Cap 09

#Mattias

Empurro o cara contra um belo e reluzente Camaro preto, que provavelmente custou mais do que minha mãe consegue ganhar em um ano.

— Escute aqui, Benício... — eu digo — se você não pagar agora, vou quebrar alguma coisa sua... Não um objeto, ou o seu carro danado de bonito... Mas algo que seja permanentemente ligado a você, entende?

Benício, mais magro do que um poste telefônico e pálido como um fantasma, me olha como se eu acabasse de condená-lo à morte. Bem, ele deveria ter pensado melhor, antes de assumir dívidas que não pode pagar.

Quando Bernie me manda cobrar, eu cobro. Posso não gostar disso, mas faço. Ele sabe que não trafico drogas, nem participo de assaltos. Mas sou bom em cobranças. Às vezes as coisas se complicam: as pessoas não cumprem o que prometeram e tudo vira um grande enrosco... Principalmente porque sei o que vai acontecer com essas pessoas, se elas não pagarem suas dívidas e eu tiver que mandá-las ao velho armazém, para enfrentar o Bruno.

Ninguém quer encarar o Bruno... Porque é pior ainda do que me encarar. Benício deveria se sentir um felizardo por ter sido eu o escolhido para fazer essa cobrança.

Dizer que minha vida não é lá muito limpa... É relativo. Tento não dar muita importância a essas coisas que me desagradam, a esse serviço sujo que estou fazendo para a Sangue Latino.

E o pior é que sou bom nisso. Assustar as pessoas para que elas paguem o que devem é o meu trabalho.

Tecnicamente falando, tenho as mãos limpas, com relação a drogas. Ok, apenas o dinheiro das drogas passa por minhas mãos, com frequência, mas eu apenas recebo e entrego a Bernie. Não uso drogas, nem passo. Isso faz de mim um peixe pequeno. Mas não me importo, desde que minha família esteja em segurança. Além do mais, sou bom de briga. Você não pode imaginar quanta gente já amarelou, diante das minhas ameaças de quebrar seus ossos. Benício não é muito diferente dos outros caras que já ameacei. Percebo isso pela sua tentativa de parecer tranquilo, de não mostrar o medo... Mas suas mãos magras tremem, de um jeito incontrolável.

Talvez você pense que a Sra. Benson também tem medo de mim. Que nada, cara.

Ela não tem, e nem teria, mesmo que eu jogasse uma granada na sua mão.

— Não consegui o dinheiro — Benício deixa escapar. Noah se intromete na conversa, dizendo:

— Essa resposta não serve, cara.

Noah gosta de fazer essas cobranças comigo. Ele acha que a coisa funciona como num jogo, como naquela estória do policial bonzinho e do policial mau... Com a diferença de que, no nosso caso, um de nós é ruim e o outro é pior.

— Bem, qual membro devo quebrar primeiro? — pergunto. — O que você acha, hein? Vou ser legal e deixar você escolher...

— Vamos acabar com esse cara de uma vez, Mattias — diz Noah, preguiçosamente.

— Não! — grita Benício. — Prometo que vou conseguir... Até amanhã.

Empurro Benício contra o carro, pressionando sua garganta com o antebraço, só o suficiente para assustá-lo:

— Até parece que eu acredito... Você pensa que sou idiota? Preciso de uma garantia. Benício não responde.

Olho para o carro dele.

— O carro, não, Mattias... Por favor.

Saco minha arma. Não pretendo atirar nele. A despeito de quem sou e do que me tornei, jamais vou matar alguém... Ou atirar em alguém. Mas claro que Benício não precisa saber disso.

Ao ver minha pistola Glock, Benício segura as chaves com força.

— Oh, Deus, por favor, não... Arranco as chaves de suas mãos.

— Amanhã, Benício... Às sete horas, atrás da velha estação de trens, na esquina da Fourth com a Vine. Agora, suma daqui! — digo, gesticulando muito, ainda com a arma na mão, para que ele saia correndo... E a pé.

— Eu sempre quis um Camaro — diz Noah, depois que Benício já desapareceu de nossa vista.

Jogo as chaves para ele:

— O Camaro é seu... até amanhã.

— Você acha mesmo que ele vai conseguir quatro notas de um dia para o outro?

— Claro — respondo, confiante — Esse carro vale muito mais do que as quatro notinhas de 50 que ele deve.

De volta ao velho armazém, contamos a Bernie o que aconteceu. Ele não gosta nem um pouco de saber que ainda não conseguimos o dinheiro. Mas sabe que conseguiremos. Eu sempre dou conta do recado.

À noite, no meu quarto, não consigo dormir, por causa dos roncos de Leon, meu irmão mais novo. Aliás, Leon dorme tão profundamente, que até parece que não tem nenhuma preocupação, neste mundo. Não me importo de ameaçar caras que têm dívidas de drogas, como Benício... Mas gostaria de lutar por coisas que realmente valessem a pena.

Na semana seguinte, estou sentado no gramado, à sombra de uma árvore, no pátio da escola, almoçando. A maioria dos estudantes gosta de vir comer aqui fora. E eu também... Mas só até o final de outubro, quando o inverno de Illinois nos obriga a ficar na lanchonete. Neste momento, estamos desfrutando o sol e o ar fresco, enquanto o clima ainda permite.

Meu amigo Pedro, com seus jeans pretos e uma camisa vermelha, grande demais para ele, me dá um tapa nas costas e se senta perto de mim, com uma bandeja nas mãos.

— Pronto para a próxima aula, Mattias? Juro que Lucy Valverde odeia você como o diabo, cara! É engraçado, porque ela fica afastando o banquinho, o tempo todo, só para ficar o mais longe possível de você.

