito fã daquela cara feia, às vezes me lembra uma máscara malfeita.

Eu preferi observar o que Henry fazia, em vez de pedir desculpas, como eu sabia que deveria. Não era a minha obrigação acreditar em dois personagens fictícios de primeira. A junção de medo e incerteza que vivi na mina, e aquela cor horrível do meu tornozelo, fizeram com que eu me rendesse àquela realidade. Gostando ou não, Tristen tinha me feito viajar para outra dimensão.

— Tenho um assassinato agendado para quando eu voltar — resmunguei. — Que merda…

— Nós vamos… — Henry começou, mas foi interrompido pelo toque agudo de seu celular. Ele terminou de prender firmemente o esparadrapo ao redor do meu ferimento e checou a tela. Chris chegou mais perto para olhar por cima do ombro dele e os dois trocaram um olhar pesado. Chris fez um sinal com a cabeça para o lado de fora. — Nos dê um minuto.

Os dois saíram do quarto em silêncio para atender a chamada. Eu me deitei e cobri os olhos, tentando não pensar no quão ferrada eu estava. Minha melhor chance de sair daquele lugar dependia de dois caçadores de monstros que eu não conhecia e que, claramente, não gostavam muito de mim.

Na mesa de cabeceira ao meu lado, outro celular tocou. Eu debati internamente entre atender ou ignorar, até que pensei “Bom, quem são eles para que eu respeite sua privacidade?”. 

Na tela do celular dizia “Desconhecido”.

— Alô? — eu disse.

— Henry? Chris? — um homem chamou.

— Não. Sou uma... — Eu pigarreei para pensar numa resposta. — Sou uma conhecida deles.

Logo depois, ele desligou na minha cara. 

Os rapazes voltaram e eu arremessei o celular em uma das camas, cruzando meus dedos atrás das costas e esticando os braços para fingir que estava me espreguiçando.

— Era pra mim? — perguntei, abrindo um sorriso cínico.

Chris revirou os olhos.

— Vamos te dar uma mão com a sua bagunça — ele disse. — Mas antes, temos que tirar a prova de algumas coisas. 

Dizendo isso, ele sacou da sua calça uma faca. Esse era apenas um dos muitos aspectos do mundo deles que me faziam detestar estar ali.

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