O Feiticeiro
O Feiticeiro
Por: Cassandra Drummond
Prólogo

A chuva atingia sua pele de forma agressiva, encharcando seu vestido e tornando-o absurdamente pesado. Ela segurava as saias para poder correr, mas seus sapados ficavam deslizando pela lama, o que tornava o simples ato muito dificultoso.

Um raio rasgou o céu, iluminando a floresta ao seu redor, fazendo com que as árvores parecessem sombras sinistras. Logo em seguida, um trovão soou, mais alto do que as batidas do coração da menina, assustando-a.

Eleanore VonBerge sempre foi ensinada a obedecer sem questionar, a fazer o que era esperado de uma mulher, a ser dócil, a abaixar a cabeça e cumprir com suas responsabilidades. Uma delas era se casar com um homem que não conhecia, que tinha praticamente o dobro de sua idade e que era muito rico, para que pudesse salvar seu pai da falência.

Seu pai tinha perdido quase toda sua fortuna por causa de seu problema recorrente com jogos e bebida e, por isso, submetera sua filha à um casamento arranjado, por dinheiro. Ele costumava lhe dizer que, já que teve o infortúnio de ter apenas uma filha, então, que ela lhe fosse útil, trazendo novamente a riqueza para sua família através de um casamento.

Sua mãe havia morrido quando ela era muito pequena, perecendo para uma doença horrível. Não tinha quase nenhuma lembrança dela, além de um colar e do que seu pai lhe contava, o que não costumava ser muita coisa, já que mal se falavam.

Morava em um grande casarão ao pé da montanha, oito quartos, empregados, um terreno extenso e bonito. Mas para Eleanore parecia mais uma prisão, longe de tudo e todos, de onde não podia sair, sem a companhia de sua enfadonha tia, irmã de seu pai, e sua detestável prima, cujo objetivo de vida sempre fora aporrinhar Eleanore.

A vida de Eleanore não era boa, não era feliz, ela não era amada verdadeiramente por ninguém e não haviam perspectivas otimistas para seu futuro. Estava desesperada e não queria se casar com um estranho. Na verdade, não queria mais aquela vida.

Aquela noite seria a sua última naquela casa, porque, depois disso, seu futuro marido viria para se casar com ela e, então, ela teria que partir com ele, para morar em sua casa, cuidar dela e lhe oferecer filhos. Não podia mais aguentar, não ia permitir. Não suportaria mais.

Então, naquela mesma noite, quando já era tarde e todos estavam dormindo, ela desceu as escadas de mansinho e saiu pela porta da frente. Pegou um cavalo e cavalgou velozmente sem rumo, sem sequer saber para onde ir, não tinha feito malas e, na verdade, isso não importava nenhum pouco.

Ela nunca tinha se sentido tão livre, cavalgando com os cabelos agitados pelo vento, feito uma bandeira de cachos ruivos acobreados. Eleanore soltou um grito, que preencheu o silêncio ao seu redor. E sorriu, pelo que parecia ser a primeira vez em anos.

Foi quando começou a chover. Uma repentina tempestade, carregada de raios e trovões. As gotas pesadas e gélidas, atingiam sua pele feito pedras, encharcando suas roupas em questão de segundos, esfriando seu corpo até a alma.

O cavalo acabou perdendo o equilíbrio, por causa de um declive e da lama escorregadia. Ele caiu pesadamente no chão, em cima da perna de Eleanore, que gritou de terror e dor. Eles deslizaram pela terra, que cedera ao enorme peso do animal, levando ambos até o riacho furioso, abastecido pela água da chuva.

Eleanore e o cavalo foram direto para as águas, ela tentou se agarrar desesperadamente na grama, mas estava muito lisa. O corcel se debatia, tentando se levantar, mas a terra não era firme o bastante. Com um esforço sobre-humano, ela conseguiu arrancar a perna de debaixo do cavalo, enfiou suas mãos na lama e se arrastou para fora daquele riacho, sentindo cada um de seus músculos latejando pelo esforço.

Ela se virou para o seu cavalo e agarrou suas rédeas, observando o animal tentar inutilmente se levantar, mas incapaz por causa da terra instável e da água do rio que empurrava o corcel fortemente. Eleanore cravou suas pernas na lama e puxou as rédeas, mas, no mesmo instante, soltou um grito de dor ao forçar sua perna ferida. Olhou para o cavalo, que ofegava desesperado, mas estava impotente, não tinha forças para salva-lo, mal tinha forças para se salvar.

Lágrimas começaram a brotar nos olhos de Eleanore e escorrer abundantemente por seu rosto, confundindo-se com as gotas da chuva. Aquele cavalo era Dilon, ela o tinha desde que ele era um filhote, praticamente só montava ele e, agora, o veria morrer, afundado na lama ou afogado pelo rio, por sua causa. Era umas das únicas coisas que amava na vida e o perderia para sempre.

Eleanore sussurrou diversas vezes pedidos de desculpas. Queria toca-lo, acaricia-lo como forma de despedida, mas temia que, ao se aproximar mais, pudesse ser levada pela forte correnteza. Dilon relinchava, os olhos muito arregalados e as narinas bem abertas. Estava com medo, assim como ela. Eleanore sussurrou uma despedida e deu as costas para seu amado cavalo, sem conseguir ajuda-lo. Ela chorou feito uma criança, enquanto se arrastava pela lama para subir o morro o qual caíra.  

Molhada até os ossos, tremendo de frio, suja de lama, com a perna doendo de forma excruciante e de coração partido, Eleanore se obrigou a continuar andando, cada vez mais para longe de sua casa.

O vento era frio e fazia com que ela batesse os dentes de forma dolorosa. Ela abraçou seu próprio corpo, mas era inútil, porque sua pele e suas roupas estavam completamente úmidas e geladas. A roupa pesada apenas contribuíra para sua dificuldade de locomoção, juntamente com sua perna ferida e sua incapacidade de manter o calor corporal.

Subitamente, pensou no quão burra fora ao ponto de fugir sem bagagem e sem nenhum plano.

Já não sabia mais há quanto tempo estava andando, sentia tanta dor, tanto frio, que não conseguia pensar em mais nada. Teve certeza de que morreria. Se não de frio, de dor, ou, dali há alguns dias, de inanição.

Pensou em desistir, em deitar no chão, sentindo a água açoita-la, a dor dominar seu corpo e o frio a engolir, levando-a para os braços da morte. Eleanore foi infeliz praticamente a vida toda, então, que diferença fazia se vivia ou morria?

Mas, por algum motivo, não queria morrer, não quis desistir, queria viver e lutar. Queria saber como era ser feliz, como era ser amada de verdade.

Foi quando viu um caminho de pedras, rodeado por faias que se curvavam sobre a estrada, fazendo com que tudo ficasse mais escuro e sombrio. Estranhamente, a chuva não atingia o chão por entre as árvores e, por mais assustador que tudo aquilo pudesse parecer, Eleanore seguiu por este caminho.

Eleanore agarrou firmemente a medalhinha que um dia pertenceu a sua mão, apertando-a contra sua palma, de um jeito até doloroso. O delicado pingente ficava preso à uma fina corrente de ouro, a medalha era bem pequena, pouco maior que uma unha, de um formato oval. Gravado no metal dourado, estava o pequeno desenho de um leão empinado abaixo de um sol reluzente. Ele nunca soube o significado daquilo, mas soava forte e destemido. Tudo que ela precisava naquele momento. Coragem. 

As pedras do chão facilitavam um pouco seu caminhar, já que eram mais estáveis do que a lama escorregadia. Mas os galhos retorcidos das faias, pareciam garras e, o constante clarão provocado pelos relâmpagos, faziam com que Eleanore visse vultos na floresta que a rodeava, fazendo-a se sentir observada. Um arrepio intenso percorreu toda sua coluna, assim como um frio mórbido, que chacoalhou todo o seu corpo.

Coragem, Eleanore. Coragem!

Embora o medo e a forte dor em sua perna fossem quase paralisantes, ela prosseguiu, arrastando um pé na frente do outro. O corpo todo dominado por tremores, causados tanto pelo frio congelante, quanto pelo medo impactante.

A chuva não a açoitava mais, mas ainda havia um vento sussurrante que serpenteava por entre as faias, fazendo as folhas farfalharem sonoramente, atingindo a pele de Eleanore feito um poderoso golpe. Ela quase podia ouvir vozes, mas era só a chuva, eram só os ventos, eram só as folhas se agitando. Ou era disso que ela tentava se convencer.

Estava tão escuro, que Eleanore praticamente não enxergava o caminho à sua frente, nem nada ao seu redor, tornando difícil de se guiar. Ela apenas conseguia ver alguma coisa quando um relâmpago iluminava o céu, formando sombras pavorosas por todo lugar.

No fim daquele caminho assombroso, havia o que parecia uma espécie de castelo diminuto, com torres compridas, telhados escuros e pontiagudos com telhas esburacadas, feito de pedras escuras, janelas altas quebradas, parcialmente coberto por vegetação e líquen. Parecia estar abandonado, pela grama alta e as árvores que o circulavam. Quando outro raio cruzou o céu escuro, Eleanore pôde ver a aparência macabra e sinistra daquele lugar.

Outro arrepio fez seu corpo tremer intensamente. Aquilo não podia ser um bom sinal.

Já tinha ouvido falar sobre um castelo assombrado que ficava no meio da floresta. Diziam que era protegido por uma besta sanguinária, que era habitado por demônios e espíritos vingativos, que enlouqueciam e devoravam sua vítima, até não sobrar nem os ossos. Ninguém que ousava pisar naquele lugar voltava para contar a história.

Um raio desceu do céu naquele exato instante, muito próximo de onde Eleanore estava, pois o som do trovão que se seguiu foi avassalador, como o urro de uma fera demoníaca. Ela soltou um grito de susto e olhou ao redor, como se tivesse atraído a atenção de alguém. Talvez da besta sanguinária que protegia o castelo.

Mas ela continuava sozinha.

Eleanore apertou com mais força a medalhinha, sentindo o metal ferir a palma de sua mão.

Sendo assombrado ou não, aquele castelo era o único abrigo que Eleanore encontrara e, fria do jeito que estava e com sua perna ferida, não conseguiria ir muito mais longe.

Cada passo que Eleanore deu, até as portas da frente do castelo, foram agonizantes, suas pernas já não aguentavam mais, sua pele estava praticamente congelada. Ela podia sentir suas forças deixando seu corpo, o peso de toda a energia que gastou andando até ali e tentando se manter aquecida, esvaindo-se, como se fosse o último suspiro de sua vitalidade.

 Assim que alcançou as altas portas de entrada daquele castelo abandonado, Eleanore apoiou as mãos na madeira velha e empurrou. Mas nada aconteceu. Então, ela repetiu o gesto, só que com mais força do que antes. Eleanore sentiu sua perna protestar, enviando um impulso de dor por todo o seu corpo, arrancando um gemido lamuriante da garota. Porém, novamente, a porta não se moveu nenhum centímetro.

Eleanore apoiou o ombro contra a madeira molhada, assim como seu braço e sua outra mão, usando como base sua perna boa. Aplicando toda a força que ainda lhe restava, ela empurrou aquela maldita porta com todo o seu corpo. Eleanore soltou um grito estridente, quando todos os seus músculos protestaram com o repentino esforço. Estava absurdamente cansada, já não aguentava mais, mas continuou empurrando.

A porta, assim como nas tentativas anteriores, não cedeu. O ombro da garota deslizou sobre a madeira molhada, fazendo-a perder o equilíbrio, deixando Eleanore no chão.

Ela começou a chorar, sentindo as gotas da chuva caindo em seu rosto e a perna latejante, enquanto permanecia no chão, derrotada.

Então, era assim que acabava? Deitada no chão molhado, em frente à um castelo assombrado, em uma terrível noite de tempestade? Sozinha e sem nenhum calor? Ferida e dolorida?

Não, não era assim que acabava. Eleanore não aceitaria uma morte assim.

Com uma dificuldade imensa, ela conseguiu se erguer novamente e ficar em pé. Espalmou ambas as mãos na porta e cravou seus pés no chão de pedras. Novamente, forçou a superfície de madeira para frente, para abri-la. E, novamente, sem sucesso.

Mas Eleanore não desistiu, continuou empurrando. Abre! Ela gritava em sua mente, já que não conseguia juntar energia o suficiente para falar em voz alta. Abra porta maldita! Abra porta dos infernos! Eu não vou morrer aqui, eu não vou ficar aqui na chuva e no frio, sozinha, então, abra! Eu ordeno que você abra! Irei enfrentar qualquer demônio, qualquer espírito vingativo e qualquer besta sanguinária. Eu suplico, eu rogo, eu ordeno e eu conjuro que essa porta se abra! 

Então, por mais impossível e improvável que fosse, a porta rangeu ruidosamente e se abriu. Eleanore empurrava com tanta força, que foi lançada para frente, indo direto para o chão, atingindo o piso frio dolorosamente.

Se houvesse qualquer espírito naquela casa, ela certamente tinha acordado todos.

Eleanore virou-se de barriga para cima e respirou fundo, em busca de ar. Um alívio tomou conta de seu peito. Agora, pelo menos, havia um teto sobre sua cabeça, protegendo-a da chuva.

Ela sentiu um calor envolver todo o seu corpo, feito um cobertor quentinho. Estava tão exausta, que não conseguiu ver de onde vinha a fonte de calor, estava tão exausta, que sequer reparou no lugar ao seu redor, estava tão exausta, que suas pálpebras começaram a pesar, fechando-se lentamente.

Estava tão cansada, que adormeceu.

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