— Pedro... — eu digo — ela pode ser uma gracinha, mas não vai conseguir nada com este cara, aqui. — E ponho a mão no peito.

— Vá dizer isso para a sua mãe... — Pedro rebate, rindo — ou para Samuel Alvarez. Eu me recosto no tronco da árvore e cruzo os braços:

— Fiz aula de educação física com o Alvarez, no ano passado. E, acredite, ele não tem nada para se gabar.

— É... Ainda não deu para esquecer que Samuel Alvarez emporcalhou seu armário, quando você era calouro. E isso aconteceu depois que você venceu uma corrida, diante de todo colégio, não foi? E o Samuel ficou para trás.

Droga, sim, ainda estou chateado. Esse incidente me custou um bom dinheiro, porque tive de comprar livros novos.

— Esse caso também já ficou para trás... Já era — digo a Pedro, mantendo a fachada de tranquilidade, como sempre faço.

— Pois já era está sentado bem ali, com sua namorada gostosa.

Um olhar para a Pequena Miss Perfeição... E minhas defesas se erguem. A idiota pensa que sou usuário de drogas. Estou apavorado com essa estória de ser parceiro dela, na aula de Química.

— Aquela garota é uma cabeça-de-vento, cara — eu digo.

— Ouvi dizer que ela anda falando mal de você — comenta Pedro, que se aproxima com um bando de caras.

Todos trazem bandejas, com o almoço servido no refeitório, ou com alimentos trazidos de casa.

Fico imaginando o que Lucy pode ter falado, por aí... Espero que ela não me cause problemas.

— Talvez a garota esteja a fim de mim — eu digo. — Por isso anda falando bobagens... para chamar a minha atenção.

Pedro ri, tão alto, que todo mundo olha para nós.

— Cara, Lucy Valverde jamais se aproximaria de você, por vontade própria... E, muito menos, sairia com você — ele diz. — A garota é tão rica, que o lenço que ela estava usando no pescoço, na semana passada, provavelmente custou mais caro do que tudo o que existe em sua casa.

Aquele lenço... Como se os jeans e a camiseta já não fossem o bastante, ela ainda por cima acrescentou o lenço, talvez para mostrar o quanto é rica e inacessível. E aposto que ela fez questão de escolher um lenço daquela cor, só porque combinava perfeitamente com seus olhos de Esmeralda.

— Ei, aposto meu RX-7 como você não consegue descobrir a cor da calcinha de Lucy Valverde, antes do feriado de Ação de Graças — Pedro me desafia.

— E quem quer ver a calcinha dela? — eu rebato. Provavelmente, deve ser de marca, com suas iniciais bordadas na frente.

— Quem quer? Todos os garotos deste colégio, oras! Será que preciso falar o óbvio?

— Pedro, aquela garota é feita de gelo. Não estou a fim de garotas brancas, mimadas, cabeças-de-vento... O máximo esforço que fazem é pintar as longas unhas de uma cor diferente a cada dia, só para combinar com suas roupas de marca.

Tiro um cigarro do bolso e acendo, ignorando a política anti-tabagista do Colégio Saferat. Tenho fumado muito, ultimamente. Foi isso que Noah me disse, ontem à noite, quando nos encontramos.

— E daí que a garota é branca? Ora, vamos, Mattias, não seja idiota... Olhe só para ela!

Lanço um olhar para Lucy... E reconheço que ela merece um segundo olhar, mais demorado. Cabelos longos e brilhantes, nariz aristocrático, braços ligeiramente bronzeados e certa firmeza nos músculos, o que leva a gente a pensar que se ela fizesse um pouco de musculação, seria uma maravilha. Lábios carnudos... E quando ela sorri a gente chega a pensar que a paz mundial até seria possível, desde que todo mundo pudesse sorrir assim.

Afasto esses pensamentos para longe. E daí, se ela é gostosa? Quer saber? Acho que ela não passa de uma cadelinha de alta sociedade.

— Muito magra — eu digo.

— Você quer aquela garota, Mattias — diz Pedro, se deitando no gramado. — Só que você, assim como todos nós, mexicanos da zona sul, não se acha capaz de conseguir.

Alguma coisa acontece, dentro de mim... um clique. Vamos chamar isso de meu mecanismo de defesa. Vamos chamar de petulância. Antes que eu possa desligar esse mecanismo, digo:

— Vou ganhar aquela garota... Em dois meses. Se você realmente quiser apostar seu RX-7, eu estou nessa...

— Você está delirando, cara.

Como não respondo, Pedro franze a testa:

— Sério, mesmo, Mattias?

O cara vai recuar... Pois ama aquele carro mais do que a sua própria mãe.

— Com certeza.

— Então, se você perder, eu ganho o Julio — diz Pedro, e seu rosto franzino se abre num sorriso perverso.

Julio, uma velha moto Honda Nighthawk 750, é meu maior tesouro. Encontrei Julio num depósito de lixo. Com muito trabalho, consegui transformar o que era uma lata- velha numa bela máquina reluzente. Levei todo o tempo do mundo, nessa reconstrução...

 No fim das contas, Júlio é a única coisa, em minha vida que eu consegui tornar melhor, em vez de destruir.

Pedro não recuou... Isso significa que eu mesmo posso recuar, ou entrar no jogo. O problema é que nunca voltei atrás... Nem sequer uma única vez, em toda minha vida.

A garota branca mais popular da escola certamente aprenderia muito, se começasse a sair comigo. A Pequena Miss Perfeição disse que nunca saiu com um cara de gangue. Mas aposto que ninguém da Sangue Latino tentou, realmente, descobrir a cor da sua calcinha de grife.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo